Íntegra do Parecer do procurador Camões Boaventura contra multa de R$ 3 milhões para artesanato indígena

Tania Pacheco – Combate Racismo Ambiental

No dia 26 de fevereiro, divulgamos noticia (AQUI) sobre o posicionamento do Ministério Público Federal no Pará em relação à absurda multa de quase R$ 3 milhões aplicada pelo Ibama contra um indígena Wai-Wai. Timóteo Taytasi Wai-Wai recorria à venda de artesanato tradicional de seu povo para se sustentar e poder estudar em Oriximiná. Neles, usava penas de aves que fazem parte da alimentação normal de seu povo.

No parecer encaminhado ao Juízo da 2ª Vara Federal em Santarém, agora divulgado, o procurador Luís de Camões Boaventura questiona o fato de o mesmo Ibama multar a Norte Energia em R$ 8 milhões por crime ambiental. A empresa, “pessoa jurídica responsável pela mais cara obra pública em andamento no Brasil, orçada atualmente em 32 bilhões de reais”, é acusada de ter provocado a morte de 16 toneladas de peixes em Belo Monte.

E relembra, entre outras coisas, que “os povos indígenas, com suas técnicas sofisticadas de manejo da agrobiodiversidade e tecnologias de baixo impacto ambiental, oferecem aos seus territórios e meio ambiente grande proteção, o que se traduz em um índice de desmatamento em terra indígena de apenas 1%, índice bastante inferior ao das unidades de conservação gerenciadas pelo ICMBio, por exemplo”.

Leia a íntegra do Parecer, disponível abaixo.

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EXCELENTÍSSIMO SENHOR JUIZ FEDERAL DA 2ª VARA FEDERAL DA SUBSEÇÃO JUDICIÁRIA DE SANTARÉM/PA

Processo nº 4306-53.2015.4.01.3902

O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, por intermédio do Procurador da República abaixo subscrito, no uso de suas atribuições constitucionais e legais, vem, à presença de V. Ex.ª, manifestar-se nos seguintes termos.

Trata-se de Ação Anulatória de Multa Ambiental com antecipação de tutela, ajuizada por Timóteo Wai Wai, assistido pela Defensoria Pública da União, em face do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (IBAMA). O Auto de Infração nº 678737-D, que deu origem à Multa, foi lavrado no dia 25 de junho de 2009, no bojo do Processo Administrativo nº 02005.001037/2009-87, instaurado com a finalidade de apurar o “Transporte de artesanato confeccionado com sub-produto da fauna silvestre (psitasidios)”, mais especificamente 132 peças de artesanato, efetuado pela parte autora. O valor consolidado da Multa, e exigido judicialmente através da Ação de Execução Fiscal nº 6283-73.2014.8.14.0037, que tramita na Vara Única da Justiça Estadual em Oriximiná/PA, é de R$ 2.985.517,07 (dois milhões, novecentos e oitenta e cinco mil, quinhentos e dezessete reais e sete centavos).

Em suma, a parte autora alega que a multa viola os princípios da legalidade e da proporcionalidade. O Ibama, por sua vez, apresentou contestação à fl. 175/133, sustentando a legalidade da multa aplicada. A Fundação Nacional do Índio (Funai), instada a se manifestar, opinou pela ilegalidade e desproporcionalidade da multa aplicada (fls. 140/142).

É o relatório, passo a opinar.

Antes de tudo, chama atenção a violenta desproporcionalidade da multa aplicada. A título de comparação, a empresa Norte Energia S.A., concessionária da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, foi multada pelo Ibama no valor de 8 milhões de reais por ter provocado a morte de 16 toneladas de peixe1. A Norte Energia, pessoa jurídica responsável pela mais cara obra pública em andamento no Brasil, orçada atualmente em 32 bilhões de reais, foi atuada pelo Ibama em apenas 8 milhões, por crime ambiental inegavelmente mais grave – e de mais severa repercussão socioeconômica – que a conduta praticada pelo indígena que figura no polo ativo da presente demanda. Aliás, a conduta praticada pela parte autora, se devidamente contextualizada, pode ser considerada insignificante, consoante assinalou a Funai:

A TI Trombetas/Mapuera, à qual pertence o indígena autor, tem uma extensão de 3.970.898 hectares, abrangendo os estados de Roraima, Amazonas e Pará, fazendo uma fronteira com outras terras indígenas, compondo assim, um complexo de Terras Indígenas homologadas de 7.606.328 hectares com cobertura florestal ombrófila, densa, contínua e reservada. Assim, o manejo da fauna, em termos proporcionais, é insignificante no que tange ao impacto ambiental em foco, fato este que, por si só, indica a boa fé do indígena Timoteo Taytasi Wai Wai (fl. 141).

