Sucena Shkrada Resk – ICV
Os dias de abundância de peixe acabaram. Onde estão os bagres e os tucunarés? Por que estão desaparecendo? E espécies migratórias, como cachara, jaú, mantrinxã, pirarara e piraíba? Essas perguntas se repetem frequentemente entre as comunidades indígenas Apiaká, Kayabi e Munduruku, na sub-bacia do Teles Pires, entre Mato Grosso e Pará, que pertence à Bacia do Tapajós. O sinal de alerta vem sendo dado nos últimos anos, no decorrer do processo de instalação e funcionamento de grandes empreendimentos hidrelétricos em seu curso – a Usina Hidrelétrica (UHE) Teles Pires, já em atividade, e a São Manoel, em fase final de construção. Estes povos temem o risco da insegurança alimentar e da destruição das raízes culturais de seus povos e demais ribeirinhos.
A ausência de respostas objetivas ao problema, até agora, por parte das empresas e de órgãos fiscalizadores, além de medidas de mitigação (redução de danos), deixa estes povos apreensivos. Estas reivindicações já estão sob apuração da Procuradoria da República do Ministério Público Federal, em Sinop, MT.
A diminuição da qualidade das águas e da ictiofauna foram relatadas por estes indígenas no dossiê “Barragens e Povos Indígenas no Rio Teles Pires: Características e Consequências de Atropelos no Planejamento, Licenciamento e Implantação das UHEs Teles Pires e São Manoel”, produzido pelo Fórum Teles Pires (FTP). Entre os encaminhamentos, em julho deste ano, houve uma reunião entre representantes das três etnias, de órgãos governamentais, sob a mediação da procuradoria da república, em Sinop/MT, na 6ª Câmara de Coordenação e Revisão (CCR) da PGR, responsável por assuntos indígenas, em Brasília. Agora, os indígenas aguardam o prosseguimento dos acordos feitos durante o encontro.
Mudanças a olho nu
As narrativas sobre estas alterações que afetam o modo de vida desses povos são contínuas. “A água do rio fica igual maré, sobe e desce muito rápido. Houve uma mudança muito grande depois do empreendimento. Os peixes não têm mais a mesma qualidade. Agora estamos vendo passar nas águas, peixes, botos e jacarés, o que antes não era comum”, relata Eliano Waro Munduruku. “Se acabar o peixe, como vamos sobreviver”, desabafa João Kirixi Munduruku.
Arlindo Kaybi, que nasceu na aldeia em 1978, afirma que as mudanças são significativas. “O rio está completamente sujo, não conseguimos mais utilizar uma flecha para pescar. Os peixes também estão se distanciando, e estamos passando por essa dificuldade agora” conta. No Projeto audiovisual Vozes dos Atingidos, do Fórum Teles Pires, dez depoimentos expõem este cenário.
O que tem sido observado, é que igapós, que são berçários de reprodução e crescimento de diferentes espécies, estão se tornando raros na região. Materiais orgânicos em excesso nas águas têm alterado a cadeia trófica, dos plânctons aos peixes. Cada vez mais os indígenas avistam exemplares magros. Os tracajás, outra importante base alimentar indígena, já não têm mais praias para se reproduzir. Este cenário reflete um estado de degradação crescente, segundo eles.
Efeitos cumulativos
“Com o término dos igapós, existe a redução da dispersão de sementes pelos peixes e com isso, pode afetar também as árvores frutíferas na floresta. Isso ocorre, porque o trato digestivo dos peixes facilita que a semente brote”, explica Nelson Flausino Júnior, biólogo especialista em ictiofauna e doutorando em Zoologia, que fez levantamentos em campo nesta região, neste ano, com a autorização dos indígenas, pelo FTP.
“O rio Teles Pires é dividido em ‘dois rios’ – à montante da UHE Teles Pires e outro à jusante. Não existe mais condições de os peixes e organismos aquáticos migrarem rio acima. Isso traz uma série de consequências, como os peixes terem que achar uma rota alternativa de migração”, diz o ictiólogo.
