Sônia Guajajara: “Retrocessos mostram que deve haver indígenas no Congresso”

À DW, Sônia Guajajara fala sobre sua candidatura à deputada federal e as pautas da Bancada Indígena, lançada nestas eleições. “As pessoas precisam entender que o modo de vida indígena preserva o meio ambiente”, diz.

Laís Modelli, na Deutsche Welle

Internacionalmente conhecida pelo nome do seu povo, Sônia Guajajara é Sônia Bone de Souza Silva Santos, educadora e enfermeira nascida na Terra Indígena (TI) Arariboia, no Maranhão. Uma das principais lideranças indígenas em atividade, a maranhense é coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e cofundadora da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (ANMIGA).

Em 2018, Sônia se tornou a primeira indígena do Brasil a disputar as eleições presidenciais (como vice de Guilherme Boulos, pelo Psol. Neste ano, concorre ao cargo de deputada federal por São Paulo, também pelo Psol. Uma de suas principais bandeiras, além da retomada da política de demarcação de territórios indígenas, é o incentivo ao pequeno agricultor e à agroecologia. “Não é possível seguir subsidiando o agronegócio como a única alternativa de crescimento econômico do Brasil”, defende.

A candidatura de Sônia compõe uma das 30 que formam a inédita Bancada Indígena, lançada em agosto pela Apib com o slogan “Retomando o Brasil: demarcar territórios e aldear a política”. A ativista ressalta com orgulho que mais da metade da bancada é feminina. “Para as indígenas, a luta por igualdade de participação é secular, e nós já rompemos muitas barreiras”, diz.

Aos 48 anos, a candidata afirma que demorou quase 30 para entender que “a violência contra indígenas é parte de um sistema que é violento com os povos tradicionais” e faz um balanço de sua trajetória ativista, lembrando o que serviu de combustível para a sua luta: Sônia passou a adolescência assistindo a caminhões com madeira circularem em seu território e vendo seu povo ser assassinado. Uma semana após a entrevista a seguir à DW, concedida no fim de agosto, dois homens Guajajaras foram mortos a tiros na TI Arariboia.

Atual membro do conselho da Iniciativa Inter-religiosa pelas Florestas Tropicais do Brasil, do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), Sônia também é figura pop: em 2017, foi convidada por Alicia Keys para subir ao palco do Rock’in Rio. Em 2020, conheceu o ator e ativista ambiental Leonardo DiCaprio em um evento do Oscar em Los Angeles, para onde viajou a convite da diretora Petra Costa, cujo documentário Democracia em vertigem concorria ao prêmio. Em 2022, foi eleita pela revista Time como uma das cem pessoas mais influentes do mundo.

“Eu tenho viajado muito, mas a TI Arariboia é onde eu tenho minha casa, minha família, minha base”, afirma Sônia, que mora com a família na aldeia Lagoa Quieta, dentro da terra indígena, a 670 quilômetros da capital São Luís.

Na conversa a seguir, Sônia também lembra da escassa participação indígena no Congresso Nacional, com apenas dois representantes em 40 anos: Mário Juruna, eleito deputado federal em 1982, e Joenia Wapichana, eleita em 2018.

DW: Nos últimos 20 anos, cerca de 50 indígenas do povo Guajajara foram assassinados em decorrência de conflitos por terra, segundo o relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Como você percebia a violência contra o seu povo antes de se tornar uma liderança?

Sônia Guajajara: Eu não percebia, não tinha essa dimensão de perceber a violência contra indígenas como uma violência política, como algo externo ao território. Para mim, a violência era decorrente de problemas locais e que repercutiam ali. Demorou muito para eu entender que a violência contra indígenas faz parte de um sistema que é violento com os povos tradicionais, uma violência corriqueira e até planejada contra indígenas.

Então, quando você percebeu que os ataques ao seu povo faziam parte de uma violência sistemática contra povos indígenas no país?   

