Espaço Urbano, Rebeldia e Arte Crítica

Se a política reduziu-se a simulacro e mesmice, resistência pode estar nas cidades; em sua capacidade de promover encontro e agitação e de fazer da Cultura um desafio ao consenso dominante

Por Rui Matoso – Outras Palavras

O direito à cidade é muito mais do que a liberdade individual
e o acesso aos recursos urbanos, é o direito
de nos transformarmos a nós mesmos
ao mesmo tempo que transformamos a cidade.
David Harvey, The right to the city

O Estado não deve desempenhar funções
que pertencem aos indivíduos e à sociedade,
sobretudo quando se apropria de atividades
não para as fazer funcionar melhor,
mas para aumentar o seu poder.
António Teixeira Fernandes

Os partidos da esquerda parlamentar, os ativistas e os movimentos sociais comprometidos com a defesa de uma sociedade civil plenamente desenvolvida onde predomine uma cidadania ativa, responsável e emancipada, devem unir esforços no sentido de ampliar os mecanismos democráticos à escala municipal, debatendo e propondo medidas que visem a revitalização da participação política e cultural enquanto ação coletiva do direito à cidade.

1 – Estas duas dimensões do urbanismo e da democracia contemporânea — a do direito à cidade e a da política dos comuns — assumem hoje uma importância redobrada dada a encruzilhada em que nos encontramos enquanto cidadãos do mundo, mas acima de tudo enquanto cidadãos que habitam um determinado território geográfico. A importância da cidade é historicamente inestimável, pois não há política sem cidade, não há história sem a história da cidade e, nesse sentido, a cidade é a maior forma política da história.

2 – Afirmar o direito à cidade equivale a afirmar o direito à cultura, o direito à participação e à construção da vida pública – fazer cidade –, pois sem cidade não há cultura e vice-versa. Portanto é também este binômio cidade-cultura que nos interessa particularmente, ou trinômio: cidade-cultura-cérebro (consciência e processo de individuação coletiva e psicológica), que aliás hoje tem de contar ainda com a esfera cibernética, isto é, com o ambiente tecnológico em que estamos imersos e que nos afeta constantemente na era da ubiquidade computacional. A este propósito, não esqueçamos o que dizia Marshal Mchluan – que os media (as tecnologias de comunicação e informação em geral) agem como extensões do nosso sistema nervoso central. O modelo computacional das Smart Cities, é já hoje o paradigma da computação urbana e do controle dos fluxos de informação entre cidadãos-cyborg e a Internet das coisas impregnada na cidade.

3 – Dito isto, comecemos, em jeito de diagnóstico, por uma afirmação de Edgar Morin: “Quando um sistema é incapaz de tratar os seus problemas vitais, se degrada ou se desintegra ou então é capaz de suscitar um meta-sistema capaz de lidar com seus problemas: ele se metamorfoseia”. Esta metáfora da “metamorfose” é útil para sublinhar a encruzilhada em que nos encontramos na atualidade, depois de décadas de globalização financeira, econômica e cultural, neoliberalismo, privatizações, desregulamentação dos mercados, militarização, vigilância e controle biopolítico, despolitização em larga escala, crise&troika, antropoceno, capitaloceno, alterações climáticas, TTIP, automatização e desemprego galopante, terrorismo e Estados de exceção (que segundo Giorgio Agamben são a forma moderna de Estado)…

4 – Em suma, ou nos metamorfoseamos ou desaparecemos, ou seja, ou nos rendemos à barbárie ou avançamos e mudamos de vida. Isto enquanto diagnóstico global tem também, obviamente, implicações à escala urbana, pois o “efeito borboleta” é bem real. Pergunta Immanuel Wallerstein: “Quem vencerá esta batalha? Ninguém pode prever. O resultado será determinado por uma infinidade de nano-ações, adotadas por uma infinidade de nano-atores, numa infinidade de nano-momentos. Em algum ponto, a tensão entre as duas soluções alternativas vai pender definitivamente em favor de uma ou outra. É o que nos dá esperança. O que cada um de nós fizer a cada momento, sobre cada assunto imediato, importa.” (A crise do capitalismo e o efeito-borboleta.)

