Por Renato Santana, da Assessoria de Comunicação – Cimi
Organizações brasileiras da sociedade civil apresentaram para representantes de embaixadas estrangeiras relatórios sobre direitos humanos no país. Chamados de “relatórios sombras”, as análises servirão de subsídios para o terceiro período do mecanismo de Revisão Periódica Universal (RPU) do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, a ONU, a ser realizado no Brasil durante o segundo trimestre de 2017. Entre as nove análises entregues pela sociedade civil, duas trataram da temática indígena e foram elaboradas por sete organizações – entre indígena e indigenista.
Promovido pelo Comitê Brasileiro de Política Externa e Direitos Humanos, a atividade foi realizada na terça-feira, 6, na Casa da ONU, em Brasília. Na reunião foram expostos ainda pelas organizações da sociedade civil os resumos dos relatórios para as embaixadas da Bélgica, Suíça, Países Baixos, Estados Unidos, El Salvador, Peru, Austrália, Noruega, Uruguai, França, entre outras. Na terça, os Guarani e Kaiowá peticionaram na Organização dos Estados Americanos (OEA) denúncias de violações do Estado brasileiro aos direitos indígenas.
O governo brasileiro apresentou uma minuta de relatório, a ser concluído até fevereiro de 2017, mas na temática indígena esteve longe de retratar o que de fato tem ocorrido no país. Sônia Guajajara e Paulino Montejo, representando a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), trataram de denunciar a deturpação de dados do governo na minuta e contra-argumentaram com o relatório produzido pela entidade indígena em parceria com a Plataforma Dhesca e a Rede de Cooperação Amazônica (RCA).
No documento, as organizações lembram que em 2012 as recomendações da RPU trataram dos direitos territoriais indígenas, da violência praticada contra lideranças indígenas enquanto defensores de direitos humanos, da não-demarcação das terras Guarani e Kaiowá, além das violações de direitos decorrentes da falta de implementação do direito de consulta livre, prévia e informada.
“Em 2016, estes continuam sendo os temas centrais do cenário de violação de direitos humanos dos povos indígenas, agravado pelos discursos racistas e discriminatórios proferidos por autoridades públicas e que vem incentivando ou respaldando ataques violentos contra comunidades. O período em revisão também foi marcado pela flexibilização das proteções legais dos direitos dos povos indígenas e pela tentativa de negociação de direitos indígenas por parte do governo federal em favor de interesses de setores dominantes”, diz trecho do documento entregue na terça.
Governo assume, mas não cumpre
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a Fian-Brasil, Justiça Global e Associação Juízes Para a Democracia apresentaram um outro relatório, complementar, abordando inclsuive aspectos sobre o tratamento da Justiça às questões indígenas. As sete organizações responsáveis pelos dois relatórios indigenistas destacaram ainda a postura do Poder Executivo no Brasil. “O governo brasileiro tem a prática de assumir os relatórios, mas não os cumpre”, destacou Paulino Montejo, da Apib.
Gilberto Vieira, do Secretariado Nacional do Cimi, destaca que “além de apresentar as recomendações, as organizações fizeram uma análise da minuta enviada pelo governo brasileiro, expondo muitas críticas, tendo em vista os grandes limites e o perfil irreal do descrito pela minuta do relatório oficial. Esperamos que o governo atenda no relatório fechado ao que de fato se passa na questão indígena”. Os expositores resgataram as 13 recomendações feitas por países à RPU de 2012 sobre a temática indígena. Vieira afirma que nenhuma delas teve a devida efetivação por parte do governo federal.
Novos enfrentamentos, porém, passaram a fazer parte de um cenário de amplas dificuldades aos pvoos indígenas. A omissão do governo federal em levar adiante a demarcação dos territórios tradicionais, muito por conta de relações políticas com o agronegócio, representado pela bancada ruralista no Congresso Nacional, ganhou aliados em setores do Poder Judiciário que mantiveram decisões que restringem violentamente os direitos indígenas. Além da Tese do Marco Temporal, uma forma encontrada para limitar demarcações baseada nas condicionantes não vinculantes da Terra Indígena raposa Serra do Sol, anulações de atos administrativos de demarcação ocorrereram até mesmo por mandados de segurança, casos das terras indígenas Guyraroká, do povo Guarani e Kaiowá, Limão Verde, do povo Terena, e Porquinhos, do povo Apãnjekra Janela.
