Quando em dezembro o governo Barack Obama negou a licença para a conclusão de um oleoduto que passaria perto da reserva indígena de Standing Rock, em Dakota do Norte, milhares de pessoas acampadas na terra da nação sioux festejaram com cantos e tambores.
A celebração pôs fim a uma das maiores mobilizações de indígenas americanos em várias décadas, à qual se uniram centenas de tribos do continente, ambientalistas, fazendeiros locais, veteranos das Forças Armadas, ativistas negros e outros tantos simpatizantes vindos das cidades.
Mas quando começou, em abril, o movimento não passava de um “acampamento de reza” erguido por um punhado de jovens e adolescentes sioux à beira do rio Cannonball.
Se concluído, o oleoduto Dakota Access deverá transportar até 470 mil barris de petróleo por dia por baixo do rio Missouri, principal fonte de água potável de Standing Rock e de outras reservas sioux.
O oleoduto se estende por 1.800 quilômetros, ligando campos de petróleo na Dakota do Norte a refinarias em Illinois. A maior parte da construção já foi concluída.
Defensores do projeto dizem que ele gerará empregos na indústria petrolífera, reduzirá a dependência dos EUA por importações de combustíveis e barateará a gasolina.
Dias após se tornar presidente, Donald Trump ordenou a retomada do obra e do oleoduto Keystone XL, também barrado por Obama.
Na terça-feira, o Exército, através de sua divisão de engenharia, concedeu a autorização federal que faltava para a conclusão do Dakota Acces. Responsável pela obra, a empresa Energy Transfer Partners diz que seguirá padrões de segurança ainda mais rígidos que os exigidos pelo governo para evitar vazamentos.
Poder espiritual
Para os indígenas, porém, o oleoduto tinha outra dimensão. Eles viam a obra como uma ameaça não só à água e ao bem-estar dos sioux, mas ao equilíbrio espiritual da comunidade, já que a construção poderia revirar túmulos de antepassados.
E ao se opor à iniciativa, acreditavam também enfrentar outras batalhas mais amplas: uma delas, contra os combustíveis fósseis e a degradação ambiental do planeta; outra, contra a epidemia de suicícios, o alcoolismo e a marginalização de indígenas nos EUA.
Para Thomas Lopez, de 24 anos, mais do que um movimento de rejeição, Standing Rock se tornou um movimento de afirmação.
“Ali nós estávamos resgatando nosso poder – não o poder físico, mas o poder espiritual”, ele diz à BBC Brasil.
“E nós estávamos resgatando nossa identidade.”
Para muitos indígenas da geração de Lopez, que nasceram em famílias multiétnicas e cresceram entre a reserva e a cidade, identidade pode ser um conceito fluido.
Criado entre os lakota, um dos subgrupos sioux, Lopez se identifica também como membro das nações apache, dine e otomi; e, descendente de mexicanos, diz-se ainda chicano (termo pejorativo incorporado e ressignificado pelo grupo).
Após se formar em tecnologias da comunicação em Denver, maior cidade do Colorado, ele decidiu passar alguns dias no acampamento em Standing Rock em agosto.
Lopez compara sua chegada ao local à sensação que um “branco teria ao ser transportado para um conto de fadas com castelos e dragões”. “Só que nos nossos sonhos há búfalos, tendas e pessoas vivendo conforme as nossas tradições. Foi a coisa mais extraordinária, algo indescritível.”
O senso de comunidade que encontrou ali e a possibilidade de experimentar o estilo de vida dos antepassados fizeram com que ficasse.
Sonhos, rezas e revelações eram elementos centrais do movimento em Standing Rock, e cerimônias e homenagens aos ancestrais regiam a rotina do acampamento.
O oleoduto era associado a uma profecia lakota sobre uma serpente preta. Segundo a profecia, a chegada da serpente traria catásfrofes para a Terra, e só uma geração seria capaz de derrotá-la. Muitos jovens no acampamento acreditavam pertencer a essa geração.
Canhões de água
Conforme o protesto crescia, aumentavam também as tensões. Em novembro, quando manifestantes tentaram furar um bloqueio para cruzar uma ponte, foram barrados com balas de borracha, gás lacrimogênio e canhões de água. Em outro embate, seguranças privados atacaram manifestantes com cães.