5 – Ou seja, o que cada um de nós conseguir fazer à sua escala humana de interação – a escala urbana – é determinante para a “metamorfose”. Aliás foi para isso que a cidade foi inventada, como espaço relacional a Polis é antes de mais o coletivo dos seus cidadãos. Antes de ser um aglomerado de casas e ruas, a cidade é uma unidade sociocultural e política. Nesse sentido, a cidadania forma-se na vivência e na aprendizagem em conjunto, ou seja, a partir daquilo que Aristóteles designou como synoikismus: a sinergética e vital condição humana do viver em conjunto, a sua condição de Zoon politikón, do homem enquanto animal político.

6 – A cidade deveria ser então a mais complexa forma das realizações humanas (no plural), permitindo a vitalidade e a diversidade cultural, a formação de capital social, a valorização dos indivíduos, do quotidiano e dos espaços públicos socialmente apropriados. E na realidade o potencial existe, existem estruturas administrativas públicas, instituições e serviços públicos, mas como construir projetos coletivos na e para a cidade no atual contexto global, europeu, nacional e local? Pergunta o geógrafo João Seixas (2012, A Cidade na Encruzilhada, Edições Afrontamento): Que novas estratégias adotar para o aprofundamento das estruturas democráticas e das cidadanias? David Harvey responde que é necessário um sentido metabólico de constante construção social, exigindo culturas, estruturas democráticas e comunicacionais, a que chamou “utopia dialética”.

7 – Apesar do potencial existente, como é constituída a realidade urbana atual? De acordo com Seixas, o diagnóstico coincide com aquilo que muitos de nós intuem ou se confrontam na prática: “uma parte considerável do poder local encontra-se aprisionada por aparelhos partidários com estratégias laterais e parcelares muitas vezes distintas das que poderiam prosseguir objetivos mais coletivos (…) um débil sentido de estratégia e de planeamento pró-activo (…) o desinteresse no desenvolvimento de culturas activas de cooperação e de subsidariedade, a considerável distância face aos cidadãos e às suas formas de expressão cívica (…) a falta de espaços e de processos de participação dos cidadãos na vida da sua cidade”.

8 – Como reflexo de uma democracia e poder local centrados na figura do César local (presidente de Câmara, em Portugal; prefeito, no Brasil), diz Manuel Villaverde Cabral: “os portugueses têm ‘muito’ ou ‘algum’ receio de exprimir publicamente uma opinião contrária à das autoridades políticas”1. Todavia, esse silêncio não deve ser interpretado prematuramente como sinal de harmonia e paz social. Também neste contexto, diz Arnaldo Ribeiro – em estudo sobre Governância Municipal – que “o panorama nacional não será portanto muito animador neste domínio, com o recalcamento da participação dos cidadãos nos assuntos da coisa pública.” De forma idêntica, a análise do think thank Demos intitulada Everyday Democracy Index, coloca Portugal no 21º lugar no contexto dos vinte e cinco países da União Europeia. No conjunto dos indicadores utilizados, aquele que mais contribui para esta fraca posição é o relativo à participação cívica.

9 – Do ponto de vista do poder, qual a essência da cidade? Henri Lefebvre diz que pela ótica do poder, a cidade, “desde há um século, fervilha de atividades suspeitas, de delinquências: é um centro de agitação. O poder do Estado e os grandes interesses econômicos só podem conceber uma estratégia: desvalorizar, degradar, destruir a sociedade urbana.” (2012, O Direito à Cidade, Lisboa: Letra Livre, p. 87)

