De “última fronteira agrícola do país” a projeto abortado pelo governo por falta de verbas, Matopiba segue nos planos dos investidores, continua sendo um desafio para povos e comunidades tradicionais e uma ameaça para o cerrado
Por Maíra Mathias – EPSJV/Fiocruz
A “última fronteira agrícola” do país. O lar de milhares de indígenas, quilombolas, agricultores familiares e populações que mantêm um modo de vida tradicional, como quebradeiras de coco, geraizeiros, vazanteiros e comunidades de fecho de pasto. Um desdobramento da crise econômica internacional. Uma porção do cerrado brasileiro em que o desmatamento cresce em ritmo acelerado. E, ao mesmo tempo, uma região tão importante para o equilíbrio hídrico nacional que recebeu o apelido de ‘berço das águas’. Um gigante de 73 milhões de hectares que, ainda sim, segue invisível e desconhecido da maior parte dos brasileiros. Matopiba é tudo isso e mais um pouco.
O nome vem do acrônimo das iniciais dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. O que eles têm em comum? Vastas porções de terras planas, mecanizáveis. E também contrariando a noção que associa todo o Nordeste à seca, fartura de água. Condições ideais para o agronegócio interessado em produzir em larga escala. Mas não só. A partir de 2008, investidores estrangeiros foram chegando e Matopiba passou a pipocar no noticiário econômico como uma oportunidade imperdível. Hoje, estudos já revelam que a região também atrai capital interessado unicamente em especular com o preço das terras, que disparou. E tudo isso fez aumentar o número de conflitos com quem estava no cerrado bem antes desse boom. Parece complicado? Fica mais.
No meio do processo, entrou o governo federal. Primeiro, através da Embrapa, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, que, em 2013, começou a delimitar formalmente Matopiba, que hoje, assim como a Amazônia, é considerado uma região geoeconômica. Com a ida de Kátia Abreu para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), em 2015, Matopiba virou marca de um governo que lutava contra a queda de receitas provocada pelo recuo no preço das commodities e passou a apostar que intensificar ainda mais a produção de matérias-primas poderia ser a “salvação da lavoura” para a crise econômica que o país já vinha enfrentando. Mas, para isso, seria preciso planejar e direcionar investimentos para “desenvolver” a região, dotá-la de infraestrutura adequada ao escoamento da soja, do milho, do algodão.
Com o afastamento de Dilma Rousseff da Presidência da República, a perspectiva neodesenvolvimentista de Matopiba parece não estar no script do novo governo, que afirma que não existem recursos para dar continuidade ao projeto. De qualquer forma, entidades que representam os produtores têm reafirmado a aposta na fronteira agrícola e se batido contra quem tenta decretar seu fim. Por isso mesmo, para quem vive lá e para aqueles que se preocupam com o destino do cerrado, lutar contra Matopiba continua sendo questão de vida ou morte.
O modelo
Mapito. Bamapito. Mapitoba. Matopiba. Todos esses nomes são ou foram usados nos últimos dez anos em referência ao processo de avanço da fronteira agrícola na porção setentrional do cerrado brasileiro. Contudo, as siglas não dão conta do início dessa história, que remonta ao governo militar. Clóvis Caribé, professor da Universidade Estadual de Feira de Santana, conta que o oeste da Bahia, região conhecida popularmente como ‘Além São Francisco’, foi a primeira parada de fazendeiros que chegaram no finalzinho dos anos 1970 para ocupar os chapadões que se estendem na divisa com Goiás e Minas Gerais. O que estimulou os ‘sulistas’, como são chamados até hoje pela população local, a se estabelecer naquelas bandas foi o incentivo federal. Oferecendo um mix de financiamento, assistência técnica, projetos de irrigação e eletrificação o Programa de Cooperação Nipo-Brasileira para o Desenvolvimento do Cerrado (Prodecer) tinha um objetivo: fundar núcleos de agricultura “moderna” no interior do país. Eles seriam uma espécie de exemplo para estimular mais e mais produtores a se adequarem ao modelo intensivo no uso de máquinas, insumos, tecnologias (agrotóxicos, fertilizantes, transgênicos).
Mais longeva parceria entre países para o setor agrícola (foi concebido pelos governos brasileiro e japonês entre 1974 e 1979, quando começou, se estendendo até 2001), o Prodecer expressava uma certa visão de desenvolvimento: era necessário “desbravar” o interior do país, como se nada nem ninguém existisse por lá ou devesse ser levado em conta. “O Estado considerava esses espaços ‘vazios’ e fez a transferência de produtores do sul do Brasil para lá, regularizou as terras e repassou para as cooperativas. O Estado fundou um esquema de cooperação técnica e pesquisa, não à toa o Prodecer financiou a criação da Embrapa. O Estado montou um sistema de crédito rural pesado. Por último, veio a infraestrutura logística”, situa Caribé.
Hoje, o enorme mosaico formado por esses latifúndios monocultores pode ser facilmente visto por satélite através de programas como o Google Maps. A mancha começa acima do Parque Nacional Grande Sertão Veredas, vai em direção ao Parque Nacional das Nascentes do Rio Parnaíba, rodeado por fazendas, que vão subindo. Em sua última fase, o Prodecer abrangeu também Tocantins e Maranhão. Na Bahia, a região do ‘Além São Francisco’ passou a ser chamada por políticos e produtores de ‘Novo Nordeste’. Lá, o município de Correntina sintetiza muitas das contradições desse modelo de desenvolvimento.