Olha, demorou muito. Eu já devia ter uns 27 anos quando percebi que a violência contra os indígenas era resultado de uma briga territorial, de uma disputa pela terra. Eu digo 27 anos porque foi a época em que participei pela primeira vez de um encontro nacional de povos indígenas, em Brasília. Foi somente lá que entendi que existia essa luta por terra, que existia essa violência contra indígenas que viviam em retomada de seus territórios e precisavam enfrentar o Estado. Foi nessa conferência que eu vi que nem todos os indígenas tinham sua terra demarcada, e, mesmo os que tinham, enfrentavam essa violência. Foi depois desse encontro que também percebi que os caminhões que eu via carregados de madeira saindo do meu território todos os dias eram exploração ilegal.

A terra indígena Arariboia, quando eu era menina, era mata fechada. Tinha muitos animais, diversidade de árvores nativas. Tinha muita sombra e muitos igarapés, mas hoje o território está totalmente mudado. O desmatamento cresceu muito, e com ele vieram as queimadas e a seca, muitos riachos secaram. O que eu vejo hoje em Arariboia, comparado ao que era na minha infância, é uma tragédia.

Os caminhões carregados de madeira que saíam de Arariboia marcaram sua infância?

Sim, muito, até porque o único transporte que tinha para a gente se deslocar era o caminhão madeireiro. Então a gente tinha uma relação próxima, considerava todo mundo muito amigo, e queria manter essa amizade para ter a condição de deslocamento, tanto de uma aldeia para outra quanto da aldeia para a cidade.

Você ainda mora na TI Arariboia, no Maranhão. Por que sua candidatura à deputada federal é por São Paulo?

Eu tenho viajado muito, mas a TI Arariboia é onde eu tenho minha casa, minha família, minha base. Este ano, estou distante porque estou em campanha eleitoral, então viajo da aldeia para São Paulo para fazer a campanha, mas lá é meu lugar de retorno. Lançar a minha candidatura por São Paulo é uma decisão do movimento indígena, uma estratégia para fortalecer a Bancada Indígena e dar visibilidade a esse projeto político. Eu também vim para São Paulo para articular de forma mais macro com outros movimentos sociais. E São Paulo é a maior cidade do país, tem o maior colégio eleitoral, então é aqui que temos que estar.

O movimento indígena parecia não querer proximidade com a política partidária nos anos passados, mas esse distanciamento começou a mudar nas últimas eleições. O que levou o movimento a querer concorrer a cargos políticos?

De fato, o movimento indígena tinha muita resistência à política partidária e não assumia posição partidária nos períodos eleitorais. Em 2017, a gente entendeu que, com os retrocessos aumentando no Brasil, aumentava a violência e a violação de direitos dos povos indígenas, aumentava a nossa dificuldade de ter acesso ao Congresso e de participar dos debates de leis que interferem diretamente na nossa vida. Diante disso, decidimos que era importante ter representações no Congresso Nacional.

Em toda a história, só tivemos Mário Juruna, que foi eleito lá em 1982, depois foram 36 anos de ausência de representação indígena no Congresso até a Joênia Wapichana. Em 2017, a Apib lançou uma carta no Acampamento Terra Livre (ATL), que é a maior assembleia dos povos indígenas do Brasil e já considerada a maior mobilização indígena do mundo, se manifestando por um Parlamento cada vez mais indígena. Se é no Congresso Nacional que as coisas são decididas, é ali que nós indígenas também temos que estar.

É aí que você entra de vez para a política institucional…

Sim. A gente articulou a participação indígena na chapa presidencial em 2018 e eu compus a chapa com o Guilherme Boulos como copresidenta, porque a gente não queria só um papel de figurante, a gente queria ter autonomia e participação igualitária. O resultado eleitoral não foi significativo, mas o político, sim, porque a chapa foi muito importante para dar visibilidade à nossa luta, além de aumentar as nossas articulações com outros movimentos. Agora, em 2022, a gente fez um novo chamado para aldear a política e o Acampamento Terra Livre trouxe o tema “Retomando o Brasil: demarcar territórios e aldear a política”, sendo que aldear não é mais só no sentido da presença, mas da participação indígena na construção de um novo país.

Das 30 candidaturas que compõem a Bancada Indígena, a maioria é de mulheres, com 16 candidaturas. É um levante de mulheres no movimento indígena?

É sim. Nós indígenas estamos na linha de frente. E não somente nós, pois essa luta por protagonismo feminino fez com que muitas mulheres hoje estejam à frente das principais lutas no Brasil.

