Sem proteção do Estado, que ignora medidas cautelares da CIDH, comunidade segue sob ataque químico dos agrotóxicos; pesquisadores encontraram substância na água
Por Maiara Dourado, da Assessoria de Comunicação do Cimi
“Era umas quatro horas da manhã quando o avião começou a passar o veneno. Ele foi parar por volta de umas 9h, 9h40 por aí. Agora eles estão passando o ressecante tanto com trator como com avião. De ontem para hoje, uma criança passou mal. Tá com falta de ar, vômito. Tá só piorando, só piorando”.
O relato de Erileide Guarani Kaiowá, liderança da Terra Indígena (TI) Guyraroka, situada no município de Caarapó, no Mato Grosso do Sul (MS), é de duas semanas atrás, mas desde 2018 eles se acumulam às demais denúncias de contaminação por agrotóxicos enviadas pela comunidade. A aldeia de Erileide encontra-se, literalmente, cercada pela monocultura do agronegócio, gerador de um conflito que coloca em risco a vida de mais de 90 indígenas que encontram-se encurralados em uma área de pouco mais de 50 hectares.
Foi o que lhes restou dos 11 mil hectares da TI, cuja demarcação foi anulada pela Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2014, com base na tese do marco temporal e sem a participação da comunidade no processo.
Em 2018, os indígenas de Guyraroka entraram com uma ação rescisória da sentença que lhes negou o pertencimento da terra. Em 2021, a Suprema Corte admitiu por unanimidade a ação, que ainda não foi julgada.
Com a aprovação da lei do marco temporal em dezembro do ano passado, o STF deve adiar, ainda mais, a decisão sobre os rumos da terra indígena, o que pode acirrar os conflitos já deflagrados pelo proprietário da fazenda Remanso II, localizada a metros de distância do tekoha Guyraroka. Enquanto isso, a comunidade vive sob a mira de uma arma tão ou mais letal que as armas de fogo, comumente utilizadas pelos fazendeiros para intimidar os indígenas.
“Eles [fazendeiros] não utilizam arma de fogo, eles utilizam arma química”, explica Erileide ao se referir aos agrotóxicos deliberadamente lançados sobre o território indígena por meio de pulverização aérea – com aviões e drones – e terrestre – com tratores e bombas de pulverização. A proximidade da escola com a fazenda, cuja cerca dista 55 metros do local de estudo, é ignorada pelo proprietário, que mesmo com a presença de professores, funcionários e crianças na escola, ordena a pulverização de agrotóxicos na plantação que a cerceia.
“Eles [fazendeiros e funcionários] não consultam a comunidade, não verificam de que forma está o vento para que não atinja a comunidade. Para eles, tanto faz o vento, o clima, o sol, se choveu ou não, eles passam [o veneno] de qualquer forma”, relata Erileide.
Durante a aplicação do veneno na fazenda, forma-se uma nuvem branca no ar, que é levada pelos ventos e pelas chuvas. O veneno não só contamina os indígenas de forma direta – no contato com a pele e vias respiratórias – como por meio da água e alimentos também contaminados com a pulverização.
O desrespeito a qualquer tipo de protocolo de segurança determinado por órgãos regulatórios faz com que os indígenas entendam a pulverização de agrotóxicos como uma forma de expulsão e extermínio de seu povo. “É uma forma de dizer ‘se não quiserem morrer, vão embora’ e ‘se quiserem viver e existir, morram aí’”, denuncia a liderança.
Trata-se de um descuido intencional e deliberado que denota o grau de sadismo e violência dos ataques químicos empreendidos contra os indígenas, que diante da omissão do Estado, recorreram, em 2019, à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). A Comissão chegou a emitir ao Estado brasileiro medidas cautelares para proteger a comunidade que, apesar de contar com os esforços dos órgãos internacionais, se vê abandonada pelo Estado à própria sorte.
“Mesmo com a denúncia que chegou até a Comissão Interamericana, [os ataques químicos] não diminuíram, continua a mesma coisa, porque enquanto não vier a demarcação, a terra não for homologada, realmente não vai fazer diferença”, considera Erileide, que vê na demarcação das terras a única medida possível para resolução dos conflitos.
“Passados todos esses anos desde que a cautelar [da CIDH] foi concedida, a comunidade não viu sequer um resultado”, lamenta Flávio Vicente Machado, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Mato Grosso do Sul, que acompanha o conflito vivido pela comunidade desde as primeiras denúncias.
“O governo [federal], inclusive, visitou a comunidade no ano passado justamente por conta da cautelar, mas ocorre que todo período de entressafra [preparo da terra], plantação ou colheita, a comunidade e, sobretudo, as crianças sofrem com essa situação grave e de total desproteção do Estado”, reitera.
Deixados à própria sorte, a comunidade Guyraroka faz o que pode para conter a chuva de veneno que recai sob suas cabeças. “A gente procura plantar muitas árvores para ver se barra isso”, afirma a liderança, que busca lutar com as armas que tem contra a investida química do agronegócio.
