Nesta sexta, Alexandre Vannucchi será homenageado com ato na Sala dos Estudantes da Faculdade de Direito da USP, no Largo de São Francisco, às 16h. Haverá missa às 19h na Catedral da Sé
Por Camilo Vannucchi, do UOL, na RBA
O meu nome é Alexandre Vannucchi Leme. Quando entrei na USP, em 1970, ganhei o apelido de Minhoca. A turma achava graça quando eu imitava um dos professores da Geologia, o Sérgio Estanislau do Amaral, conhecido como Minhocão. Quem não era da Geo devia pensar que eu virei Minhoca por ser franzino e por estar sempre me metendo na terra – o que também é verdade.
Sempre fui vidrado em geologia. E colecionava rochas desde menino, em Sorocaba, no interior de São Paulo. Aonde eu fosse, voltava sempre para casa com algum mineral. Limpava as amostras, classificava, anotava a procedência, separava as ígneas das metamórficas e das sedimentares… Algumas eu dava de presente. Minhas irmãs ainda devem ter algumas dessas pedras.
Tenho quatro irmãs e um irmão, todos mais novos. Botei apelido em todos eles. A Regina eu batizei de Fejorelo; a Míriam virou Norelo; a Cristina é a Niquinho, o Zé Augusto virou Zé Cuiara e a Beatriz, Belecoteco. Devem ter se sentido vingados quando eu virei Minhoca.
Eu tinha 19 anos quando entrei na USP e me mudei para São Paulo. Egle, minha mãe, gostava de repetir, orgulhosa, que eu tinha sido o primeiro colocado no vestibular. Naquela época, não tinha Fuvest, e cada faculdade fazia seu próprio exame de seleção. Cheguei com fama de bom aluno.
A verdade é que eu sempre gostei de estudar. Dava aulas particulares de português e matemática e passava o resto do tempo entre cadernos e livros. Só parava pra ver jogo do Timão. À noite, fechava a porta do quarto e ficava lendo até tarde, a única luz acesa da casa. Às vezes, mergulhava num tema por semanas.
Uma vez, o Adriano, que cuidava da área cultural do centro acadêmico, me pediu uma pesquisa sobre o impacto ambiental da Transamazônica, uma obra faraônica que tinha virado a menina dos olhos dos militares. O grupo de teatro estava montando uma peça com o espirituoso título de “Uma Transa Amazônica” e precisava de informações pra incrementar o texto. Pedi orientação pro Aziz Ab’Saber e levantei uma série de dados.
Em pouco tempo, comecei a participar do movimento estudantil. Naquela época, era tudo mais complicado. Censura, governo Médici, muita gente presa… Desde 64, os centros acadêmicos eram proibidos por lei de promover ações, manifestações ou propaganda política de qualquer espécie. Mas a gente se virava. Editava jornais, convidava artistas, organizava encontros e ia fazendo oposição à ditadura do jeito que dava.
No terceiro ano, me aproximei da Ação Libertadora Nacional. Distribuía panfletos, escrevia notas, às vezes ajudava a esconder alguém ou alguma coisa, e buscava, à medida do possível, aumentar a adesão dos universitários à luta por democracia. Formávamos uma espécie de base de apoio da ALN dentro da universidade: o Enzo, o Queiroz, o Adriano, o Frazão, a Loira, o Babão…
No começo de 1973, o cerco começou a se fechar. O Enzo deixou o país. O Queiroz caiu na clandestinidade. Dois primos meus de São Joaquim da Barra, o Zé Ivo e o Paulinho, tinham sido presos. O Paulinho já somava dois anos de cadeia. Cheguei a visitá-lo em dezembro. Naquele Natal, levei a Lisete, minha namorada, para apresentar à família. De volta a São Paulo, dobramos os cuidados. Surgiram rumores de que havia um agente infiltrado em nosso grupo.
Ainda assim, eu continuava indo às aulas. Não usava codinome nem era clandestino. Em fevereiro, só não fui ao estágio de campo com a turma da Geologia em Diamantina porque tive de fazer uma cirurgia de emergência para retirar o apêndice no finalzinho de janeiro. Passei um mês praticamente de molho, deus me livre.
Fui sequestrado e conduzido ao DOI-Codi no dia 15 de março, uma quinta-feira, perto da hora do almoço. O major Carlos Alberto Brilhante Ustra estava eufórico. Minha prisão era tudo o que ele queria pra desmantelar a presença da ALN na USP. Ele acreditava que bastaria me apertar para que eu entregasse os companheiros.
Os primeiros a me torturar foram os agentes da equipe C: Attila Carmelo, que os colegas chamavam de Dr. Jorge, o Oberdan, o Mario, o Marechal e o Lourival Gaeta, que usava o codinome Mangabeira. Eles atribuíam a mim ações que eu não cometi, até porque estava de repouso em Sorocaba naquelas datas. Pediam nomes e eu dizia o meu, pediam nomes e eu repetia o meu, horas a fio.
A tortura se estendeu até à noite, quando fui jogado na X-zero, a solitária. No dia seguinte, quem assumiu a tortura foi a equipe A: Alemão, Rubens e Silva, Dr. Tomé, Dr. Jacó. “Meu nome é Alexandre Vannucchi Leme. Meu nome é Alexandre Vannucchi Leme”. Foi a mesma coisa no sábado de manhã. Voltei para a solitária ao meio-dia, desta vez carregado.
Por volta das quatro da tarde do dia 17 de março de 1973, foram me buscar para mais uma sessão de tortura e encontraram meu corpo inerte. Recém-operado, não resisti à porrada e aos choques elétricos. Uma hemorragia interna foi minha sentença de morte.