Como você avalia a atuação da Fundação Nacional do Índio (Funai) antes e depois da chegada do presidente Jair Bolsonaro à Presidência, em 2019?

Antes do fascismo, a Funai era um órgão com a missão institucional de proteger e promover os direitos dos povos indígenas. Ela tinha uma credibilidade muito grande. Mas, neste governo, a Funai deixou de ser o órgão a serviço dos povos indígenas e passou a servir aos interesses de governantes. A instituição passou a perseguir indígenas e lideranças que se opõem ao governo Bolsonaro, inclusive. Eu sou um exemplo: a Funai tentou intimidar o movimento indígena quando quis me processar e criminalizar*.

A verdade é que a articulação do movimento indígena durante a pandemia incomodou muito o governo Bolsonaro. Além de não fazer nada pelos indígenas, ele [Bolsonaro] queria que a gente ficasse quieto. Por isso, o presidente da Funai tentou me processar, querendo me condenar por crime de lesa-pátria, mas a Polícia Federal concluiu que nenhum dos objetos de denúncia apresentados tinha sentido, que não houve nenhum crime.

[*Sônia Guajajara se refere ao episódio ocorrido em agosto de 2020, quando a PF abriu inquérito, a pedido da Funai, para apurar acusação de difamação do governo federal pela Apib por causa da websérie no Youtube Maracá, que mostra supostas violações de direitos contra os povos indígenas cometidas pelo governo Bolsonaro durante a pandemia de covid-19.]

Você costuma receber ameaças e intimidações?

Eu recebo muitos ataques nas redes sociais, como xingamentos e questionamentos sobre a minha liderança indígena. Fora isso, eu nunca recebi uma ameaça direta, seja por telefone ou pessoalmente. Isso mostra que as pessoas que atacam são covardes, porque falam nas redes sociais, mas não tem coragem de falar na cara.

A política de demarcação de territórios indígenas está paralisada desde 2019. O governo Bolsonaro é o primeiro desde a redemocratização do Brasil a não demarcar nenhuma terra. Qual a importância de se retomar tal política no próximo governo?

É fundamental que a política de demarcação de terras indígenas seja retomada. Já apresentamos a demanda como urgente para o [ex-presidente e candidato ao Planalto] Lula. Mas não basta só retomar essa política, precisamos fazer todo um trabalho de sensibilização para que as pessoas entendam o papel dos povos e territórios indígenas, que elas entendam que esse modo de vida preserva o meio ambiente. Em tempos de discussão de mudanças climáticas, a sociedade precisa compreender que os territórios indígenas se apresentam como a maior “tecnologia” que temos para reduzir as emissões de gases na atmosfera.

Uma das principais pautas da Bancada Indígena é a promoção da agroecologia e da agricultura familiar. Como promover essas agendas em um cenário político dominado pelo agronegócio?

Terá que existir uma mudança estrutural na política. Não é possível seguir subsidiando o agronegócio como a única alternativa de crescimento econômico do Brasil. E, para isso, é importante eleger representantes no Congresso Nacional que tenham essa sensibilidade de entender que as monoculturas do agronegócio apenas destroem o meio ambiente e não garantem nem alimento nem vida para ninguém. Esse modelo econômico com base na produção em grande escala para exportação já deu.

É preciso uma política que ressalte a importância de territórios indígenas e quilombolas demarcados e de assentamentos do pequeno produtor da reforma agrária regularizados. A gente precisa valorizar quem realmente produz o alimento. Essa história de que é o agronegócio que alimenta o Brasil, é tudo mentira, porque o agronegócio produz para exportar. Quem alimenta o Brasil é a agricultura familiar e quem mantém viva a maior biodiversidade do mundo somos nós, povos indígenas.

Como mulher indígena, como você entende o feminismo?

Olha, o feminismo é essa luta por igualdade, por participação e respeito, né? Mas,para nós indígenas, o que fazemos vai muito além dos conceitos e talvez não seja a palavra feminismo que venha descrever. Para as indígenas, a luta por igualdade de participação é secular, e nós já rompemos muitas barreiras, inclusive quebrando a barreira cultural de que mulher indígena não participa de decisão e não ocupa cargo de liderança. A gente vem quebrando esses tabus e ganhando a confiança e credibilidade dentro do nosso povo.

 

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