Durante as visitas e as reuniões locais, os presentes citaram conflitos fundiários e a necessidade de preservação do modo de vida das comunidades
Ministério Público Federal na Bahia
Conhecer de perto as dificuldades enfrentadas pelas comunidades tradicionais de fundo e fecho de pasto, que vivem no oeste da Bahia, e atuar em prol da proteção de suas terras e modo de vida. Essa foi a principal motivação da visita realizada pelo Ministério Público Federal (MPF) à cidade de Correntina e cercanias, nos dias 16 e 17 de setembro. Foram realizadas reuniões e visitas a parte das terras tradicionais que pertencem ao estado da Bahia, mas tem sido alvo de grilagem e comercialização para empresas do agronegócio.
Para o MPF, a grande tensão é provocada a partir da aquisição – na maior parte por grandes empresas do agronegócio – de terras públicas, cujas escrituras foram, em algum momento, falsificadas por grileiros. Essas pessoas obtêm títulos ilegais registrando as terras como particulares, com a intenção de usar ou vender para terceiros. Após adquirir essas terras, os representantes das empresas encontram, no local onde pretendem realizar plantações em larga escala, integrantes das comunidades tradicionais de fundo e fecho de pasto, que criam gado e obtém seu sustento na região há centenas de anos, de modo pacífico, comunitário e sustentável.
É assim que muitas das empresas ou particulares descobrem que as terras compradas têm escrituras e registros falsos, sendo, de fato, terras pertencentes ao estado da Bahia e de posse de comunidades tradicionais. A questão se complica pelo fato de o estado da Bahia demorar muito para reconhecer a natureza pública dessas terras, anular os títulos constituídos sobre elas e regularizar a posse das comunidades de fundo e fecho de pasto. A maior parte dessas etapas está a cargo da Superintendência de Desenvolvimento Agrário, q
ue, entretanto, por diversas razões, não vem conseguindo cumpri-las de forma a promover paz social.
Conflitos fundiários e preservação das comunidades – A primeira atividade realizada pelo MPF foi a reunião na tarde de 16 de setembro, no Centro de Treinamento de Lideranças em Correntina, com representantes de doze comunidades tradicionais de fundo e fecho de pasto do Vale do Rio Corrente e do Vale do Rio Arrojado. Participaram, também, representantes da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais no Estado da Bahia (AATR).
Durante a reunião, foram relatadas pressões intensificadas do agronegócio sobre os territórios tradicionais, desde a década de 1970, o que resultou em desmatamento e grilagem de terras. De acordo com os participantes, grandes extensões do cerrado, região considerada vital para a preservação dos recursos hídricos, foram severamente afetadas pelo uso descontrolado de agrotóxicos e pela exploração agrícola em larga escala.
Lideranças locais apontaram que, apesar de algumas áreas terem passado por processos de regularização fundiária, apenas uma pequena fração do território tradicionalmente utilizado pelas comunidades – cerca de 3% – permanece preservada. No entanto, relataram que o avanço do agronegócio tem sido acompanhado por episódios de violência, ameaças de invasão e tentativas de expulsão das populações tradicionais.
Outro ponto crítico citado pelos presentes ao MPF foi a lentidão do estado da Bahia em resolver questões relacionadas à titularidade das terras. As tentativas de concessão de contratos de direito real de uso das terras para as comunidades esbarram em empecilhos burocráticos e conflitos com fazendeiros e empresas. Aproveitando-se da demora, grileiros têm promovido invasões e chegam, até mesmo, a registrar ilegalmente as terras públicas. Com o tempo, essas terras griladas são transferidas a terceiros, como empresas do agronegócio, que, por sua vez, ajuízam reintegrações de posse contra os fecheiros. Estranhamente, há relatos de que o Ministério Público não tem sido chamado pela Justiça para atuar nos processos.
Além das questões fundiárias, a destruição ambiental foi outra preocupação levantada, com denúncias de desmatamento em áreas de preservação e a poluição de nascentes. Lideranças apontaram a necessidade urgente de ações concretas do governo estadual para proteger essas regiões e garantir a segurança das comunidades que dependem dos territórios para sua sobrevivência.
A reunião concluiu com um apelo, ao estado da Bahia, pelo processo de regularização das terras e implementação de medidas de proteção para evitar a degradação ambiental e os conflitos agrários que afetam diretamente a vida das comunidades tradicionais.
Visita às terras tradicionais – No dia 17 de setembro, representantes do MPF, da CPT e da AATR foram guiados pelos fecheiros em uma visita às terras tradicionalmente utilizadas pelas comunidades. Durante o dia, foi possível observar de perto o modo de vida local, conhecendo os “ranchos“ e outras estruturas comunitárias, essenciais para abrigar e apoiar as famílias nos períodos em que manejam e cuidam do gado nos fechos de pasto. Também foram visitadas as fontes de água natural, fundamentais para a subsistência durante esses períodos.
Ao longo da visita, os líderes comunitários explicaram como é feito o transporte do gado durante as secas, destacando que essa tarefa, geralmente realizada pelos homens das famílias, envolve conduzir os animais a cavalo até os vales dos rios, onde ficam as terras tradicionais. Além disso, compartilharam detalhes sobre a vida nos ranchos, como a prática de contar histórias, a preparação coletiva de alimentos e o uso sustentável das terras, que preserva o ambiente e mantém as tradições vivas.
O MPF deve continuar monitorando a situação das comunidades tradicionais de fundo e fecho de pasto, além de adotar medidas para que os órgãos públicos competentes tratem das demandas levantadas pelas comunidades.
Comunidades de fundo e fecho de pasto – A região oeste da Bahia abriga comunidades tradicionais com costumes próprios e modo de vida centenário. Tais grupos criam gado como única fonte de renda, ou como atividade para complementar a renda familiar. Alguns deles usam o fundo de pasto (quando criam o gado próximo às suas casas, em terras do estado próximas às suas) e se chamam comunidades de fundo de pasto. Outros, levam seus animais para áreas mais afastadas de suas casas em períodos de estiagem, viajando, em grupos que tocam o gado juntos, até os “ranchos“ construídos e mantidos coletivamente. Essas são as comunidades de fecho de pasto.
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Foto: IRPAA