Por Fabiano Maisonnave e Lalo Almeida, enviados especiais da Folha
Vítima da própria beleza, o ipê é como um alfinete colorido no palheiro. Em sobrevoos e incursões por florestas protegidas, os madeireiros facilmente identificam a floração da árvore mais cobiçada da Amazônia.
Os passos seguintes são rasgar a mata com estradas, derrubar as árvores previamente marcadas e transportá-las para as dezenas de madeireiras instaladas ao longo da Transamazônica, onde são legalizadas por meio de documentos falsos de guia florestal.
O processo é custoso, mas o lucro obtido com o ipê viabiliza economicamente a extração ilegal de madeira em áreas remotas –fenômeno parecido com o ciclo do mogno, nos anos 1980 e 1990.
No entorno da rodovia, nenhuma área tem sido tão saqueada como a Terra Indígena Cachoeira Seca, habitada pelos índios araras e dentro da área de influência da usina hidrelétrica Belo Monte.
Desde 2011, os madeireiros abriram 1.359 km de ramais (estradas) no território arara, dos quais 258 km nos primeiros nove meses deste ano, segundo levantamento do ISA (Instituto Socioambiental) realizado por meio de imagens de satélite e sobrevoos.
A extração continua apesar do decreto de demarcação assinado em abril pela então presidente Dilma Rousseff, após mais de três décadas de tramitação. A homologação era uma das condicionantes para a operação da Belo Monte.
Na prática, nada mudou. Acompanhada de índios araras, a Folha percorreu a principal via de acesso, 80 km que ligam a Transamazônica a um porto no rio Iriri, dos quais cerca de metade está dentro de Cachoeira Seca.
No caminho, a reportagem viu um caminhão carregado de toras em plena luz do dia. Além disso, esse trecho da terra indígena está totalmente desmatado e ocupado por cerca de mil famílias de colonos –alguns assentados pelo Incra– e fazendeiros. Ainda não há data para a retirada deles.
O PBA (Plano Básico Ambiental) prevê a construção de dois postos de vigilância da Funai pela Norte Energia, responsável pela Belo Monte. Em nota à Folha, a concessionária informou que adiou as obras indefinidamente após seus funcionários terem sido ameaçados por “não índios”, em 2013.
“Os acessos aos locais de obra foram bloqueados, e os manifestantes também ameaçaram incendiar os equipamentos, caso o trabalho prosseguisse”, explicou a Norte Energia, em nota.
“Já fui a Brasília reclamar sobre isso aí, ninguém fala nada, ninguém vai [à terra indígena]”, diz o cacique da Cachoeira Seca, Mobu-odo Arara, 33. “Ministério Público, Polícia Federal, Ibama, não temos mais pra quem reclamar.”
Mobu-odo tinha apenas dois anos quando o seu subgrupo, de 180 pessoas, foi contatado pela Funai, em 1987. No espaço de uma geração, eles foram cercados pelo homem branco. “Não estamos livres, não podemos andar na nossa própria reserva.”
O Ibama afirma que realizou duas ações de fiscalização em Cachoeira Seca neste ano, mas que pouco pode fazer por causa da autorização de vários planos de manejo no entorno. É por meio desses créditos que os madeireiros esquentam a extração ilegal, segundo investigações do Ibama e de entidades ambientais, como o Greenpeace.
Para o cacique, o processo se acelerou nos últimos anos por causa das pessoas atraídas pela região por Belo Monte, mas que não conseguiram emprego. “Vão caçar terra de índio, dos ribeirinhos. Onde tem terra, estão se metendo.”
As imagens de satélite sugerem que a avaliação do cacique está correta: parcialmente tomada por colonos, Cachoeira Seca é a terra indígena onde mais houve desmatamento de 2012 a 2015, segundo o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), com 6% da cobertura florestal perdida.
Mas o aumento no desmatamento não se restringe ao território arara. De janeiro a setembro, já foram desmatados 188 km² de terras indígenas na Amazônia, uma área 180% maior que a devastada durante todo o ano passado, segundo a Funai.
FISCALIZAÇÃO
Apesar da intensa atividade madeireira ao longo dos 340 km entre as cidades paraenses de Altamira (a 457 km em linha reta de Belém) e Rurópolis (distante 772 km, em linha reta, da capital), a fiscalização é apenas esporádica devido aos cortes contínuos no orçamento do Ibama.
