Governo, consórcio empreendedor e ambientalistas se dividem. Só o futuro poderá responder
Marceu Vieira, Projeto Colabora
Se as contas referendadas por especialistas estiverem certas, ao longo dos próximos dez anos o Brasil vai precisar produzir mais 60% de energia. Do contrário, até lá, cidades inteiras se apagarão – e, com elas, suas salas de cirurgia, que salvam vidas; seus laboratórios, que descobrem a cura de doenças; suas escolas, seus cinemas e bibliotecas, que distribuem educação, diversão e cultura; suas indústrias; suas casas, com todos os aparelhos que mantêm a rotina das pessoas. Este é o principal argumento de quem defende as hidrelétricas, consideradas as fontes “mais limpas” de energia – ou, numa definição mais realista, as “menos sujas”. É, sobretudo, o argumento dos defensores de Belo Monte.
Pois, com a construção da usina consumada, a dúvida agora é se terá valido a pena erguê-la, apesar dos danos sociais e ambientais tão altos. Alguns deles irreversíveis, como a mudança na vida dos peixes, dos animais terrestres, das aves, dos povos das margens do rio, os desfavores cometidos contra a floresta, incluídos trechos já maltratados por pastos, alagada, segundo a própria direção da hidrelétrica, em 204 km². Área equivalente à de Recife (217,4 km²) ou maior que as de Aracaju (174 km²), Natal (170,2 km²) ou Vitória (93,3 km²).
Para o presidente da Norte Energia, Duílio Diniz de Figueiredo, que levantou Belo Monte com a ajuda do maior empréstimo já concedido pelo BNDES em sua história (R$22,5 bilhões, dinheiro público), a resposta é “sim”. Para o diretor de Licenciamento do Ibama, Thomaz Miazaki de Toledo, responsável por permitir a instalação e o funcionamento da gigante, é “depende”.
– A licença ambiental é um processo que não se esgota com a permissão para Belo Monte operar. Continua enquanto a usina existir, é uma vigia permanente – diz Toledo, biólogo e advogado, funcionário de carreira do Ibama, nomeado diretor em 2014. – A licença não dá um “nada consta” ao empreendimento.
Belo Monte é a maior obra de 14 anos de governo do PT. Tirá-la do papel, contra a vontade – e, às vezes, até mesmo a fúria – de ex-aliados, foi um ato de coragem do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e de sua sucessora, Dilma Rousseff. Construir uma hidrelétrica no Xingu era projeto ainda do regime militar. Fernando Henrique Cardoso, em seus oito anos de mandato, chegou a cogitar desarquivar a ideia.
Por isso, desafiado pela demanda brasileira por energia, era importante para o PT, historicamente acusado de ser contrário ao desenvolvimento nos moldes de Belo Monte, tornar a usina realidade. O diretor de Licenciamento do Ibama nega, no entanto, que tenha havido pressão do Palácio do Planalto pela emissão da licença:
– Participo do processo de licenciamento desde a apresentação do estudo de impacto ambiental. Posso garantir que a gente teve legitimidade e autonomia para fazer nossas avaliações – afirma. – Que Belo Monte é o principal projeto do governo e do PAC (Plano de Aceleração do Crescimento), isso é fato. Que houve várias reuniões do governo para que existisse uma coordenação de todos os órgãos envolvidos para não atrasar o processo, também. Mas pressão no sentido de conteúdo de parecer, isso não houve.
A pergunta que ambientalistas e militantes de ONGs defensoras dos povos do Xingu fazem é: se não houve pressão do Planalto, por que o Ibama concedeu a Licença de Operação a Belo Monte sem o cumprimento integral das 54 condicionantes? Toledo responde:
– É inegável que a população do Xingu não se sente plenamente atendida nas suas demandas. Mas dizer que o Ibama concedeu o licenciamento só com um percentual das condicionantes cumpridas é simplificar demais. Até porque percentual é subjetivo. Medir compensações na área socioeconômica é mais complexo do que medir supressão de floresta, por exemplo – defende-se.
– Uma coisa importante de ser dita à sociedade é que o licenciamento ambiental, em suas três etapas (Licença Prévia, Licença de Instalação e Licença de Operação), faz o gerenciamento dos impactos ao longo de todas as fases do empreendimento. Não acaba agora – ressalta.