Um estudo da ONG inglesa Oxfam lançado em novembro de 2016 concluiu que menos de 1% das fazendas brasileiras concentra 45% da área rural do país. No rol das cidades mais desiguais figura Correntina, onde os latifúndios ocupam expressivos 75% da área total dos estabelecimentos agropecuários. O relatório, que compara várias bases de dados, mostra que a bonança do agronegócio fica nas mãos de poucos. Segundo o último Censo Agropecuário feito pelo IBGE em 2006, o Produto Interno Bruto (PIB) de Correntina era de R$ 786 mil, riqueza que se dividida pelos 31 mil habitantes, daria pouco mais de R$ 25 mil per capita. Já informações de 2012 do Cadastro Único para Programas Sociais do governo federal mostravam que a pobreza atingia 45% da população rural e 31,8% da população geral. O índice de desenvolvimento humano (IDH) do município era de 0,603 em 2010, abaixo da média nacional (0,813). E o índice de concentração fundiária da cidade é de 0,927 em uma escala onde o máximo é 1. A Oxfam fez o mesmo levantamento em outros 15 países da América Latina e constatou que prevalece na região a lógica de desenvolvimento baseada na exploração intensa dos recursos naturais que favorece a concentração de terras e riquezas nas mãos de poucas famílias, e piora os indicadores econômicos e sociais para o restante da população.
Outro caso emblemático deste “desenvolvimento” é o Projeto Agrícola Campos Lindos, no Tocantins. Criado em 1997 pelo então governador José Siqueira Campos, o projeto é caracterizado no meio acadêmico como uma reforma agrária às avessas. O político desapropriou por improdutividade a fazenda Santa Catarina, destinando seus 90 mil hectares para grandes produtores (dentre eles, a senadora Kátia Abreu) que pagaram apenas R$ 10 por hectare. Mas, é claro, aquelas terras não estavam vazias. “A implantação do polo de produção de grãos tocada pelo ex-governador ignorou as 160 famílias que viviam nessa região da Serra do Centro, algumas há mais de cem anos. A maioria foi expulsa, algumas resistiram. Estão lá, mas cercadas pela soja. O córrego que existia antes já não existe mais porque assoreou, se desmatou tudo”, relata Rafael Oliveira, agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT) da regional Araguaia-Tocantins, que acompanha os camponeses que, além de tudo, tiveram de enfrentar uma longa batalha nos tribunais. Hoje sobraram seis famílias que, recentemente, tiveram de renunciar ao direito à posse para viver na, agora, área de reserva legal da propriedade. Como Correntina, Campos Lindos é um exemplo de “desenvolvimento”: por anos foi o campeão estadual de exportação de soja, por anos figurou nas estatísticas do IBGE como recordista em pobreza e desigualdade.
O projeto
Se lá atrás ninguém consultou as comunidades e povos tradicionais sobre o Prodecer ou Campos Lindos, Matopiba também chegou sem aviso prévio. “Nós ficamos sabendo há um ano, através da mídia local. Começava a publicidade de que Matopiba ia trazer dinheiro, emprego, uma nova classe média para o campo. Mas essas promessas não resistem à realidade quando a gente olha para Campos Lindos, onde o agronegócio chegou convidado pelo governo e destruiu tudo. O pequeno não tem onde plantar, todos têm dificuldade para sobreviver, o desemprego está grande”, conta Fátima Barros, da Associação Nacional de Quilombos (ANQ). Entre as entidades e movimentos que vêm se articulando para denunciar o projeto, é consenso que, pela dimensão e complexidade, Matopiba aprofunda a hegemonia do agronegócio no campo.
Abarcando 337 municípios com seus 73 milhões de hectares, Matopiba é maior do que a Alemanha. Esses limites foram traçados pelo Grupo de Inteligência Territorial Estratégica (Gite) da Embrapa que utilizou como primeiro grande critério as áreas de cerrados existentes nos estados. Com isso, 91% do Matopiba está no bioma, aglutinando o oeste da Bahia, o sul do Piauí, metade do Maranhão e… todo o Tocantins. A coincidência de o estado ser domicílio eleitoral da ex-ministra da Agricultura, Kátia Abreu, não passou despercebida por quem analisa o projeto. “Olha, por que o Tocantins é 100% favorável e o Piauí é 20% favorável? Será que o deserto do Jalapão e a Ilha do Bananal, no Tocantins, têm mais potencial do que a região de Esperantina no Piauí que está plantando soja hoje? Houve politização do projeto”, afirma Moysés Barjud, vice-presidente da Associação Nacional dos Produtores de Soja do Brasil (Aprosoja). A Embrapa, contudo, garante que o Tocantins “desempenha um papel relevante na infraestrutura regional” e detém expressiva presença de agroindústrias e acrescenta que o mesmo critério foi usado para incluir a porção norte do Maranhão, com São Luís e seu porto. Essa arquitetura que soma produção, processamento, estocagem, canais por onde escoar as matérias-primas para fora do país faz de Matopiba uma região geoeconômica. E estava na agenda do governo Dilma criar um Plano de Desenvolvimento Agropecuário (PDA) para desenvolvê-la.
“Que país, que no século 21, pode se dar ao luxo de ter uma fronteira agrícola? A sétima economia do mundo, o Brasil. O Brasil tem, nessa área, uma das maiores oportunidades de crescimento, de desenvolvimento, de mostrar a sua competitividade, o seu potencial e a sua prosperidade para todos os brasileiros, não só para os brasileiros dessa região, porque isso faz a roda da economia girar. E quando ela gira, ela beneficia com emprego e renda; ela beneficia com novas oportunidades; ela beneficia com mais infraestrutura de qualidade. Ela beneficia todo o país”, discursou a ex-presidente em 2015. Em maio daquele ano, ela assinou o decreto 8.447 que lançava as diretrizes para esse PDA. A oficialização, diz a Embrapa, transformou Matopiba em região prioritária, tornando mais fácil fortalecer a atuação da empresa na região. No período entre 2015 e 2019, estão previstos 73 projetos da ordem dos R$ 117 milhões.