Além desta situação, Júnior expõe que o regime fluvial (variação do volume da água) está alterado. “Mesmo com a UHE Teles Pires funcionando a fio d“água (menor reservatório e menor tempo de retenção de água), teoricamente estaria liberando água como se fosse o rio, mas isso não está acontecendo. A UHE está retendo água, modificando o regime de cheia e seca. Além de reduzir o tamanho das áreas inundadas na parte do baixo rio Teles Pires, onde ficam os povos indígenas”, explica.
Outros impactos observados, segundo ele, são a mudança na carga de sedimentação, na temperatura e na qualidade da água, na dinâmica de populações e de comunidades de peixes.
O resultado desta série de interferências é a modificação nos habitats dos peixes. “Programas de monitoramento devem propor ações de manejo, verificando as diferenças que ocorreram logo após a construção da UHE. Quando a UHE São Manoel começar a funcionar o problema pode ser que os impactos que já estão ocorrendo possam aumentar, sendo cumulativos ou sinergéticos”, alerta Júnior.
Uma das principais recomendações, segundo o ictiólogo, é que não seja construída uma escada ou eclusa (elevador) para transferir peixes à jusante dessa UHE para o lago, já que a UHE Teles Pires não possui nenhum mecanismo de transposição.
Júnior destaca que a região do baixo Teles Pires, onde vivem estes povos indígenas, é um trecho de planície de inundação. “Existem poucas corredeiras e a presença de lagos e matas inundadas na cheia. A fauna teoricamente contém muitas espécies amazônicas”, explica.
Necessidade de mais estudos
Segundo os autores do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) da UHE São Manoel, não existem coletas históricas nesse trecho do rio, ou seja, pouco se sabe sobre a fauna de peixes e suas relações ecológicas. Mas no levantamento realizado por Júnior e equipe recentemente, foram identificadas cerca de 100 espécies. “Este número pode aumentar, conforme os peixes forem estudados por especialistas de cada grupo de peixes. Algumas espécies não puderam ter sua identificação confirmadas, podendo ser novas. Uma que só ocorria no alto rio Negro também foi coletada durante essa viagem”, expôs Júnior.
De acordo com o especialista, esta constatação em campo, reflete a importância de mais estudos sobre a ictiofauna desta região associados a ações mitigadoras e de planos de manejo. “Só assim poderemos indicar quais espécies são novas para ciência, que são endêmicas e que estão em risco de extinção. A bacia do Tapajós para muitos autores é considerada uma zona de endemismo, mais ainda precisa de muitos estudos. As espécies de maior relevância para as comunidades indígenas, são as que eles utilizam para alimentação, como peixes de escamas, grandes bagres e tucunaré. Outras espécies que fazem parte da sua cosmologia também são importantes”, relata.
No relatório “A Luta pelo Rio da Vida”, publicado pelo Greenpeace – Brasil, sobre o Tapajós, também existem menções à importância do monitoramento de espécies endêmicas (incluindo terrestres). O documento tem como contexto o processo de licenciamento da Usina de São Luiz do Tapajós, que foi cancelado pelo Ibama, em agosto do ano passado. A decisão foi reforçada pelos argumentos expostos pela mobilização dos munduruku e de outras comunidades, organizações e movimentos, além do MPF.
Júnior alerta sobre os impactos que estão ocorrendo desde a construção até a operação das Usinas. “Entre os físicos, estão a mudança nos habitats e qualidade da água; e biológicos, com ausência de rotas migratórias e alteração nas dinâmicas populacionais e na comunidade de peixes. A operação da UHE em cascata pode gerar impactos sinergéticos e cumulativos. Além dos outros empreendimentos que estão mais acima na cascata, como as UHEs Colíder e Sinop. Todas essas mudanças serão verificadas ao longo do tempo e com monitoramento”, analisa.
Segundo João Andrade, coordenador do Núcleo de Redes Socioambientais do Instituto Centro de Vida (ICV), apesar das constatações empíricas e científicas, as construções das UHEs Teles Pires e São Manoel foram feitas, o que evidencia que a construção é uma determinação política.