Estes fatos mostram por que a questão indígena é um tema urgente

Dois crimes chocam pelo seu grau de violência. Mas, infelizmente, não são casos isolados

Por Ana Freitas, no Nexo

Dois crimes brutais foram cometidos contra indígenas entre o fim de 2015 e o começo de 2016. Em Belo Horizonte, um índio sem rosto, sem etnia e sem nome foi espancado e morto enquanto dormia em uma calçada. Em Santa Catarina, um bebê da etnia Kaingang foi degolado por um estranho enquanto dormia nos braços da mãe, em uma rodoviária.

Apesar das circunstâncias cruéis dos dois crimes, eles falharam em gerar comoção na opinião pública. A polícia ainda não identificounenhum suspeito de espancar o homem em Belo Horizonte. Em Santa Catarina, as investigações levaram a um rapaz que confessou o assassinato do menino de dois anos e disse que o fez como parte de um sacrifício religioso. O advogado de Matheus de Avila Silveira alega que o acusado, que está em prisão temporária, sofre de distúrbios mentais.

Casos de violência contra povos indígenas, infelizmente, não são situações isoladas, de acordo com um relatório do Conselho Indigenista Missionário de 2014.

O documento mostra que a quantidade de assassinato de indígenas cresceu. E também expõe como a realidade desses povos lida com todos os tipos de violência: física, psicológica, cultural e social, além de violações aos direitos humanos. Diversos especialistas apontam o modelo desenvolvimentista de exploração ambiental adotado atualmente, e o fato de que ele coloca os índios como um entrave, como um dos grandes motores dessa violência.

Veja os números mais expressivos do relatório

HOMICÍDIOS

O número de homicídios contra os povos indígenas cresceu nos últimos anos. Em 2014, 138 indígenas foram assassinados, contra 97 casos em 2013.

SUICÍDIOS

O número de suicídios também é alto. Em 2014, foram 135 , a maioria entre jovens. Entre 2000 e 2014, somente no Mato Grosso do Sul, 707 índios cometeram suicídio.

MORTALIDADE INFANTIL

Os dados mostram que em 2014, foram 785 mortes de crianças indígenas entre 0 e 5 anos, com a maior quantidade de casos nas aldeias Xavante e Yanomami. Nas aldeias Xavante, a taxa de mortalidade infantil é cerca de 6,4 vezes maior do que a taxa média brasileira – são 141 óbitos a cada mil nascimentos.

AMEAÇAS

Ameaças de morte são frequentes. Foram registrados 50 desses casos em 2014, especialmente nos estados do Maranhão, Pará, Minas Gerais e Bahia. Espancamentos, humilhações e intimidações também aparecem no relatório.

DESASSISTÊNCIA

Em 2014, foram registrados 79 casos de desassistência em saúde, isso é, de ocasiões em que um indígena precisou de procedimento médico, exames e medicamentos e não teve acesso a eles. Além deles, foram registrados 21 óbitos nas aldeias e nas Casas de Apoio à Saúde Indígena.

DEMARCAÇÃO

Em 2014, das quase 600 terras indígenas que foram reivindicadas por esses povos, apenas duas foram identificadas, ou seja, já foram analisadas pela Funai e tiveram seus limites publicados em forma de decreto no Diário Oficial da União: Xeta Heharekã, no Paraná e Xakriabá, em Minas Gerais. Outra, Paquiçamba, em Minas Gerais, foi declarada, ou seja, foram reconhecidas em portarias do Ministério da Justiça. Nenhuma foi homologada pela Presidência da República.

MÁ QUALIDADE DE VIDA

No Mato Grosso do Sul, a maioria da população indígena vive confinada em reservas. São cerca de 40 mil pessoas com acesso ilimitado a direitos básicos – saúde, segurança, trabalho, espaços de lazer e a possibilidade de viver de maneira compatível com seus modos de vida. O relatório diz que esse dado está conectado ao alto número de suicídios.

CONFLITOS AMBIENTAIS

Em 2014, duplicaram as ocorrências de exploração ilegal de recursos naturais. Os 84 casos ficaram concentrados no Pará, Maranhão, Mato Grosso e Rondônia. Neles, muitas vezes, os indígenas tomam a frente na defesa do território. Acabam, por isso, sendo vítimas de violência. Ou seja: conflitos ambientais também resultam em violência contra esses povos.

O papel do Estado na proteção dos povos indígenas

O relatório faz um diagnóstico sobre quais os motivos que teriam causado o aumento da violência contra os povos indígenas. Para a organização, questões fundiárias, ampliação do poder político dos ruralistas, a adoção de uma política pública desenvolvimentista por parte do governo, truculência no trato dessas populações, impunidade e omissão do poder público, são os principais.