10 – Depois deste breve diagnóstico, o que fazer? Lefebvre é muito explícito: “Trata-se, em primeiro lugar, de desfazer as estratégias e ideologias dominantes na sociedade atual (…) O “urbano” é assim obra dos citadinos e não algo que lhes seja imposto como um sistema: como um livro concluído (…) É uma forma mental e social: a da simultaneidade, a da reunião, da convergência, dos encontros, um conjunto de diferenças. É um campo de relações.” (idem., p. 114)

11 – Mas “as estratégias e ideologias dominantes” estão entranhadas/ incorporadas nas instituições sociais, culturais e nos serviços públicos – a inércia, o laissez faire laissez passer – o deixa andar impregnado pela lógica mercantil. Daí ser necessário uma estratégia de práticas instituintes no seio das instituições, que provoquem a sua re-instituição democrática de alta intensidade, recentradas na mobilização de recursos e condições para o exercício pleno das cidadanias. É preciso pois fazer infletir as instituições existentes, abrir uma brecha e reivindicar um horizonte de novas exigências socioculturais.

12 – As instituições políticas existentes precisam de ser reconfiguradas de modo a satisfazer novos anseios populares, defende o sociólogo António Teixeira Fernandes, pois a “cada fase de desenvolvimento da democracia deve corresponder, na verdade, a sua própria forma de organização”. As práticas instituintes contra-hegemônicas, e em particular as práticas artísticas têm uma relação necessária com a política, porque, ou contribuem para a reprodução do consenso operacional que cristaliza uma determinada hegemonia, ou o desestabilizam. As práticas artísticas críticas são aquelas que, de várias maneiras, desempenham um papel no processo de desarticulação / rearticulação que caracteriza a política contra-hegemônica. Uma política contra-hegemônica pretende atingir as instituições que destilam e solidificam a hegemonia dominante, a fim de provocar transformações profundas na forma como elas funcionam. Uma estratégia de “guerra de posição” (Gramsci) é composta por uma diversidade de práticas e intervenções que operam numa multiplicidade de espaços: econômicos, legislativos, políticos e culturais. Neste contexto, afirma Chantal Mouffe: “As práticas artísticas críticas não contribuem para a luta contra-hegemônica abandonando o terreno institucional, mas apenas envolvendo-se nele com o objetivo de fomentar a dissensão e criar uma multiplicidade de espaços agonísticos, onde o consenso dominante é desafiado e onde novos modos de identificação são disponibilizados (…) Na nossa atualidade pós-política, em que o discurso dominante tenta obstruir a própria possibilidade de uma alternativa à ordem atual, todas as práticas que possam contribuir para a subversão e a desestabilização do consenso neoliberal hegemônico são bem-vindas.”

13 – Há muitos e excelentes exemplos no campo pragmático das práticas culturais em geral, e artísticas em particular. Uma política fundamentada como direito universal, como bem comum e como setor produtivo, que antes de mais parte do reconhecimento da sua dimensão política, isto é, da convicção de que a transformação cultural está intimamente ligada à transformação do político, é um eixo fundamental da proposta do Podemos-cultura: a arte e a cultura partilham com a política a capacidade de ampliar os horizonte de possibilidade, permitem-nos construir enquanto comunidade um presente concreto para imaginar um futuro que não nos pode ser roubado. Neste sentido, a cultura – enquanto matéria de política pública – é entendida como capacidade ativa de cidadania, ou seja, como conjunto de ferramentas simbólicas e conceituais que os membros de uma comunidade necessitam para lidar com a realidade difusa do mundo contemporâneo e para elaborar novas estratégias de vida coletiva.

14 – Na esfera das artes contemporâneas, as estratégias situacionistas de detournement dos Yes Men, a variedade de lutas urbanas do coletivo Reclaimg The Streets, o acampamento, a desobediência civil anti-troika de Núria Güell, a ocupação do Museu Chiado e outras iniciativas de artivismo promovidas por Rui Mourão em Lisboa, entre exemplos possíveis, demonstram a implicação social e a potência disruptiva de projetos artísticos comprometidos com a proposta de um horizonte radicalmente democrático e emancipador, isto é, com a democratização da democracia, o que não significa “a queda na anarquia nem sequer no populismo, traduz antes o respeito pela expansão dos direitos humanos e pela afirmação de uma cidadania ativa” (António Teixeira Fernandes).