“A própria tese jurídica do Marco Temporal pode ser elencada como modo de criminalização dos povos indígenas, dado que ela legitima e legaliza as expulsões e as demais violações e violências cometidas contra os povos indígenas no Brasil, inclusive no passado recente. Serve de combustível que potencializa a violência contra os povos em seus territórios, uma vez que sinaliza, para os históricos e novos invasores de terras indígenas, que o mecanismo da violência, dos assassinatos seletivos de lideranças e do uso de aparatos paramilitares para expulsar os povos das suas terras seria legítimo, conveniente e até vantajoso para os seus intentos de continuarem se apossando e explorando essas terras”, aponta trecho da análise.
Desrespeito a tratados internacionais
Erika Yamada, Relatora da Plataforma Dhesca para os Direitos dos Povos Indígenas, fez considerações sobre o relatório oficial (leia entrevista completa abaixo), além de ressaltar a presença do Parlamento Europeu no Brasil esta semana e a visita da Relatora da ONU para os Direitos dos Povos Indígenas, Victoria Tauli-Corpus. Em outubro, a Relatora apresentou as conclusões da visita à Assembleia-Geral da ONU.
Sônia Guajajara destacou que a conjuntura de hoje enfrentada pelos povos indígenas é de risco, com retrocessos nos três poderes da República, sobretudo com relação ao direito às terras tradicionais, mas também na área de saúde e educação. Considerando ameaças em todas as áreas, afirmou que os povos indígenas lutam contra o racismo institucional, onde a Constituição Federal, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), entre outros tratados, são sistematicamente desrespeitados.
A indígena deu ênfase para “mudanças nos procedimentos de demarcação das terras indígenas, sem o direito de consulta prévia, a inclusão do Marco Temporal, que é uma interpretação que limita nosso direito constitucional à terra, desrespeito às instâncias instituídas como o CNPI (Conselho Nacional de Política Indigenista), a PEC 215 e a PEC 241/55”. O direito à consulta prévia, livre e informada é uma das recomendações de 2012 feita pela representação dos Países Baixos na ONU.
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“Os povos indígenas ocuparam espaços para uma incidência de descolonização”, diz Relatora da Plataforma Dhesca
Erika Yamada é Relatora da Plataforma Dhesca e passou 2016 percorrendo o Brasil, Estados Unidos e Europa. Ouviu e vivenciou com a Relatora da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas, Victoria Tauli-Corpuz, as agruras cotidianas de aldeias no Mato Grosso do Sul, Bahia e Pará – estados com altos índices de violências e violações de direitos.
A indigenista e advogada, que contribuiu com o relatório de Victoria, participou ativamente de um ano profícuo para os povos indígenas na consolidação de canais legítimos de reivindicação de direitos no plano internacional. Para Erika, no entanto, não se trata apenas de direitos, mas também de descolonização.
“O país seguirá no espectro de atenção internacional e tenho certeza de que os povos indígenas ocuparam os espaços necessários para uma incidência de descolonização, que leve à reflexão da sociedade em geral e das autoridades públicas sobre a relação que queremos manter com as riquezas sociais, culturais e ambientais”, diz Erika em entrevista realizada por e-mail.
Como a temática indígena foi apresentada na minuta do relatório oficial do governo brasileiro?