“Os povos indígenas estão sendo atacados sistematicamente e sofrem intenso processo de violências e violações no Brasil. O Poder Executivo tem responsabilidade direta nesse processo, pois não dá seguimento regular aos procedimentos de demarcação das terras indígenas, é omisso quanto à proteção das terras demarcadas e negligencia quanto ao atendimento à saúde dos povos. A impunidade retroalimenta a violência contra os povos”, disse o secretário executivo do Cimi, Cleber Busato, em uma audiência na CIDH, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em 2015.

Na mesma audiência, a Organização dos Estados Americanos cobrou o Brasil sobre os altos índices de homicídios de indígenas.

Na ocasião, a relatora da CIDH, Rose-Marie Belle Antoine, questionou a lentidão das investigações de crimes contra índios, enquanto aqueles que têm índios como réus avançam rapidamente no país, de acordo com ela.

Enquanto isso, a Funai (Fundação Nacional do Índio) trabalha com um orçamento cada vez menor. Em 2016, o órgão terá acesso a verba orçamentária mais baixa em quatro anos.

Em entrevista recente, o presidente da Funai, João Pedro Gonçalves,negou que haja um genocídio da população indígena e uma conivência do poder público com a impunidade desses crimes. Ele, no entanto, reconhece que o baixo orçamento não dá conta das necessidades da Funai. Gonçalves também afirma que “estamos vivendo um momento de poucos recursos e muita pressão política contra os indígenas”.

Para ele, a recém instauração de uma CPI no congresso para investigar a Funai e o Incra (Instituto de Colonização e Reforma Agrária) é uma tentativa de viabilizar a PEC 215, um projeto de lei que dará ao Congresso Nacional o poder de demarcar e regularizar terras indígenas.

Hoje, esse processo é responsabilidade da Funai e do Incra. Gonçalves teme a influência da bancada ruralistas nessas decisões, “o setor mais atrasado do Congresso”, nas palavras dele.

Origens sociais e culturais da violência#

De acordo com o professor Pedro Cesarino, do departamento de Antropologia da USP (Universidade de São Paulo), é a mesma impunidade – a falta de investigação e de punição para crimes contra esses povos – que alimenta casos de violência e de crime de ódio como os que aconteceram no país no último mês.

Cesarino diz que a violência contra esses povos está embutida na formação do Brasil. “Nosso país surge da violência. Nos fundamos sobre alguns dos dois maiores genocídios da história, o da população ameríndia nativa e o dos povos africanos. E não existe uma memorialização desses genocídios, isso não é lembrado ou discutido como se deveria. É um problema de identidade formadora, as pessoas não internalizam isso em sua formação”, explica.

A falta de identificação cultural dos brasileiros com suas raízes nativas também é um fator que legitima casos de violência e violações dos direitos humanos contra os indígenas. Como não reconhece suas origens nativas, a população não cria empatia com essas questões. O relatório do Cimi traz um exemplo bem claro das consequências dessa falta de identificação, que aconteceu com a mesma etnia a que pertencia o bebê degolado em Santa Catarina. Leia:

“Articulado por agricultores e comerciantes, um grupo de pessoas insurgiu-se contra os Kaingang que vivem acampados na beira de uma estrada estadual. O grupo chegou ao acampamento indígena de surpresa, destruiu os barracos, removeu os pertences das famílias e colocou tudo em um caminhão. Obrigados a embarcar em um ônibus, que os conduziu por 130 km, os Kaingang foram despejados em frente à sede da Funai, em Passo Fundo, onde seus objetos pessoais, removidos do acampamento, também foram deixados.”

O pesquisador menciona dois momentos históricos que contribuíram para esse distanciamento e não identificação do brasileiro de sua identidade indígena. Leia:

Quando a identidade brasileira se afastou da figura do índio

  • No século 19, a literatura popularizou a figura do índio romantizado, como nos romances Iracema e O Guarani, de José de Alencar. Esse índio é uma idealização, produzido por uma necessidade de ideologia nacional. E em um período próximo, no fim do século 19, a revolução industrial traz a necessidade de construção de ferrovias e rodovias no interior do país, o que culmina em outro episódio de genocídio contra as populações indígenas que habitavam essas regiões. O resultado: a imagem romantizada de índio nacionalista se descola das populações indígenas reais.
  • O momento histórico atual é de desenvolvimentismo desenfreado. Isso faz com que a população indígena seja vista como um “empecilho” para que o Brasil “se torne uma potência mundial”. Apesar de isso ter acontecido também na ditadura, essa mentalidade foi atualizada recentemente com episódios como o da construção da usina de Belo Monte, na bacia do rio Xingu, em Altamira, no norte do Pará. A construção da hidrelétrica afeta 30 terras indígenas e 12 unidades de conservação.

Destaque: Cerca de 140 indígenas Munduruku se reúnem com o ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Gilberto Carvalho, e representantes de outros órgãos do governo para discutir a suspensão de empreendimentos energéticos na Amazônia e outras reivindicações indígenas. Agência Brasil.

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