15 – A crise financeira de 2008, e os seus efeitos subsequentes, para além dos problemas políticos e sociais, vieram confirmar as teses de Negri e Hardt acerca da passagem do direito público nacional para o sistema imperial, leia-se perda de soberania econômica e política para as mãos do Eurogrupo e FMI, e trouxe também o reforço da ideia de “multitude” e uma visão da possibilidade da cidadania global.

16 – A noção de Bens Comuns (commons), a par da noção de Espaço Público (Esfera Pública Urbana e Comunicacional – Relacional), incide sobre os bens que se revelam indispensáveis para a garantia da vida de todos – água, ar, bioesfera, alimentação, habitação, – e os serviços públicos necessários a uma vida digna. Este era um entendimento histórico pré-capitalista, mas a sacralização capitalista da propriedade privada como matriz da relação entre pessoas e as coisas, e a transformação de coisas e pessoas em mercadorias potenciais levou à quase extinção da realidade dos bens comuns em favor da sua apropriação privada. É essa a história do neoliberalismo contemporâneo e do fascismo financeiro (Boaventura Sousa Santos), quando se começou a apropriar dos bens e serviços essenciais à vida digna de todos: da privatização da água às florestas, à educação e saúde…

17 – Como se sabe, os governos nacionais têm basicamente servido de intermediários dos mercados financeiros na facilitação da transferência de recursos do trabalho para o capital, na facilitação da privatização de serviços públicos e na consequente diminuição da ação política à mera gestão econômica e burocrática dos ditames de Bruxelas.

18 – A resposta a este novo e mais intenso ataque neoliberal, podemos encontrar no paradigma histórico-revolucionário da Primavera de Praga (1968); vimos há pouco tempo como a Primavera Árabe (2010) reacendeu a luta contra as ditaduras e a opressão dos povos nas praças Tahrir e Taksim; seguiram-se os Indignados, o movimento 15M em Espanha (2011), depois os Occupy nos EUA, as praças Syntagma na Grécia, movimentos que deslocaram peças centrais nas engrenagens da máquina política e continuam a surpreender aqueles que pensavam que estes movimentos não iriam resultar em nada. O movimento Barcelona en Comú é, por sua vez, expressão de um novo municipalismo radical que propõe o fortalecimento da gestão comum da saúde, política de habitação, ocupação dos espaços públicos, uma plataforma aberta e participativa que agregou a multiplicidade cidadã presente na cidade e seu desejo de fazer política fazendo a própria cidade, a produção de novas institucionalidades enraizadas na vida quotidiana – o fazer-cidade como o fazer coletivo que produz a política desde baixo. Em Portugal, o Habita – Colectivo pelo Direito à Habitação e à Cidade , vem defendendo e agindo para que a habitação e o urbanismo sejam parte de uma política pública verdadeiramente participada e que combata todas as formas de especulação imobiliária.

Rui Matoso é especialista da European Network Expert on Culture e investigador da European Communication Research and Education Association. Gestor e Programador Cultural. Professor na ECATI – Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias (Lisboa), no Mestrado em Gestão e Programação Cultural e na Licenciatura em Ciências da Comunicação e da Cultura/Ramo de Gestão das Artes. É investigador no CICANT e doutorando em Ciências da Comunicação. Mestre em Práticas Culturais para Municípios – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa (2008), tendo anteriormente realizado uma Pós-Graduação em Gestão Cultural na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias(2006). É formador certificado pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional (CAP) e pelo Centro Científico-Pedagógico da Formação Continua (reg nº CCPF/RFO-32391/12).

Foto: David Harvey fala, em 2014, aos participantes do movimento Ocupe Estelita, em Recife

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