Protesto contra retrocessos nas políticas públicas do governo Bolsonaro marcaram ato que reuniu recorde de cem mil pessoas em Brasília durante os dias 13 e 14; mudanças nas regras da aposentadoria são a maior preocupação das mulheres do campo
Por Priscilla Arroyo, em De Olho nos Ruralistas
“Vamos renascer das cinzas, plantar de novo um arvoredo. Bom calor nas mãos unidas, na cabeça de um grande enredo”. Em uma nova versão, na voz de uma mulher, os versos de Martinho da Vila permearam a abertura da 6ª Marcha das Margaridas, ato que levou 100 mil mulheres à capital durante os dias 13 e 14. Trata-se de um número recorde de participantes da ação, que, desde 2000, acontece de quatro em quatro anos, com desfecho em Brasília. Esta edição aconteceu sob o lema “Margaridas na luta por um Brasil com soberania popular, democracia, justiça, igualdade e livre de violência”.
“Essa Marcha é especial, pois tem caráter de denúncia, pressão e resistência”, diz Mazé Morais, diretora da Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras (Contag), instituição que organizou a ação. Ela se refere à retirada de direitos conquistados na Constituição de 1988 pelo governo Bolsonaro, aos retrocessos nas políticas públicas e à paralisação de demarcação de terras indígenas.
Na terça-feira, mais uma notícia negativa: a Câmara aprovou a medida provisória definida como a da Liberdade Econômica (MP 881/2019). Entre outros pontos do enfraquecimento das regras trabalhistas, ela retira o direito à folga para os camponeses em período de safra. A medida será agora discutida no Senado. A reforma da aposentadoria, aprovada pelos deputados no dia 7, e que, segundo elas, “transfere para os mais pobres o ônus da crise”, foi um dos principais fatores de denúncia na marcha deste ano. O combate à violência contra a mulher foi o fio da meada entre as discussões.
“Nas ruas, aproximamos os nossos corpos e desenvolvemos uma relação de respeito. afirmou Deborah Duprat, procuradora federal dos Direitos do Cidadão, durante a sessão solene na Câmara em memória de Margarida Alves. “Isso é fundamental para avançarmos na luta contra os retrocessos que estão aí”. A líder sindical nordestina foi assassinada há 36 anos na porta de sua casa, com um tiro na cabeça, a mando de usineiros.
A sua história de luta inspira milhares de mulheres em todo o país, por isso ela dá nome à marcha. Neste ano, uma centena de Margaridas partiu do Parque da Cidade e caminhou até o Congresso, paralisando durante mais de três horas o Eixo Monumental, uma das principais avenidas de Brasília. Além da postura de resistência, as mulheres trouxeram de seus estados a vontade de trocar experiências, aprender para propagar os ensinamentos e fortalecer as companheiras de suas comunidades.
MUDANÇA NA APOSENTADORIA SE DESTACA ENTRE AS DENÚNCIAS
A resistência à perda de direitos está no topo da preocupação das militantes. A lista de fatores a serem denunciados é grande e engloba racismo, sexismo, intolerância religiosa, entre outros. As demandas são discutidas nas bases das comunidades por meio das 27 federações e 4 mil sindicatos que apoiam a ação durante ao menos seis meses que antecedem o encontro. “A marcha só coroa esse trabalho de instrução e troca de conhecimento”, diz Mazé.
Nesta edição, as mudanças nas regras da aposentadoria aprovadas pela Câmara no começo do mês foram uma das demandas mais latentes. O texto que tramita no Congresso iguala a idade mínima para as mulheres e homens do campo pararem de trabalhar, aos 60 anos. Hoje, elas se aposentam com 55. Como as trabalhadoras começam cedo na lavoura – em média aos 14 anos – elas teriam de trabalhar entre 41 e 46 anos para atingir a idade de aposentadoria. A expectativa de vida média, entre elas, não passa de 65 anos.
“Vamos para a roça todos os dias, embaixo de sol e de chuva”, diz Maristela Pereira Freitas, pequena produtora de abóbora, feijão e milho do povoado de Caroá, em Feira de Santana (BA). “Nos desgastamos mais que as mulheres da cidade. Por isso, 55 anos é o nosso limite para aposentar”. Ela espera completar essa idade mínima em setembro para poder, ao menos, diminuir o ritmo de trabalho. “Que o governo não venha mexer com a gente”.
VIOLÊNCIA CONTRA MULHERES DO CAMPO QUADRUPLICOU EM 2018
O combate à violência contra as mulheres é um dos principais motivos que trouxe Murici Pataxó à marcha. Ela habita a Aldeia Pataxó em Caraíva (BA). As mulheres indígenas protagonizaram pela primeira vez neste ano a sua marcha, com o lema “Território, Corpo e Espírito”. Depois, uniram-se às Margaridas. “É muito importante estar aqui e entender os nossos direitos”, diz.
É a primeira vez que Murici sai do seu estado para militar, mas as reuniões regionais nas associações locais já fizeram diferença na sua vida. “Aprendemos a enfrentar os homens, dizer não”, afirma. “Mas ainda tem alguns que batem em mulher. Isso tem que acabar. Por isso é importante estarmos unidas”.
A procuradora Deborah Duprat entende que as mulheres só serão completas quando estiverem comprometidas contra todo tipo de violência e dominação. “Temos muitas lutas que nos aproximam”, diz. “Somos todas indígenas, camponesas. Estamos lutando pelo nosso povo contra todo tipo de violência”.
Para além da violência doméstica, as mulheres também estão mais expostas a serem vítimas em meio a conflitos por território. Isso ocorre em paralelo à conquista de maior protagonismo nessa luta. De acordo com a Fundação Pastoral da Terra (CPT), 482 mulheres foram vítimas de violência durante conflitos agrários no ano passado, um aumento de 377% em relação a 2017.
TROCA DE SABERES É UM DOS PRINCIPAIS LEGADOS DA MARCHA
“Quando as teias de aranha se juntam, elas podem amarrar o leão”. O provérbio africano faz muito sentido para a agricultora sergipana Veronica de Souza Santos. Não à toa, ela repetia a frase efusivamente junto com milhares de vozes durante a abertura do ato. Vítima do machismo do pai, Verônica não pôde trabalhar até os 20 anos. A primeira viagem para fora de seu estado foi em 2007, para participar da Marcha das Margaridas, em Brasília.
“Aqui aprendi a reivindicar os meus direitos”, diz. Foi o acesso às informações de políticas públicas, adquirido por meio do contato com outras militantes, que ela conseguiu comprar o seu sítio, que foi financiado por meio do Programa Nacional de Crédito Fundiário — criado em 2003, durante o governo Lula. Lá ela garante o sustento de seus dois filhos e do marido plantando banana e criando gado. Em média, 800 pessoas são contempladas com o programa anualmente.
“Não podemos perder direitos como esse”, diz Verônica. Inspirada pelas companheiras, ela se tornou uma das principais militantes do município de Lagarto (SE), onde coordena a Secretaria de Política para Mulheres do Sindicato dos Trabalhadores Rurais. Elas se organizaram para levar 40 mulheres para a marcha:
– Vendemos doces e fizemos rifa. É importante entender os nossos direitos para propagar esse conhecimento. Isso é a nossa revolução.
Foto principal: homenagem a Mariele Franco, vereadora do PSOL assassinada em 2018. (Victor Moreira/De Olho nos Ruralistas)
E ela é linda de fato,Victor. Parabéns!
Tirei essa foto com todo o carinho do mundo. Quase a perdi porque queria fazer a foto perfia, por isto ficou quase perfeita