Evidencia-se a ausência de má-fé do indígena Timoteo Taytasi Wai Wai, pois o mesmo não trabalha com produção em larga escala, nem mesmo com recursos ou tecnologias que causem impacto ambiental sobre a população local de papagaios. Ademais, a fabricação de adornos (como brincos, cocares etc.) não impacata o meio ambiente, nem afeta o modo de vida tradicional da etnia Wai Wai. Ao contrário, fortalece as estratégias de sustentabilidade cultural, ambiental e econômica desse povo (fl. 141).

A multa desconsidera, ainda, que os indígenas abatem aves “para comer e aproveitam partes do animal para festas, rituais e artesanatos” (fl. 141). O valor exorbitante e a desproporcionalidade de tratamento contrariam toda a argumentação da parte ré em relação à observância do princípio da isonomia. Aliás, o raciocínio da ré sugere uma interpretação limitada acerca do princípio da igualdade, desconsiderando sua dimensão material, que implica em “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades”. (NERY JUNIOR, 1999, p. 42). O próprio Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADPF 186, que reconheceu a constitucionalidade da política de ação afirmativa, esclareceu que “[o] modelo constitucional brasileiro incorporou diversos mecanismos institucionais para corrigir as distorções resultantes de uma aplicação puramente formal do princípio da igualdade”.

Assim, a atuação dos órgãos na aplicação da lei estatal deve considerar a diversidade cultural dos povos que habitam o país, neste caso os povos indígenas, em obediência também à Convenção nº. 169 da Organização Internacional do Trabalho, ratificada pelo Brasil através do Decreto nº 5.051/2004 e incorporada ao ordenamento jurídico nacional com status supralegal, e que garante aos povos indígenas e tribais o respeito à “sua identidade social e cultural, os seus costumes e tradições, e as suas instituições” (Art. 2º, 2b).

Por isso, a autarquia federal deveria ter considerado que “o artesanato constitui uma forma de expressar a identidade étnica, que é o conjunto de aspectos socioculturais identitários, cosmológicos e valores que compõe cada etnia” (Funai, fl. 141). O artesanato também é uma importante fonte de renda para centenas de povos indígenas no Brasil, especialmente aqueles indígenas que residem em centros urbanos, como é o caso da parte autora, que realiza viagens constantes para a cidade de Oriximiná/PA com o intuito de estudar. Inclusive, a parte autora esteve nesta Procuradoria relatando sua imensa preocupação com a situação financeira e a incerteza de sua permanência na cidade de Oriximiná, uma vez que se sente intimidado e impedido de vender artesanato em decorrência da atuação do Ibama.

Por fim, é preciso ter em vista que os povos indígenas, com suas técnicas sofisticadas de manejo da agrobiodiversidade e tecnologias de baixo impacto ambiental, oferecem aos seus territórios e meio ambiente grande proteção, o que se traduz em um índice de desmatamento em terra indígena de apenas 1%, índice bastante inferior ao das unidades de conservação gerenciadas pelo ICMBio, por exemplo.

Desse modo, o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL manifesta-se pela PROCEDÊNCIA da ação, a fim de: i) Suspender, em sede de antecipação de tutela, a exigibilidade da Multa (Auto de Infração nº 678737-D), oficiando-se a Vara Única da Justiça Estadual em Oriximiná/PA para suspender a Ação de Execução Fiscal nº 6283-73.2014.8.14.0037; e ii) Declarar a nulidade, em sede definitiva, da Multa (Auto de Infração nº 678737-D).

Santarém/PA, 24 de fevereiro de 2016.

LUÍS DE CAMÕES LIMA BOAVENTURA
Procurador da República

 

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