“Eles falam que não tem nada a ver com veneno”
A permanente exposição de membros da comunidade Guyraroka aos agrotóxicos preocupa Erileide, que percebe uma piora na gravidade e na quantidade de casos de intoxicação por agrotóxicos. “As consequências, as sequelas só estão aumentando, só acelerando”, conta a liderança.
Os novos moradores do tekoha “começaram a ter uma reação ainda mais rápida e forte. Teve uma adolescente que deu coceira, inchaço no corpo todo, perdeu a voz e não conseguiu mais falar”, relata Erileide, que já perdeu as contas dos casos de adoecimento por contaminação de agrotóxico na comunidade.
A situação se agrava ainda mais com a forma com que os hospitais e até a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) têm prestado atendimento à comunidade indígena. “Quando você chega na emergência do hospital, a única coisa que eles [os intoxicados] tomam é soro, [os profissionais de saúde] passam um remédio e voltam. Mas eles não querem aceitar a intoxicação. Eles falam que isso é normal, que não tem nada a ver com veneno. Os médicos negam a relação do adoecimento da comunidade com os agrotóxicos”, denuncia Erileide.
O negacionismo médico, no entanto, esbarra na comprovação científica atestada por um grupo de pesquisadores composto por estudiosos da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), da Embrapa Pantanal, da Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz) Mato Grosso do Sul e do Fórum Nacional da Sociedade Civil nos Comitês de Bacias Hidrográficas (Fonasc.CBH).
O grupo, por meio de uma pesquisa junto a comunidades cercadas pelo agronegócio, busca verificar a qualidade das águas e o grau de contaminação das mesmas. No final de 2021, os pesquisadores examinaram ao menos três tipos de água que abastecem a comunidade da TI Guyraroka. Em todas elas – ou seja, nas águas de rios e nascentes, de torneira e poços artesianos, bem como da água da chuva – foram encontradas taxas importantes de agrotóxicos.
Mistura tóxica
A pesquisa, ainda inédita e em processo de publicação, acompanha todo o processo produtivo da soja, realizando coletas de água em diferentes estágios vegetativos do grão. Isto é, desde o plantio, passando pelo desenvolvimento e colheita da soja até o vazio sanitário, que é quando supostamente o sojicultor deveria manter a terra sem cultivo.
“Há uma ideia de que no vazio sanitário se usa menos agrotóxico, o que é uma grande mentira porque, obviamente, o agronegócio não fica dois, três, quatro meses com a terra parada. A gente tem produção nesse espaço [de tempo do vazio sanitáio] e essa produção também usa agrotóxico”, explica Fernanda Savicki de Almeida, pesquisadora em saúde pública da Fiocruz-MS, que integra o grupo de pesquisadores supracitado. No diagnóstico das águas do território Guyraroka, “em alguns anos, a gente encontrou mais agrotóxicos no vazio sanitário do que fora dele”, afirma a pesquisadora.
A pesquisa, que encerrou um primeiro ciclo de análises no final do ano passado, constatou ainda em uma mesma amostragem de água a presença de uma variedade de agrotóxicos, o que para a pesquisadora da Fiocruz denota um alto risco à saúde humana e ambiental.
“Mesmo que em uma quantidade muito pequena, mesmo que seja um traço de agrotóxico, a mistura, a calda produzida por dois ou mais agrotóxicos, tende a ser muito mais tóxica do que os dois agrotóxicos em separado”, explica Fernanda.
Houve casos em que a pesquisa desenvolvida pela parceria de instituições sul-matogrossenses encontrou 11 agrotóxicos em uma mesma porção de água em Guyraroka. “É uma quantidade absurda”, considera a pesquisadora. O estudo encontrou 20 tipos diferentes de agrotóxicos nas águas da comunidade, a maioria deles em combinação com outros. “Foram 32 amostras no total. Em somente duas [amostras] encontramos um agrotóxico, em todas as outras ao menos dois agrotóxicos foram encontrados”, informou a pesquisadora.
“As sinergias [entre os agrotóxicos em combinação] causam problemas muito mais graves. Então, normalmente, nessas áreas [onde se coletou a água] que são sinérgicas, certamente, a gente tem um potencial tóxico muito maior”, explicou a pesquisadora da Fiocruz.
A pesquisadora chama a atenção ainda para a necessidade de se manter os limites de distanciamento exigidos para aplicação de agrotóxicos. Segundo Fernanda, “as partículas dos agrotóxicos podem percorrer mais de 10, 15, 20 quilômetros, dependendo do tipo de agrotóxico e a partícula que é aplicada, seja [por via] terrestre ou aérea”, o que coloca ainda mais vulnerável a comunidade Guarani e Kaiowá, dada a proximidade das plantações e a forma deliberada com a qual são aplicados os venenos na propriedade Remanso II.
“Essas pessoas [de Guyraroka] estão sendo expostas de uma maneira radical aos agrotóxicos”, considera a pesquisadora, que compreende os agrotóxicos como uma “violência velada” contra os Guarani e Kaiowá de Guyraroka.
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Imagem: Proximidade de tratores atrai a curiosidade das crianças. Foto: comunidade Guyraroka