A favor dos métodos e decisões do Ibama, Toledo diz ainda que o modelo de “licenciamento trifásico” só existe no Brasil, e é “um cuidado a mais”. Em países da Europa, exemplifica, “há apenas uma licença, dada antes da obra começar”:
– Dizer que o sistema de água e esgoto prometido ainda está em 0% é simplificar. Dizer que a Norte Energia deixou de dar a Altamira as escolas prometidas, não é verdadeiro. Mas, realmente, a percepção da população é essa. Ela, a população, quer que, uma vez dada a licença, a escola funcione, o hospital esteja aberto. Mas nem a Norte Energia, nem o Ibama fazem sozinhos um hospital funcionar. É preciso que o Ministério da Saúde, o SUS e a prefeitura estejam envolvidos. A mesma discussão se faz em relação ao esgotamento sanitário – afirma Toledo.
Ao menos neste ponto, ambientalistas dão razão ao diretor do Ibama. Antônia Melo, por exemplo, da ONG Xingu Vivo Para Sempre, critica a administração do prefeito Domingos Juvenil, do PMDB, partido ex-aliado e hoje adversário de Dilma:
– O que podemos esperar dessa administração? – Antônia se pergunta.
No jogo de empurra, sofrem índios, ribeirinhos, toda a região do Xingu. A prefeitura de Altamira teima na tese de que a cartilha de condicionantes previa que escolas, hospitais, rede de água e esgoto, tudo, enfim, fosse entregue pronto. Na verdade, o texto de apresentação das compensações não é claro. Toledo volta ao debate:
– Há um interesse público muito grande nesse projeto. Então, há pressões favoráveis, no sentido de não atrasar os processos, mas também contrárias. Eu mesmo participei de reuniões na Câmara dos Deputados e na Comissão de Direitos Humanos em que a pressão era pela não emissão das licenças.
O diretor do Ibama conta que, por falhas, atrasar condicionantes ou descumprir acordos, a Norte Energia recebeu “mais de uma dezena de multas” desde 2011. Admite, no entanto, não ter como responder se alguma chegou a ser paga. Ambientalistas suspeitam que não. Ele frisa que, em qualquer democracia, há “instâncias recursais que precisam ser obedecidas”:
– O Ibama não se furta de ser cobrado como órgão licenciador. A gente só não quer ser “empoderado” em relação a demandas que não são nossas. Não temos poder de polícia sobre a prefeitura, sobre ninguém.
A Norte Energia evita a polêmica e garante que todas as 54 condicionantes estão em fase de conclusão – e, para reafirmar a importância de Belo Monte, exibe seus números amazônicos. A gigante que mancha de feiura a floresta e entristece os povos a seu redor reúne, em suas fundações e diques imensos, uma quantidade de concreto capaz de erguer 48 Maracanãs ou de sustentar 6,8 pontes Rio-Niterói. Com todo o aço usado na obra, seria possível fabricar 16 Torres Eiffel. O material de aterro que demandou encheria 21.270 piscinas olímpicas dos Jogos de 2016. Se fosse transportar todo o material escavado do Xingu, a Norte Energia formaria uma fila de caminhões 36 vezes maior que a distância entre Belém e São Paulo.
A concessionária argumenta ainda que, somente no pico da obra, em 2013, gerou 20 mil empregos diretos e 40 mil indiretos. Diz que seus trabalhadores vieram de todas as regiões do Brasil e, por isso, teria ajudado a repartir renda. Alega que, até o término da construção, para alimentar essa população de operários, terá impulsionado a economia brasileira com a compra de 213 mil kg de carne, 130 t de frutas, 15 t de verduras, 65 t de legumes, 410 t de cereais como feijão e arroz – além de ter aquecido o mercado nacional com a encomenda de 549 milhões de litros de óleo diesel; 16 mil t de cantoneiras, chapas, perfis e tubos metálicos; 327 mil metros de cabos; 587 mil metros cúbicos de oxigênio; 63 mil kg de arame farpado.
Segundo o governo Dilma, mesmo que Belo Monte não consiga gerar todo seu potencial de 11.233,1 MW, e produza apenas a média prevista de pouco mais de 4.000 MW, a usina ainda seria capaz de manter aceso, por 50 anos ininterruptos, todo o Estado do Pará, com sua vastidão e seus cerca de 8 milhões de habitantes. Ou ainda de abastecer, por um ano, 40% do território nacional.
Se tudo isso terá valido a pena, o futuro dirá. O presente que castiga os povos do Xingu insiste que não.
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Imagem destacada: Imagem das obras, praticamente concluídas, no canteiro do Sitio Pimental feita na semana passada pelo #Colabora – Fotos de Marizilda Cruppe.