Em 7 de maio, quando tanto a Câmara dos Deputados quanto a comissão especial do Senado já haviam votado pela abertura do processo que afastaria a ex-presidente do cargo, Dilma e Kátia Abreu anunciavam em Palmas a criação da Agência de Desenvolvimento do Matopiba. Na ocasião, o Ministério informou que caberia à Agência produzir um Plano Diretor para o Desenvolvimento do Matopiba e adiantou que duas empresas privadas – Freedom Partners e The Boston Consulting Group (BCG) – parceiras do Ministério na elaboração da proposta, previam investimentos entre R$ 29 e 66 bilhões até 2035. “O plano diretor será decisivo para atrair investidores e empresários mundo afora”, disse Kátia Abreu na cerimônia, ressaltando: “Por todo lugar do mundo onde estive, todos só querem saber dessa nova fronteira agrícola brasileira”.
Naquele período, a ex-ministra ressaltou diversas vezes que Matopiba era fruto de decisão governamental arrojada. Mas de acordo com quem pesquisa a dinâmica econômica do capitalismo e seus rebatimentos no país, Matopiba é, antes de tudo, fruto do mercado. “O capital internacional selecionou Matopiba primeiro, depois o Estado brasileiro reconheceu. Na época do Prodecer foi o contrário: o Estado desenhou a estratégia e depois o empresariado chegou”, compara Daniela Egger, professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz). “Institucionalizar o Matopiba foi a grande resposta do Estado brasileiro ao capital. É quando o Estado reconhece que esse negócio está acontecendo e diz que também quer participar. Com Matopiba, o Brasil mais uma vez garantiu: ‘estamos abertos; temos água, temos terra e temos leis favoráveis’”, analisa a geógrafa.
O capital
Mas o que estava acontecendo no mundo para que investidores estrangeiros começassem a prestar tanta atenção nessa região do cerrado brasileiro? A resposta dos pesquisadores é a crise econômica mundial de 2008. Isso porque a saída clássica do capitalismo para crises é a expansão territorial. “Vivemos hoje essa corrida mundial por terras. Ou seja, o capital expande seu domínio sobre novas áreas, abrindo novas fronteiras num processo de acumulação por espoliação que significa, entre outras coisas, uma violenta apropriação e expropriação dos recursos naturais, terras e territórios, dando origem ao avanço das fronteiras agrícolas, das fronteiras da mineração, das fronteiras energéticas”, explica Daniela, acrescentando que vir para o Brasil foi, inclusive, recomendação do Banco Mundial. Um relatório da instituição de 2007 afirmava que o país combinava em alto grau disponibilidade de terras e água.
Mas a corrida por terras não foi impulsionada unicamente pela vontade de produzir nelas. Um estudo da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos lançado em 2015 demonstra que os investidores chegam em busca de altos rendimentos e enxergam na terra agricultável um ativo financeiro. “De acordo com essa lógica, um ‘bom’ investimento financeiro deve consistir em se comprar terras a preços baixos e vender por preços altos, realizando os maiores lucros possíveis”, resume Fábio Pitta, um dos autores da pesquisa. Doutor em Geografia Econômica pela Universidade de São Paulo (USP), ele explica que na virada do milênio os investidores estavam interessados em especular com ações das empresas de tecnologia. Quando a bolha estourou, em 2001, eles migraram para o mercado imobiliário dos Estados Unidos e para o mercado de commodities, dando início ao que ficou conhecido como superciclo. Essas duas bolhas estouraram também. “Apesar da queda no preço das commodities é a subida do preço da terra que move diversas empresas a investirem neste ativo, independentemente da produção agrícola”, diz. As principais áreas de interesse dos especuladores são terras com potencial para o monocultivo extensivo. E uma generosa quantidade delas está hoje no Matopiba.
Isso leva a cirandas financeiras nada óbvias para leigos. A pesquisa da Rede Social se debruça sobre o caso de um fundo de pensão privado criado para gerir as economias de professores universitários dos Estados Unidos que especula com as terras no Matopiba e outras regiões do Brasil. Com um capital de aproximadamente 866 bilhões de dólares, o TIAA-CREF (Teachers Insurance and Annuity Association – College Retirement Equities Fund) investe em tudo que prometa bom retorno. Mas ele não faz isso diretamente e, sim, cria empresas (holdings) com a finalidade de administrar diferentes tipos de aplicações financeiras por meio da participação em outras empresas. No caso em questão, o TIAA-CREF criou uma holding; a holding criou uma empresa brasileira de capital estrangeiro; essa empresa se associou em 2008 a uma grande empresa brasileira do setor do açúcar e etanol (Cosan) para criar a Radar S/A cujo negócio é especular com o preço de terras.
A associação com a Cosan é importante para burlar as regras atuais de compra de terras por estrangeiros no país. Desde 2010, a Advocacia Geral da União (AGU) colocou novos limites para a aquisição de terra por pessoa jurídica estrangeira e pessoa jurídica brasileira com maior parte do capital social detida por estrangeiros. A flexibilização dessa regra é uma das principais pautas da bancada ruralista. Tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei 4.059/12 que pretende abrir essa porteira.
Então, apesar de o grosso do dinheiro para criar a Radar ter vindo do fundo americano, é a empresa brasileira que administra o negócio. Portanto, as terras estão sob seu controle. Em 2009, a empresa administrava 62 mil hectares de terras em 34 propriedades. Em 2012, eram 151 mil hectares num total de 392 fazendas, 182 delas compradas naquele ano. Segundo os dados da pesquisa, a empresa começou investindo 400 milhões de dólares e terminou 2012 com um patrimônio de 1 bilhão de dólares. Outro exemplo do efeito inflacionário dado pelos pesquisadores: em 2010 a Radar comprou uma fazenda na Bahia pagando R$ 3.170 por hectare. Hoje, esse hectare vale R$ 13.910.
