O auge das desfaçatez e o embotamento seletivo

Tania Pacheco – Combate Racismo Ambiental

O Globo de hoje, 26, tem um editorial com o título “Existência de estatais é causa básica da corrupção”. Quando li a chamada de primeira página (que não é usual, aliás, mas reservada a tópicos para os quais o jornal quer chamar a atenção), fiquei irritada com a desfaçatez. Em seguida, achei que o texto não poderia ser tão simplista e, para conferir, fui até a página 20, onde ele estaria publicado. E li. Tudo. Até o final que o editorialista pretendia contundente: “Por isso, o antídoto infalível contra a corrupção é um amplo programa de privatizações. Chega.” Ele cumpria de fato o que a manchete prometia.

Conheço diversos assinantes da Veja e outros mais de O Globo, moradores do meu prédio. No geral, são seres educados, afáveis, que seguram a porta do elevador aberta para que se passe, a maioria absoluta tem curso superior e poder aquisitivo alto, considerando a triste realidade brasileira. Não consigo deixar de me perguntar, então, como conseguem ler um editorial como o de hoje de forma acrítica. E não só podem; se consultados possivelmente defenderão a argumentação primária exposta por seu autor. Como se dá esse processo de embotamento?

Não estou em absoluto sendo tendenciosa. Os ‘argumentos’ são tão pífios que não há necessidade de qualquer conhecimento especializados para que se reconheça isso. Nenhum dado sequer, nenhum número, nenhuma estatística, nenhuma tentativa de citação de fontes. Os oito parágrafos repetem (e repetem!) chavões baseados no mais reles senso comum tornado hegemônico. Nada mais. Tudo, claro, tendo por base o bordão do “combate à corrupção”.

Um exemplo: “É necessário, porém, atacar pilares estruturais do roubo do dinheiro do contribuinte e da sociedade em geral, como a quantidade absurda de estatais. É a existência delas que facilita a corrupção, pois fica mais fácil desviar dinheiro graúdo onde há operações vultosas de compra e venda”. Então são as “operações vultosas de compra e venda” que permitem a corrupção. Ora, o que acontece em outros espaços onde há igualmente “dinheiro graúdo” e “operações vultosas”, como nos casos de Bradesco e Itaú com seus lucros acintosos, apesar de toda a ‘crise’?

Em nenhum momento o editorial levanta hipóteses outras para as causas da corrupção. Em nenhum momento considera alguma saída para o que seria a sua preocupação fora do que pretende ser o universo de ‘ladrões’ das estatais. Ou melhor: quando o faz é para acrescentar mais um ponto em defesa dos interesses da plutocracia: “Existe quem se iluda por imaginar que a usina da roubalheira está no financiamento de campanha por empresas. … Voltou-se a proibi-lo, e isso de nada adiantará … O caminho seria o inverso: liberar, regular, dar transparência e punir com rigor”.

Há então solução para a corrupção ensejada pelo financiamento de campanhas – “liberar, regular, dar transparência e punir com rigor” -, mas ela sequer é citada quando se quer que tudo aponte para uma mesma direção, a da privatização. Por que será? Não fica óbvia a somatória dos interesses defendidos no editorial? Ah, sim: as estatais são os “pilares estruturais”… Tinha esquecido.

Para dar ênfase à ‘argumentação’, um dado que revela ‘conhecimento científico’: “Não é por coincidência que, nos Estados Unidos, existe pouca ou nenhuma corrupção do tipo praticado no Brasil [sic]. É porque não há tantas estatais e em [sic] incontáveis mercados”. A redação está mesmo truncada no original, que continua: “Existe corrupção, claro, mas, quando detectada, pune-se como deve ser”. Será que nosso nobre paradigma do Norte não poderia então ser igualmente utilizado também nesse exemplo da frase final?

É claro que a denúncia do PT também está presente etc e tal, como o grande responsável por ter tornado a corrupção nas estatais algo “sistêmico”, e que a Petrobrás é citada não por acaso, mas isso aqui é o de menos. Minha questão inicial persiste: como pode uma pessoa sensata seguir a linha de raciocínio (?) estipulada pelo editorial sem se sentir indignada, ofendida na sua inteligência? Sem enxergar claramente a manipulação e a defesa obscena das privatizações como pano de fundo de todo o discurso?

Postei ontem um texto que talvez dê algum tipo de resposta para isso – Campos de Extermínio mental: A classe mídia e o mainstream do Golpe.  Não se vive na sociedade do espetáculo impunemente. Felizmente, sei que não é somente a mim que isso dá calafrios.

 

 

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