Integrante dos povos jicarilla apache e laguna pueblo, do Novo México (EUA), Eryn Wise, 26 anos, cuidava de adolescentes que voltavam feridos dos encontros. Muitos haviam decorado seu telefone ou anotado o número em seus corpos. Alguns tinham só 13 anos.
Wise largou um emprego na área de marketing em agosto para se juntar ao acampamento, onde já estavam dois irmãos mais novos.
A indígena, que tentou se matar aos 11, associa o movimento contra o oleoduto ao combate aos suicídios, ao alcoolismo e ao consumo abusivo de drogas em reservas.
“Não havia álcool nem abuso de drogas em nossas terras antes da chegada dos brancos. O álcool nos foi dado num ato de guerra. O oleoduto é mais um ato de guerra”, ela diz.
Segundo o governo federal, a mortalidade por alcoolismo entre indígenas americanos é o triplo da registrada na população geral. O índice de suicídos é mais de duas vezes maior e afeta principalmente jovens.
Indígenas associam os problemas à marginalização e à violência que sofrem desde a chegada dos colonizadores europeus. Dizimados por doenças e guerras, os povos se dispersaram e hoje vivem em frações de suas terras.
Mas não desapareceram. Segundo o governo dos EUA, há hoje no país 5,2 milhões de pessoas que se identificam como indígenas ou parcialmente indígenas, que pertencem a 562 povos e habitam 362 reservas.
Centenas desses povos enviaram representantes ao acampamento, algo inédito na história do movimento indígena americano. A mobilização contra o oleoduto foi comparada a grandes protestos do passado – como o de Wounded Knee, em 1973, quando indígenas ocuparam por 71 dias parte da reserva Pine Ridge, em Dakota do Sul.
Iniciado por jovens, o protesto em Standing Rock acabou por incorporar líderes mais velhos. Mas os jovens continuaram a ter voz no movimento e, pela primeira vez, ganharam espaço no conselho de anciãos que definia as estratégias.
“Eles perceberam que tínhamos coisas válidas a oferecer”, conta Lopez, referindo-se à desenvoltura do grupo no manuseio de tecnologias. “Temos jovens de 16, 17 anos com mais de 30 mil seguidores nas redes sociais. Nós dominamos meios que eles não dominam.”
Mortos e vivos
O protesto atraiu ainda indígenas do Canadá, América Central, Bolívia, Oceania e Noruega – e reverberou também no Brasil.
A indígena brasileira Daiara Tukano, que acompanhou o movimento pela internet, diz que os manifestantes tinham as mesmas preocupações que índios contrários a hidrelétricas na Amazônia.
Ao citar a oposição do povo Munduruku à construção de usinas no rio Tapajós, no Pará, ela diz que os indígenas não temem apenas os impactos das obras no território onde vivem, mas a violação de uma lei natural que teria implicações tanto para vivos quanto para mortos.
“Há um entendimento de que a água e o ar não têm fronteira. Estamos bebendo a mesma água e respirando o mesmo ar que todos os nossos antepassados beberam e respiraram”, ela diz.
“É mais do que uma diferença sobre religião ou espiritualidade: é outra forma de perceber o mundo, de perceber os ciclos em que estamos inseridos enquanto seres vivos”, afirma.
Retorno à terra
Em Standing Rock, os indígenas voltam a se organizar para enfrentar o oleoduto – agora que a retomada de sua construção foi ordenada pelo governo Trump.
Eryn Wise diz que a experiência no acampamento mostrou a muitos povos que andavam afastados que, “se nos unirmos contra as pessoas que querem nos destruir, teremos mais chances de vencer”.
Qualquer que seja o desfecho, Wise e outros jovens parecem ter encontrado um propósito maior no movimento. Ela conta que Standing Rock a ligou aos antepassados que viveram sucessivos traumas nos últimos séculos, mas mesmo assim passaram adiante seus cantos, rezas e histórias.
“Não importa o quanto nos colonizem, nós vamos sempre voltar.”
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Imagem: Para Thomas Lopez, Standing Rock se tornou um movimento de afirmação – MADELINE COTTINGHAM