Outros fundos e empresas estrangeiras atuam no Matopiba e muita gente dedica suas pesquisas a mapeá-las. Mas não é fácil, já que esse capital internacional opera de maneira complexa criando empresas, que criam empresas, e assim em diante, num labirinto tortuoso. Por tudo isso, os pesquisadores garantem que se a questão agrária no Brasil já era um barril de pólvora devido à grilagem, na medida em que os donos da terra deixam de ser os coronéis conhecidos para se transformarem em capitais opacos, a situação tende a complicar. “Os donos da terra não têm nenhuma relação com ela, a gente nem sabe quem são. A joint venture não tem rosto, o fundo de pensão não tem rosto. Antes eram os latifundiários brasileiros, agora são também os latifundiários estrangeiros. E quem tinha que acessar a terra no Brasil nunca acessou. Do ponto de vista da luta, chegar nos latifundiários estrangeiros vai ser impossível. Eles são intocáveis. Os conflitos tendem a se acirrar”, acredita Daniela Egger.
As lutas
“Quem defende a luta ‘fia’, uma hora tá vivo, uma hora tá morto”, ensina Maria do Socorro, liderança do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), que reúne mais de 300 mil mulheres no Pará, Maranhão, Tocantins e Piauí. Elas vivem em assentamentos, quilombos, dentre outros territórios, e tiram seu sustento do extrativismo em terras comuns. “O babaçu é uma coisa tão delicada… Ele mesmo aglomera as pessoas, ajunta as mulheres, faz aquela cantarola para quebrar aqueles cocos. É bonito todo mundo junto. Por isso se chama comunidade. As quebradeiras defendem o babaçu porque precisam dele. A comunidade se une para produzir, para comercializar, para defender”, explica. Ela conta como a corrida por terras vem impactando suas vidas. “Era empresa chegando e devorando área de preservação ambiental dos babaçus, e fazendo plantio de eucalipto, soja, teca… E a gente na defesa e na luta. Os grandes projetos chegando, o número de empresas cada dia aumentando. Agora estourou. É estrangeiro para todo lado. A gente ficou sabendo que a Kátia Abreu foi vender essa ideia fora do Brasil e crismou esse nome: Matopiba”, conta ela.
“Às vezes a gente acorda com dois, quatro tratores dentro das áreas de gerais, que chamamos de ‘fechos’. E temos que entrar na frente, fazer o necessário para impedir a derrubada do cerrado. Com o Matopiba aumentou a ação de pistoleiros que entram nas comunidades para amedrontar e expulsar as famílias. A grilagem aumentou, a violência no campo aumentou, a tranquilidade das comunidades se perdeu”, lamenta Eldo Barreto, membro da Associação Comunitária do Fecho Clemente, localizado no município de Correntina. As comunidades de fundo e fecho de pasto são tradicionais da Bahia. São chamados ‘fundos’ as áreas de solta de animais localizadas na caatinga, enquanto os ‘fechos’ estão no cerrado e sempre foram vistos por essas comunidades como espaços de uso comum. É de lá que as famílias tiram parte fundamental da sua subsistência. “Além da solta, o cerrado nos dá frutos nativos e plantas medicinais, é nossa área de lazer. É a vida da gente”, resume Eldo.
Mas é exatamente nos ‘gerais’, em cima dos chapadões, onde de 1970 para cá se instalou o agronegócio. “Não existe expansão de fronteira agrícola sem grilagem de terras. Não existe Matopiba sem grilagem. Isso por uma razão muito simples: toda propriedade no Brasil tem origem pública”, diz Mauricio Correa, da Associação dos Advogados dos Trabalhadores Rurais (AATR) da Bahia. Se chama ‘grilagem’ o processo de fraude documental e apropriação física de terras públicas. Para um título ser verdadeiro, a cadeia dominial – uma cruza de biografia com certidão de nascimento do imóvel – precisa voltar ao momento em que o Estado vendeu a terra ou, mais raro, provar que aquela terra é uma sesmaria (porções doadas pelos reis de Portugal a certas famílias). “Se a cadeia sucessória não fecha a terra pertence ao Estado, são as chamadas terras devolutas”, ensina ele, completando: “Com o documento fraudado no cartório em mãos, o grileiro precisa tomar posse desses territórios, que não estão vazios. Isso vai se dando aos poucos, são situações que envolvem pistolagem, grupos de extermínio, incêndios criminosos, destruição de casas e roças. A apropriação territorial com violência foi o principal meio utilizado para a formação dos grandes latifúndios”.
Mauricio explica que a omissão dos governos em identificar essas terras contribui para o avanço da grilagem e, consequentemente, para o acirramento dos conflitos. “A Constituição Federal estabeleceu um prazo de cinco anos, a partir de 1989, para que os estados fizessem essa varredura. Na Bahia existe uma clara omissão do órgão responsável, que é a Coordenação de Desenvolvimento Agrário, em realizar a identificação e a discriminação dessas terras. Isso porque a Constituição diz que as terras públicas devem ser prioritariamente destinadas à reforma agrária, à regularização fundiária dos posseiros e à criação de reservas ambientais. Então não interessa ao estado mexer nesse vespeiro porque se fizesse uma ação discriminatória de terras públicas séria concluiria que a maior parte dos títulos de terra que estão hoje em poder das empresas não são válidos. E essas terras teriam de ser arrecadadas pelo estado e redistribuídas”, afirma o advogado.
A desigualdade fundiária no país é fonte inesgotável de conflitos não só porque alguns não têm um chão onde plantar, mas principalmente porque essa falta é, antes de tudo, fruto de uma violência em que o mais poderoso expulsa da terra o mais vulnerável. “Fomos enfrentando… O grileiro em cima dizendo que era para nós sair que a terra era dele. E nós dizendo que não saía, nossos avós, nossos pais era nascido e criado lá, por que era que nós ia sair? Nós não tinha lugar para ir, nós tinha que ficar ali. Aí eles juntaram um bocado de jagunço assim afora e levaram lá para atacar nós”, conta dona Maria Zuleide, moradora do Assentamento Rio Preto, em Bom Jesus no Piauí. Em maio de 2008, 17 famílias, incluindo a dela, sentiram na pele a cobiça pelas terras no cerrado piauiense: “Nós estava na roça colhendo. Chegaram lá esses grileiros, chegaram com os tratores, passaram por cima das nossas casas derrubando tudo o que nós tinha dentro. E as crianças chorando, e eles só passando o trator por riba. Tocaram fogo nas roupa, nos documento. Deram um tapa na minha cara, eu estava com um neném no braço. Outro tapa acertou, quebrou a clavícula do neném”. Depois de quatro anos dormindo em lonas e vivendo da ajuda de sindicatos rurais e da CPT, quatro mil hectares foram desapropriados pelo Incra em 2012 e as famílias voltaram ao território de onde foram expulsas para reconstruir tudo do zero. Mas episódios de violência como esse se tornam cada vez mais comuns na região.