Meu corpo estava todo ensanguentado quando fui arrastado para fora da solitária. Um corre-corre dos diabos. Mandaram todo mundo encostar no fundo das celas e fizeram uma busca por giletes e outros objetos cortantes. Os torturadores diziam que eu havia me cortado com uma navalha. Ustra, no pátio, berrava: “Acabei de mandar o Minhoca para a Vanguarda Popular Celestial!” E dava tiros para o alto.
Em seguida, começaram a preparar outra versão. Fui jogado no porta-malas de um carro e levado para a esquina da Rua Bresser com a Avenida Celso Garcia, no Brás, onde o motorista de um caminhão foi pago para passar por cima de mim e declarar que havia me atropelado, ou melhor, que eu havia pulado na frente do caminhão ao tentar escapar da polícia. “Subversivo tenta fugir, mas morre atropelado”, dizia o título de uma das matérias publicadas nos jornais.
Fui enterrado às pressas, como indigente, no Cemitério Dom Bosco, em Perus, antes da publicação das matérias. Avisado da minha prisão por um telefonema anônimo, meu pai, José, professor do Senai em Sorocaba, viajou para São Paulo e me procurou no Dops, no DOI-Codi e no IML. Em todos esses lugares, negaram que eu tivesse sido preso. Meus pais souberam pelos jornais que eu estava morto. Foi o início de uma longa jornada por justiça e reparação.
Logo após a minha morte, dezenas de estudantes da USP foram presos e torturados. A repressão buscava alguém que testemunhasse contra mim, que dissesse o quão perigoso eu era, a fim de justificar minha execução. Foi um tiro no pé. Procurado por um grupo de estudantes, o arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, decidiu celebrar uma missa em minha homenagem junto com o bispo de Sorocaba, Dom José Melhado Campos, e ofereceu a Catedral da Sé. Nasci numa família muito católica, com um tio padre e três tias freiras, e não havia quem se conformasse com a minha morte nem com a ausência de um corpo para velar.
Como ninguém sabia ao certo em que dia eu tinha sido morto, consideraram a data da divulgação pelos jornais e marcaram uma missa de sétimo dia para 30 de março, uma sexta-feira. Três mil pessoas lotaram a catedral naquela tarde. No altar, Dom Paulo repudiou publicamente a versão de suicídio e responsabilizou o Estado pela minha morte. “Só Deus é dono da vida; d’Ele a origem, e só Ele pode decidir o seu fim”, protestou. Devo muito a Dom Paulo. “Coragem”, ele costumava dizer. “Coragem!”
São Paulo parou naquele dia. A polícia e o Exército montaram blitz em diversos pontos da cidade para dificultar o acesso à região central e evitar que a igreja enchesse. Não adiantou. Sérgio Ricardo, o mesmo compositor que havia quebrado o violão no Festival da Record de 1967, chegou do Rio de Janeiro para cantar e tocar “Calabouço”, uma música que ele havia acabado de gravar em homenagem a outro estudante morto pela repressão, o secundarista Edson Luís de Lima Souto.
Minha mãe e meu pai jamais desistiram de esclarecer as circunstâncias da minha morte e de fazer justiça. Mário Simas e José Carlos Dias foram os primeiros advogados a cobrar explicações sobre minha morte e meu paradeiro. Apenas em 1983, dez anos após meu assassinato, minha família recebeu meus restos mortais e pôde sepultá-los em Sorocaba. Naquele dia, por algumas horas, fui velado na Sé ao lado de Frei Tito, frade dominicano que abreviou a própria vida na França, assombrado pelas lembranças das torturas que sofrera em 1969. Um homem bom.
Fui anistiado, postumamente, em 2013. Em 2014, o Estado retificou minha certidão de óbito, incluindo a informação de que fui morto no DOI-Codi por “lesões provocadas por tortura”.
Desde 1976, o diretório central dos estudantes da USP tem o nome de DCE-Livre Alexandre Vannucchi Leme. Cinquenta anos após a minha morte, meu retrato pode ser visto em cards e bandeiras, nos muros e nas paredes do campus. Na imagem, o mesmo jovem militante que terá, para sempre, 22 anos.
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Nesta sexta-feira, 17 de março de 2023, o cinquentenário do assassinato de Alexandre Vannucchi Leme será rememorado com ato na Sala dos Estudantes da Faculdade de Direito da USP, no Largo de São Francisco, das 16h às 18h30. Na ocasião, estarão presentes colegas de classe e de militância de Alexandre e haverá o lançamento de uma exposição virtual sobre ele, organizada pelo Instituto Vladimir Herzog e publicada na plataforma Google Arts & Culture em três idiomas. Em seguida, às 19h, dom Pedro Stringhini, bispo de Mogi das Cruzes, preside missa em memória de Alexandre Vannucchi na Catedral da Sé, ao lado de Dom Angélico Sândalo Bernardino. As atividades são uma iniciativa do Instituto Vladimir Herzog com a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns e o Núcleo Memória, com o apoio da Coalizão Memória, Verdade, Justiça, Reparação e Democracia, a OAB-SP, o DCE-Livre da USP Alexandre Vannucchi Leme e o Centro Acadêmico XI de Agosto. Haverá apresentações musicais de Renato Braz e do Coro Luther King.
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Imagem: Estudante de geologia na USP e líder estudantil, Alexandre Vannucchi Leme foi assassinado aos 22 anos no DOI-Codi de São Paulo, em 17 de março de 1973
Enviada para Combate Racismo Ambiental por Zelik Trajber.