Em 28 de setembro, a reportagem acompanhou a primeira operação do órgão neste ano em Uruará (a 635 km de Belém, em linha reta). Com cerca de 43 mil habitantes, fica próxima de duas terras indígenas e tem a economia centrada na extração ilegal de madeira.
A equipe, com nove agentes do Ibama e dois PMs, planejava montar uma barreira de fiscalização em trecho de uma estrada que começa na Transamazônica e chega à Terra Indígena Arara, de outro grupo da etnia arara e contígua à Cachoeira Seca.
Nem foi preciso ir tão longe. Em apenas 15 minutos de viagem na Transamazônica, dois caminhões carregados de toras e sem documentação foram parados pelos agentes.
No caminhão maior, foram apreendidas 15 toras de ipê, com aproximadamente 36 metros cúbicos de madeira. Depois de processado no formato mais caro –placas para pisos–, o metro cúbico é exportado por cerca de R$ 6.300. O piso da ponte do Brooklyn, em Nova York, é de ipê brasileiro.
Por falta de local para armazenamento, o Ibama liberou os motoristas, que, além de autuados, foram colocados como fiéis depositários da madeira e dos caminhões.
“Juntando a questão financeira com o pouco efetivo, temos dificuldade em fiscalizar, e essa área entre Altamira e Rurópolis fica descoberta”, admite Uiratan Barroso, chefe de fiscalização do Ibama para a região, onde o foco é o combate ao desmatamento de grandes áreas. “A extração de madeira é uma prioridade secundária.”
A reportagem esteve em duas madeireiras de Uruará, mas os proprietários se recusaram a conceder entrevista. “É difícil alguém na cidade querer falar com vocês”, alertou o funcionário de uma delas, que pediu para não ser identificado.
MORATÓRIA
Para diminuir a extração ilegal, o ISA (Instituto Socioambiental) defende a moratória na exploração do ipê. “O ipê, sendo o novo mogno, viabiliza toda a extração nesta região”, afirma Jeferson Straatmann, coordenador do ISA em Altamira. “A partir do momento em que não há essa espécie tão cara, tira-se uma boa parte do financiamento.”
O Ibama reconhece a importância do ipê para a extração ilegal, mas avalia que a prioridade contra o crime é aprimorar o controle da concessão de créditos florestais em planos de manejo, uma atribuição dos governos estaduais.
O órgão tem pressionado os Estados a adotar o artigo 35 do Código Florestal, que prevê a implantação do Sistema Nacional de Gestão Florestal, no qual todas as unidades da federação devem fornecer informações como plano de manejo e quantidade de extração de madeira por hectare, facilitando a fiscalização e permitindo ao público rastrear a origem da madeira.
Na prática, porém, nenhum Estado da Amazônia se adequou ao artigo, de acordo com o Ibama. A situação é mais precária no Pará e em Mato Grosso, os principais produtores de madeira, onde o sistema nacional só é alimentado quando o produto sai do Estado.
RAIO-X
Cidade: Altamira (PA)
Ranking de Eficiência (REM-F): 4.989º (0,307) Ineficiente
IDHM (2010)*: 0,665 (médio)
Área desmatada (km²): 8.093 (5,1%)
Cidade: Uruará (PA)
Ranking de Eficiência (REM-F): 5.258º (0,203) Ineficiente
IDHM (2010)*: 0,589 (baixo)
Área desmatada (km²): 3.251 (30,1%)
Cidade: Rurópolis (PA)
Ranking de Eficiência (REM-F): 5.261º (0,201) Ineficiente
IDHM (2010)*: 0,548 (baixo)
Área desmatada (km²): 1.930 (27,5%)
*Números de 2010. O índice varia de 0 a 1. Os municípios da Transamazônica são de desenvolvimento baixo ou médio. O IDH do Brasil é 0,755.
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Textos: Fabiano Maisonnave / Fotos: Lalo de Almeida / Edição: Beatriz Izumino e Eduardo Scolese / Infografia: Carolina Daffara / Edição de vídeo:Giovanni Bello / Edição de fotografia: Daigo Oliva / Design e desenvolvimento: Angelo Dias, Pilker, Rubens Alencar e Thiago Almeida
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