“Naquele tempo era um caso específico, hoje a coisa está alastrada. Ano passado [2015] a gente conseguiu detectar dois conflitos agrários. Esse ano já passamos de 15. Por isso que eu digo: o sul do Piauí está se tornando o sul do Pará”, sentencia Altamiran Ribeiro, agente da CPT piauiense. Ele conta que por lá, depois de ocupar os chapadões planos, as empresas começam a se interessar pelos ‘baixões’. Essas áreas, embaixo das chapadas, são normalmente brejos férteis onde as famílias vivem. Como o novo Código Florestal prevê que 20% da propriedade rural precisa ter a vegetação nativa preservada, as empresas – que com seus monocultivos desmatam 100% – têm se apropriado dos baixões como área de reserva legal dos imóveis. Essa dinâmica acontece em todo o Matopiba. “Por gerações temos vivido com o que a natureza nos oferece. Não desmatamos, não achamos que para viver bem precisamos derrubar o cerrado. Pelo contrário”, diz, por sua vez, Eldo, esclarecendo porque nesses lugares a vegetação nativa está de pé. Altamiran conta que as empresas também têm interesse na água disponível nesses vales alagados.
“Nós nunca seremos o sul do Pará”, rebate o vice-presidente da Aprosoja, que tem fazenda justamente em Bom Jesus. Para Moysés Barjud casos de grilagem como o que expulsou dona Zuleide da terra são “situações pontuais”. “São aquelas ovelhas negras que eu chamo de falso produtor rural”, diz, completando: “Eu sou desprovido de ideologias, eu gosto das coisas de forma técnica. Considero o Piauí um modelo em termos de convivência do agronegócio com a agricultura familiar”. Ao contrário, ele define como “ideológica” e “política” a luta por terra, por reforma agrária. “A pauta principal é distribuir terra, não é distribuir capacidade de viver da terra. O que isso acarretou? Isso fez com que produtores rurais, vendo a possibilidade de colocar reserva legal em outro local, para otimizar o aproveitamento da sua área, chegar naquele produtor rural ribeirinho e dizer: ‘olha, você quer me vender a sua terra?’ E ele fazer as contas e dizer: ‘olha, eu vou vender, porque eu não estou mais conseguindo viver dessa quantidade de gado, porque eu não sei como corrigir solo, eu não sei como explorar isso ou aquilo’. Porque ele vinha de uma agricultura ou de uma pecuária tradicional que se tornou inviável”, sustenta.
As comunidades relatam que está mesmo difícil viver, mas que isso tem a ver não com as tradições, mas com esse tal “desenvolvimento” ensejado pela nova dinâmica chapada-baixão estabelecida pelo agronegócio. É que a praga que chega para comer a soja ou outras culturas exógenas ao cerrado são combatidas pelos empresários com muito agrotóxico. Mas todo esse veneno não mata, só espanta a praga para outros lugares. “Toda vida que nós trabalha na roça com a enxadinha… Planta feijão, mandioca, arroz, milho, fava, cabaça, abóbora. Agora eles jogam o veneno lá em cima e aquelas pragas descem com tudo. O ano passado, colhemos um saquinho de arroz. Nem mandioca, nem feijão, nem abóbora: a praga comeu tudo”, lamenta dona Zuleide. Com isso, a soberania alimentar das populações fica ameaçada. “Antes da [Usina Hidrelétrica de] Estreito sair, você chegava na feira domingo em Babaçulândia [TO], Carolina [MA], e encontrava milho verde, feijão, frango, peixe de qualidade, barato. Hoje não existe mais. Agora a água está em poder do empreendedor. Agora é obrigado migrar para a cidade e comprar frango da Sadia, que a Globo vende e ainda fala que o agro é tudo”, critica Antonio Apinajé, liderança indígena do Bico do Papagaio, no Tocantins, se referindo a outro tipo de impacto, causado por grandes empreendimentos.
Para entender os conflitos no Matopiba também é necessário olhar para todos os projetos de infraestrutura do governo brasileiro. São portos, grandes terminais de estocagem, ferrovias, rodovias, hidrovias, usinas e centrais hidrelétricas que garantem as condições para que a produção em larga escala seja escoada para fora do país. Quase sempre para o outro lado do mundo, na China. “O Brasil é o maior exportador de soja do mundo. E a China o maior consumidor. E tudo indica que continuará sendo assim: em 2025, a previsão é que a participação brasileira cresça de 42% para 46%, enquanto os Estados Unidos, segundo maior exportador, irá dos atuais 40% para 33%”, diz Gerardo Vega, da ActionAid Brasil.
Em seu curto segundo mandato, Dilma Rousseff teve tempo de entregar ao menos uma grande obra do Matopiba: o Terminal de Grãos do Maranhão (Tegram), localizado no Porto de Itaqui. Na cerimônia de inauguração, a ex-presidente citou uma série de empreendimentos do governo para dinamizar o chamado ‘arco norte’, um corredor de exportação pensado para desafogar portos no Sul e Sudeste do país, que incluem a ampliação da ferrovia Norte-Sul, a construção das ferrovias Transnordestina e Oeste-Leste, obras que vão viabilizar a navegação de cargas pelos rios Araguaia e Tocantins, dentre outras. Em 2012, a ex-presidente já havia inaugurado a Hidrelétrica de Estreito na divisa entre Maranhão e Tocantins, feita com recursos do PAC, o Programa de Aceleração do Crescimento.