O Brasil apresenta a questão indígena em sua minuta de relatório de maneira bastante simplista e distorcida, como por exemplo ao mencionar uma minuta pronta sobre regulamentação da consulta livre prévia e informada ou ao apresentar dados aleatórios do tamanho das terras indígenas no Brasil. Basicamente o relatório do Estado, como está, não enfrenta os desafios reclamados pelos povos indígenas, confirmados pela visita da Relatora da ONU sobre Direitos dos Povos Indígenas e recentemente por representantes do Parlamento Europeu no caso dos Guarani kaiowá no Mato Grosso do Sul que dizem respeito a violações de direitos humanos relacionadas: à paralisação das demarcações, a violência e criminalização de lideranças e comunidades e ao enfraquecimento de legislações e políticas que protegem povos indígenas, recursos naturais e políticas especificas. O relatório ainda está em construção e nós da sociedade civil esperamos que sejam feitas alterações substanciais para que retrate a realidade dos direitos humanos no Brasil. O relatório será encaminhado até fevereiro de 2017 e subsidiará a avaliação do Brasil na ONU em maio de 2017, quando os países se manifestarão e poderão fazer recomendações ao Brasil.
Este foi um ano onde as problemáticas da questão indígena no Brasil tiveram ampla repercussão no mundo, com novas recomendações da ONU e o relatório de urgência do Parlamento Europeu. O que isso reflete da política indigenista estatal brasileira?
Infelizmente essas recomendações precisam ser levadas à sério pelo Estado brasileiro, devem ser internalizadas e se refletir na política indigenista. As recomendações internacionais podem servir de base para uma discussão aprofundada sobre como enfrentar problemas estruturais da relação do Estado com os povos indígenas e se assemelha às conclusões e recomendações da própria Conferência Nacional realizada em 2015. O diagnóstico, preocupação e alarme deveria levar a compromissos de fortalecimento das proteções constitucionais e legais e das instituições que atuam com povos indígenas como a Funai e a Sesai, mas infelizmente não é o que estamos assistindo.
Houve mudança na forma do governo brasileiro encarar a questão indígena depois do impeachment de Dilma Rousseff?
Acho que a tendência de não diálogo do Governo Dilma com os povos indígenas, aliada às diversas tentativas de desmantelamento do órgão indigenista se agravam desde o impeachment. Entendo que o cenário de intolerância e racismo institucional permite inúmeras afrontas a direitos fundamentais e violências contra os povos indígenas, quilombolas e a população do campo em geral foi sendo consolidado ao longo dos últimos anos, com base na aposta da impunidade praticada contra comunidades do campo. Essas “apostas” foram publicamente bancada por políticos – que são também latifundiários, ou apoiadores de movimentos fundamentalistas e de intolerância – e partidos que passaram a ver benefícios em levantar bandeiras anti-direitos humanos. No caso das pressões sobre povos indígenas, população do campo e o meio ambiente, fica cada vez mais clara a relação dos políticos e partidos historicamente envolvidos em esquemas de corrupção em torno de obras de um suposto projeto de desenvolvimento, que fundamentalmente alimentam a atual configuração de Estado, ou seja, que confunde a atuação pública com interesses econômicos privados de uma minoria que quer se manter no poder.
Quais são suas expectativas para 2017 no que tange as consequências das incidências indígenas junto a tais organismos internacionais?
2017 seguirá sendo um ano de luta para os povos indígenas, tanto no plano nacional como internacional. Espero que seja um ano em que mais movimentos sociais se juntem à luta dos povos indígenas, quilombolas e das comunidades tradicionais e que façam uso dos canais de diálogo e de cobrança internacional pelo respeito aos direitos humanos, e pelo não retrocessos das garantias de direitos e das políticas já conquistadas pela sociedade brasileira em todas as áreas importantes para a dignidade e o bem estar das pessoas no Brasil. O país seguirá no espectro de atenção internacional e tenho certeza de que os povos indígenas ocuparam os espaços necessários para uma incidência de descolonização, que leve à reflexão da sociedade em geral e das autoridades públicas sobre a relação que queremos manter com as riquezas sociais, culturais e ambientais, consequentemente abrindo espaços para as mudanças que tanto precisamos enquanto sociedade.
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Foto: Sônia Guajajara, da Apib, fala durante reunião na Casa da ONU. Crédito: Gilberto Vieira/Cimi