Nas ruas desde 1995, mobilização volta a marchar por todo o Brasil no dia 7 de setembro com movimentos populares do campo e da cidade
Por Clara Assunção, RBA
Nos 200 anos da Independência do Brasil, o Grito dos Excluídos volta às ruas de todo o país no próximo 7 de setembro para denunciar as desigualdades sociais. O movimento protestará também contra a tentativa do governo de plantão de se apropriar da data para impulsionar seu discurso golpista contra a democracia. Desse modo, na sua 28ª edição a tradicional manifestação que reúne movimentos populares de todo o país destacará o verdadeiro sentido de democracia, como o lema “Vida em primeiro lugar, 200 anos de independência: Para quem?”
O mote, escolhido pela Confederação Nacional dos Bispos no Brasil (CNBB), faz referência à situação dos povos negros, LGBTQIA+, mulheres, das comunidades quilombolas e indígenas, e das populações rurais, periféricas e em situação de rua. Setores da população que, ao longo de toda a história, foram deixados de lado pela políticas públicas.
“Estamos pensando na democracia, que está sendo ameaçada principalmente nesses tempos atuais”, diz dom José Valdeci Santos Mendes, bispo da diocese de Brejo, no Maranhão. “Tudo isso nos faz refletir, 200 anos de independência para quem?”, enfatiza o bispo, durante entrevista nesta quinta-feira (1º). O evento marcou o lançamento da nova edição do Grito dos Excluídos. Mas também a oposição do movimento nacional ao projeto bolsonarista que disputa a data histórica para atos antidemocráticos e de cunho eleitoral.
Grito do coração do povo
Segundo a organização, as manifestações, que ocorrem desde 1995, estão confirmadas em todo o país para a próxima quarta-feira. A ideia, contudo, “é não provocar”, de acordo com dom José. Ainda no início de agosto, as lideranças que encabeçam a campanha Fora Bolsonaro concordaram em não medir forças com os atos bolsonaristas. E, diferentemente dos últimos dois anos, eles decidiram passar as manifestações contra o presidente da República para o dia 10 de setembro.
No entanto, a organização dos Gritos dos Excluídos destacou que não deixará de fora sua oposição ao atual governo nestas eleições. “Precisamos ter essa consciência de que esse Brasil que está aqui não é o que queremos. E o que queremos de fato é que prevaleça a justiça, a solidariedade e, sobretudo, uma democracia sólida e participativa. Por isso a vida deve estar realmente em primeiro lugar”, comentou o bispo à imprensa, ironizando o tratamento dado por Bolsonaro ao coração de Dom Pedro I, ligado diretamente ao passado de horror da escravidão.
“Nosso grito não vem de alguém que está montado em um cavalo, às margens de um rio. O nosso grito é com os excluídos e excluídas. É o grito também do rio que está sendo aterrado e envenenado. É também o grito das florestas que estão sendo derrubadas, e de tantos irmãos e irmãs que lutam por vida e vida com dignidade. Esse nosso grito vem do nosso coração, que está no nosso corpo. E não, com todo o respeito, a um grito que vem de um coração que vai passando de mão e mão”, afirmou dom José.
Antirracismo nas eleições
As manifestações já estão confirmadas tanto nas capitais quanto em cidades do interior do Brasil. No Rio de Janeiro, por exemplo, o Grito dos Excluídos sairá, às 9h, do cruzamento da rua Uruguaiana com a Presidente Vargas, no centro da capital fluminense, em direção ao Cais do Valongo, ponto de desembarque de milhares de africanos escravizados entre os séculos 18 e 19. No mesmo horário, os movimentos populares também estarão em marcha na Praça da Sé, região central de São Paulo, lembrando também das mais de 683 mil vítimas da covid-19.
Presidenta nacional da União de Negras e Negros pela Igualdade (Unegro), Ângela Guimarães afirma ser simbólico realizar o grito refletindo o projeto escravocrata, colonial e desigual que funda o Brasil em meio a esse momento que é o mais grave da história, segundo ela, desde a redemocratização. “Nossa luta por igualdade e respeito às populações negras, indígenas e mais vulnerabilizadas também é uma tarefa que ainda não se completou”, adverte a integrante da Frente Nacional Antirracista, Convergência Negra e da Coalizão Negra por Direitos.
Os movimentos também defendem a candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para o Palácio do Planalto. De acordo com Ângela, “diferente dos editoriais dos jornalões, estamos às vésperas de uma eleição em que nunca foi tão fácil escolher”. “Nossa tarefa é reconstruir o Brasil sem deixar ninguém para trás. É exatamente esse o projeto que o Grito vocaliza e repercute em todo o Brasil e que está em jogo agora dia 2 de outubro”, destaca presidenta da Unegro.
A voz indígena
“Os direitos básicos de cidadania precisam ter a urgência de implementação a partir de 2023. Ninguém sem casa, sem teto, sem terra, com fome e sem trabalho. E nenhuma criança ou jovem fora da escola e da universidade. Nenhuma mãe desesperada, chorando porque seus filhos vêm sendo abatidos pela violência racista das forças de segurança pública. E nenhum pai trabalhador desesperado porque não tem o levar de comida para a casa”, elenca Ângela sobre os desafios.
A proposta da 28ª edição do Grito dos Excluídos no 7 de setembro é também levar esperança e resistência a partir de exemplos da luta indígena. Há mais de 500 anos, jamais cederam à dominação dos colonizadores e a projetos que visam cercear os modos de vida dos povos tradicionais. A arte-educadora Márcia Mura, do povo Mura da região do Baixo Madeira, em Rondônia, explica o lema. “Vida em primeiro lugar congrega a interligação com o ambiente inteiro, como as comunidades originárias defendem há séculos.”
“Esse grito de independência é um grito que ecoa em nossas lutas e existências. E esse ato (do Grito dos Excluídos e Excluídas) lembra e traz para a gente a aliança dos povos com as florestas, com a luta indígena, negra e popular. Essa aliança entre povos pela vida em abundância. Ela já existia, mas foi tirada por esses colonizadores que chegaram invadindo nosso território e nos impondo uma lógica que não faz parte da nossa percepção de mundo. E que aos poucos foram transformando nossos territórios em locais de exploração e mortes. É contra isso que lutamos e resistimos para manter as florestas, as águas e todos os biomas. Porque um depende da existência do outro”, alerta Márcia Mura.