Essas megaobras, diz Gerardo Vega, mostram a sinergia entre agronegócio, mineração e Estado. “O Estado foi e continua sendo fundamental na moldagem das condições para a expansão do agronegócio no cerrado, seja através de políticas de financiamento, assessoria técnica, extensão rural, pesquisa agropecuária, estruturação de projetos, políticas de zoneamento, infraestrutura de escoamento, energia, logística de todo tipo. Não é possível pensar a expansão das novas fronteiras agrícolas, pecuárias ou de mineração sem a participação estatal”, afirma o pesquisador. Ele defende que esses empreendimentos sejam analisados sempre em conjunto. “Os impactos são sinérgicos, vão se acumulando no tempo, se somam”.
E é isso que preocupa Fátima Barros, da Associação Nacional de Quilombos. “Estamos na linha do impacto da Usina Hidrelétrica de Marabá (no rio Tocantins) e da hidrovia Araguaia-Tocantins, dois grandes empreendimentos que surgem para servir à produção do Matopiba. Na ilha de São Vicente [no município de Araguatins] provavelmente 100% do território será alagado quando a barragem da usina for construída. Esse projeto foi aprovado sem uma audiência pública para as comunidades quilombolas. É uma bomba-relógio: a gente só vai ver quando chegar o impacto”, diz. Ela acrescenta que o boom dos empreendimentos na região é acompanhado pela demora na titulação de quilombos. O relatório técnico de identificação e delimitação da ilha foi publicado em março de 2015 pelo Incra. Mas até hoje não foi regularizado. “A ilha de São Vicente é terra da União, a SPU [Secretaria de Patrimônio da União] e o Incra poderiam titular rápido. Mas enquanto esses relatórios e regularizações são cada vez mais negligenciados e cercados por morosidade, os megaprojetos são acelerados e tem recursos públicos à vontade”, cri-
tica Fátima.
Além das obras e da omissão em relação à grilagem, as comunidades denunciam que o Estado atua em prol do agronegócio criando dificuldades ou mesmo paralisando os procedimentos legais de acesso à terra. No Piauí, por exemplo, a nova lei de regularização fundiária (6.709/15) não reconhece o direito de posse por moradia e propõe titular individualmente os pequenos produtores. Entidades defendem que a titulação deve ser coletiva, pois o modelo individual – defendido pelo Banco Mundial – facilita a pressão das empresas sobre as famílias para que elas vendam as propriedades. “A expropriação fica regularizada”, afirma Altamiran.
Na Bahia a constituição estadual garantiu o direito à regularização fundiária para as comunidades de fundo e fecho de pasto. “A lei estadual 12.910 de 2013 em tese viria reforçar esse direito, mas até pelos interesses empresarias envolvidos, o governo impôs que se as comunidades não se reconhecerem até 2018 elas perdem o direito à regularização do território. Esse artigo vai de encontro à Convenção 169 da OIT [Organização Internacional do Trabalho] e à própria Constituição Federal, que nos artigos 215 e 216 garante os direitos dos povos e comunidades tradicionais ao seu território e aos seus modos de vida”, diz Mauricio, lembrando que existem muitas comunidades de fundo e fecho de pasto que simplesmente desconhecem a existência da legislação. E mesmo as comunidades que já se reconheceram encontram dificuldades. O advogado afirma que nenhum fecho foi titulado ainda, contra 114 fundos de pastos titulados: “Justamente em razão da pressão fundiária que as empresas exercem no cerrado”, destaca.
Para quem fica e luta pelo território, o avanço do agronegócio no Matopiba cria circunstâncias perversas. Uma das grandes promessas do agronegócio, oferta de empregos, muitas vezes se resume à catação de raízes e tocos no período em que a fazenda está sendo formada. O desmate é feito com a técnica do correntão (proibida em todo o país, com a exceção de Mato Grosso) que consiste em amarrar uma enorme corrente em dois tratores que, andando emparelhados, vão arrastando tudo o que há pela frente. “E os camponeses recebem por esse serviço um valor irrisório, centavos por alqueire. Não é um salário. São condições análogas à escravidão”, diz Altamiran, arrematando: “Por tudo isso, a gente está tentando articular as comunidades para enfrentar conjuntamente, dar visibilidade ao que está acontecendo porque enquanto ficar abafado vai ser a barbárie”.
A terra
A Campanha Nacional em Defesa do Cerrado foi lançada em agosto de 2016 justamente para abrir um canal de diálogo com a sociedade sobre o que vem acontecendo com as populações e o meio ambiente no Matopiba e em todo o cerrado. O bioma ocupa cerca de 25% do território nacional, se estendendo por 204 milhões de hectares. Inclui o Distrito Federal e os estados de Minas Gerais, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, Tocantins, sul do Maranhão, oeste da Bahia, sul do Piauí e parte de São Paulo. O cerrado abriga nada menos do que 30% das espécies de plantas e animais do país, o que corresponde a 5% de todo o planeta e é considerado tão importante quanto a Amazônia. Mas, diferente da Amazônia, o desmatamento no cerrado parece não mobilizar a opinião pública.
“Quem demarcou essa área, quem decidiu que se chama Matopiba e que é a última fronteira? Simples: nós não temos como aumentar a fronteira agrícola para a Amazônia porque nós temos a floresta e nós decidimos que não queremos desmatar. Para o lado direito temos o Nordeste que é uma área com dificuldades de produção, por inviabilidade geológica e econômica. Por isso essas áreas de cerrado foram deslocadas do Nordeste e juntadas ao Matopiba porque é onde tem condições de produção. Se nós já desenvolvemos o Sul, o Sudeste, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul – e o desenvolvimento vai subindo sempre do Sul para o Norte – então agora nós paramos no Matopiba por dificuldade e por opção”, explicitou Kátia Abreu em um discurso no Senado feito em outubro.
“O cerrado foi sistematicamente propagandeado como um bioma degradado, deserto, desabitado. Como consequência, metade da vegetação original já foi eliminada”, diz Isolete Wichinieski, que coordena pela CPT a Campanha, que tem divulgado que todos os anos, cerca de 2,2 milhões de hectares de cerrado são desmatados e alertado que, a esse ritmo, o bioma pode ser extinto em 2030. A recuperação da vegetação do cerrado também não é simples. Isso porque o bioma tem mais de 45 milhões de anos. Para se ter uma ideia, a Amazônia tem três mil anos. “É um bioma que chegou ao seu auge evolutivo. Se ele for degradado, dificilmente se recupera totalmente”, diz Isolete.
Informações de consultorias privadas respaldam a preocupação com a preservação do cerrado. Com o objetivo de mapear as áreas com maior “aptidão” para a plantação de grãos, essas pesquisas demonstram a rápida deterioração do bioma na nova fronteira agrícola. Segundo a Agrosatélite, o desmatamento cresceu 61% entre 2000 e 2014 no Matopiba, enquanto nos outros estados com cerrado – já amplamente devastados – caiu em 64% o ritmo do desmate. Já dados da consultoria Agroícone mostram que a área dedicada ao cultivo de soja no Matopiba aumentou 253% entre 2000 e 2014, saltando de 1 milhão para 3,4 milhões.
A Embrapa tem números diferentes. Segundo a empresa, 12% dos cerrados brasileiros são de áreas protegidas. No Matopiba, são 17%. Nessa conta entram 42 unidades de conservação e 28 terras indígenas. Estudos de sensoriamento remoto sobre o desmatamento da região, entre 2002 e 2010, mostraram que grande parte da expansão da agricultura ocorreu em locais previamente desmatados, garante a Embrapa. Já segundo o estudo da Agroícone, o monocultivo da soja se espalhou sobretudo em áreas de vegetação nativa no Maranhão e no Piauí.
A Campanha pretende brigar pela instituição da moratória do cerrado, um pacto contra o desmatamento para coibir o avanço dos monocultivos e também pela aprovação da PEC 504/2010 que inclui o cerrado e a caatinga entre os biomas considerados patrimônio nacional. “Mas o carro-chefe da campanha é a água. O cerrado é o berço das águas e, por isso, nosso lema é ‘sem cerrado, sem água, sem vida’”, diz Isolete.
A água
Um efeito direto da agricultura mecanizada é a compactação do solo, que dificulta a penetração da água para o subterrâneo. A baixa no volume causa o desaparecimento de rios, riachos e brejos. Com solos permeáveis e geologicamente antigos, os ecossistemas de chapadas funcionam como uma esponja que absorve e distribui água. É no cerrado que estão os três aquíferos-Guarani, Urucuia e Bambuí – que abastecem boa parte do país. “Aquífero é como um grande mar embaixo da terra, uma formação geológica que acumula a água que infiltra”, explica Isolete. As águas subterrâneas do cerrado voltam à superfície na forma de rios que abastecem algumas das bacias hidrográficas mais importantes do país, como Amazonas, São Francisco, Paraguai e Araguaia-Tocantins, além do Pantanal. “Em 2030 o planeta vai ter 10 bilhões de habitantes. E nós teremos disponível 40% a menos de água do que hoje. O Brasil detém 12% de toda a água doce do mundo, então a gente já começa a perceber porque o capital internacional está muito interessado no cerrado. A água vai ser o ouro dos próximos séculos”, acredita ela.
O agronegócio é o maior consumidor de água no Brasil hoje. Segundo dados da Agência Nacional das Águas, em 2015, a irrigação de plantações consumiu 75% desses recursos. A criação animal levou outros 9%, mais do que a indústria, e quase o mesmo que o consumo humano urbano e rural (10%). A irrigação é uma solução tecnológica recomendada pela Embrapa. Mas também é um dos métodos mais controversos do agronegócio. Um caso vem chamando atenção no oeste da Bahia, de novo em Correntina. Lá, o empreendimento de algodão, milho, feijão e criação de gado da empresa Sudotex requisitou permissão para abrir 17 poços de alta vazão que captam água do aquífero Urucuia. Assim que abertos, a água sobe a metros de distância, graças à pressão, uma cena que lembra os poços de petróleo.
O Instituto de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema) do estado autorizou em maio de 2016 a empresa a captar 58 milhões de litros por dia, o que dá mais de 1 trilhão de litros por mês. O empreendimento usa o método da irrigação por pivô central na plantação. “É o método que mais consome – e mais desperdiça – água”, diz o advogado da AATR Mauricio Correa, que acompanha o caso que vem gerando revolta na cidade. A reação veio da Associação Ambientalista Corrente Verde que entrou com uma ação civil pública pedindo a suspensão da captação e a anulação das outorgas de água para o empreendimento dadas pelo Inema. A preocupação da entidade é que mais outorgas como essa sejam liberadas para outras fazendas da região. A liminar autorizando a suspensão foi dada em julho pela Justiça de Correntina.
Segundo Mauricio, nos últimos 15 anos, tem havido um aumento exponencial do uso de irrigação por pivôs centrais justamente nas áreas do chapadão próximas à divisa de Goiás, principal área de recarga do aquífero Urucuia e onde nascem os rios. “Estudos indicam que 80% da água do rio São Francisco vem do oeste da Bahia e do norte de Minas Gerais. Então toda essa água está sendo retirada diretamente do São Francisco ou de seus afluentes”, diz, lembrando que o reservatório de Sobradinho chegou a 6% de sua capacidade em novembro, o que ameaça o abastecimento de água para milhões de pessoas e rebobina o filme da crise hídrica que atingiu São Paulo em 2014.
Os próprios fazendeiros têm relatado que a cada ano precisam cavar mais fundo para encontrar água. As comunidades, por sua vez, relatam a diminuição da vazão dos rios e estão fazendo medições para tentar comprovar isso. “Os dois principais rios do oeste são o Corrente e o Grande. E nesses dois rios não existe mais espaço para outorga d’água”, diz o advogado. Isso porque cada rio tem uma capacidade total que pode ser outorgada. Ultrapassar esse limite pode comprometer a vazão, alterando o curso do rio. Nessa conta, entram os fazendeiros, as cidades, todo mundo. “E esse limite já está esgotado há bastante tempo. Não é mais possível fazer outorga d’água. Inclusive não há nem plano de bacia. Essas outorgas, na nossa visão, são todas ilegais. O Inema não pensa dessa forma”, critica ele. O órgão ambiental recorreu da suspensão. O Tribunal de Justiça acatou o recurso do Inema, autorizando a captação subterrânea no dia 3 de novembro. Os argumentos usados pelo Inema e repetidos na decisão judicial são econômicos: sem água, a empresa poderia suspender a operação. Agora, os moradores de Correntina colhem assinaturas para integrar uma petição pública que suspenda novamente as outorgas. “Para nós o agro não é tudo. O cerrado é tudo. Nossa água é tudo”, sentencia Antonio Apinajé, resumindo o sentido da luta.
O fim?
Mas justamente quando a resistência ao Matopiba começa a ganhar musculatura em diversas entidades e movimentos sociais, as idas e vindas da conjuntura política descortinam um cenário de incertezas. As dúvidas sobre se Matopiba chegou ou não ao fim ganharam força quando o Departamento de Desenvolvimento Agropecuário para essa região, criado em março pela ex-ministra Kátia Abreu, foi extinto em 19 de outubro por decreto presidencial. “Infelizmente o Mapa [Ministério da Pecuária e Agricultura] achou por bem desmanchar o departamento criado para atender essa última região de fronteira agrícola do país. Mas o Matopiba não depende mais da vontade de um governador, um governo federal, um ministério. O Matopiba é uma realidade que não volta mais atrás. Os empresários decidiram que o Matopiba é o lugar: é a última fronteira agrícola do país”, reagiu ela, no mesmo dia, do púlpito do plenário do Senado.
Em 16 de novembro, uma audiência pública, também no Senado, discutiu Matopiba. Lá, o representante do Ministério da Agricultura, Eduardo Mazzoleni, garantiu que o governo estava dando prosseguimento ao Plano de Desenvolvimento Agropecuário do projeto. “Estamos na etapa de elaboração do Plano, definindo cadeias produtivas e ações prioritárias para posteriormente fazer a publicação”, disse. A posição oficial da pasta, contudo, parece não ser essa. Procurado pela Poli, o Mapa respondeu através da sua assessoria de imprensa que Matopiba seria descontinuado por falta de recursos. Ainda de acordo com a assessoria, o Mapa “está trabalhando” por todos os estados igualmente por meio do Plano Agrícola e Pecuário que disponibiliza linhas de crédito rural para produtores de todo o Brasil. O Mapa não deu mais detalhes sobre a decisão, tampouco enviou informações sobre os recursos já investidos no Matopiba a tempo do fechamento desta reportagem. Mas como a própria Kátia Abreu deixa claro, a despeito do apoio formal do governo federal, Matopiba é uma fronteira agrícola ‘definida’ pelo mercado.
“O Matopiba tinha uma ligação muito clara com a Kátia Abreu, que capitaneou todas as negociações com o capital privado, fechou acordos para investimentos naquela área com o Japão, por exemplo, vendeu o projeto para investidores árabes. Matopiba era a vitrine dela. Ela saiu, entrou o Blairo Maggi, e eles são de grupos opostos. O agronegócio não é um bloco homogêneo. Como em todos os setores econômicos, existe disputa entre os diversos grupos. Cada um quer dar a sua marca na gestão. Mas ambos são ruralistas e querem o avanço do agronegócio”, analisa Karina Kato, pesquisadora do Observatório de Políticas Públicas para a Agricultura (OPPA). Moysés Barjud reforça essa leitura: “O Matopiba se tornou político. Houve um erro, nesse sentido, lá na sua criação, e agora a gente paga o preço. Tudo aquilo que era para ter sido técnico e ter avançado por algum motivo ficou no meio do caminho”, analisa ele, continuando: “Nós entendemos que, ao invés de abandonar o projeto, o atual ministro deva corrigir os erros que a ministra anterior cometeu”.
De acordo com Karina, o recuo do governo federal não significa necessariamente uma paralisação nos investimentos no Matopiba: “Pelo contrário. E nem significa que não vai ter o apoio do Estado no avanço desses investimentos. O que aconteceu foi uma desinstitucionalização, você deixou de ter no Ministério da Agricultura uma estrutura que controla ou tenta articular esses investimentos privados nacionais e internacionais. O que pode até acelerar o processo, porque você deixa a dinâmica toda na mão da iniciativa privada”.
Mas será que o recuo do papel do governo federal no Matopiba terá repercussão para própria resistência e organização das comunidades e povos afetados pelo avanço da fronteira agrícola? Para Karina, tampouco a luta contra Matopiba deve ficar refém do seu maior ou menor grau de institucionalização: “Para quem está no território o decreto não faz tanta diferença. Muitos nem sabem o que é o Matopiba. Mas eles vivem o Matopiba porque vêem o avanço da fronteira produtiva, sabem que o preço da terra está num processo acelerado de valorização, estão em contato com cada vez mais empresas entrando nos territórios, são expulsos ou acompanham expulsões de famílias de posseiros que não têm o título da terra. E trabalham em situação análoga à escravidão fazendo a limpeza do terreno para a formação dessas enormes fazendas. Tudo isso eles sentem na pele”. Às claras, em plena vitrine do governo federal, ou opaco, restrito às páginas especializadas dos jornais, com o nome de Matopiba ou sem nome algum, a certeza dos povos e comunidades tradicionais é uma só: o agronegócio avança sobre seus territórios, está batendo à sua porta.
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Imagem: A região geoeconômica abarca 337 municípios, se estende por 73 milhões de hectares e atravessa diversos territórios ocupados por populações tradicionais e camponesas- Foto: Ilustração Artur Monteiro.