“Esse massacre recente é só uma faceta do etnocídio que assola o povo gamela”

Professora da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira coordena grupo de trabalho que estuda território reivindicado pelos gamela

Talita Bedinelli – El País

A antropóloga Caroline Leal, professora da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab-CE), coordena um grupo de estudos que pesquisa o território reivindicado pelos gamela. O trabalho está sendo feito a pedido do povo indígena e das entidades que o apoiam. O objetivo é entender como era a ocupação tradicional da área.

Pergunta. Como está o trabalho?

Resposta. Há um ano e meio foi apontada para a Funai a necessidade de criação de um grupo técnico [para realização dos estudos circunstanciados para demarcar a Terra Indígena] e até agora não se tomou nenhuma providência oficial. O que tenho feito é uma pesquisa sobre o modo de ocupação tradicional dos gamela, por demanda do povo gamela e das organizações de apoio a eles, exatamente para ir tentando levantar dados que possam dar subsídios para o grupo técnico e entender o que caracteriza a ocupação tradicional dos gamela naquela região, onde há uma malha fundiária tão definida há tanto tempo, já que o processo de invasão ali é muito antigo.

P. É possível caracterizar a área como território gamela?

R. Sim, é possível. A Constituição Federal de 1988 foi muito importante no direito territorial dos povos indígenas porque acabou com a perspectiva das terras imemoriais, que são aquelas que os índios habitam de forma linear e permanente por longos séculos, para que houvesse um outro entendimento sobre a ocupação, que é a tradicional. A ocupação tradicional não está focada necessariamente em uma temporalidade, mas no modo diferenciado como aquele povo habita e significa aquele território. Essa mudança aconteceu porque é fato que a situação de contato foi muito violenta e promoveu migrações forçadas. A Lei de Terras [primeira lei que tenta organizar a questão da propriedade no país, em 1850] legitimou toda uma malha fundiária para as oligarquias locais no final do século 19. Com todo o processo de colonização e esbulho das terras indígenas, como é possível dizer que existem territórios imemoriais? Claro, nos povos isolados e de pouco contato ainda é possível pensar essa linearidade da ocupação. Mas não é o caso da maioria dos povos indígenas do país. No que a Constituição define como terra de ocupação tradicional tem um quesito que é o da habitação permanente, que vai mostrar como eles ocupam, qual o critério de parentesco, como que isso repercute na espacialidade e também quando começou o processo de ocupação desse território e qual a origem dessa ocupação.

P. E nas suas pesquisas já é possível apontar isso?

R. As pesquisas que eu tenho feito ainda estão em um estágio inicial. Mas na minha última ida a campo, um mês e meio atrás, eu tive uma preocupação de entender a organização social e de parentesco e isso me trouxe informações sobre essa habitação permanente. Os gamela estão naquele território, e a memória coletiva deles informa isso, há mais de um século. Os mais velhos hoje têm muita clareza ainda do que foi a vivência do tempo dos seus pais e dos seus avós, do uso daquele território no que diz respeito ao meio ambiente, às áreas de caça, aos rituais com outros povos indígenas daquela região. Falam dos conflitos, da invasão do território, do processo de grilagem. É um povo que sofreu muita violência.

P. Como vê a acusação de parte da população de que na região nunca teve índios e que, portanto, os gamela não são índios?

R. Assim como os povos gamela, vários outros povos usaram essa estratégia de invisibilidade da identidade indígena. Especialmente em casos em que o contexto local não favorecia, principalmente antes da Constituição de 1988 quando não tinha uma legislação que assegurasse os direitos desses povos. Como eles iam se declarar indígenas sem qualquer amparo estatal? O que eu percebo nas narrativas dos mais velhos é que a invisibilidade da identidade tem muito a ver com o medo real de um extermínio. Dessa violência que inclusive é materializada com esse massacre que eles sofreram exatamente quando se autodeclaram indígenas. Ao longo dos anos eles se colocam em uma situação de subalternidade e invisibilizam essa identidade como uma estratégia de permanecer no seu território. Até que chegou um momento em que se sentiu fortalecido, com o apoio do movimento indígena e das organizações indigenistas, se organizou e fez o seu processo de insurgência, que não é nenhuma novidade. É um fenômeno político, social que acontece no mundo todo envolvendo os grupos étnicos. Os povos passam a se autoidentificar mediante uma série de conjunturas e de contextos. E o povo gamela avaliou que já estava insustentável. Que o nível de violência e de espólio do seu território estava chegando em um momento em que eles não iam ter mais condições de sobreviver ali. A acusação de parte da população de que ali nunca teve índios tem a ver com parte do processo histórico da nossa colonização.

P. A população afirma ainda que eles não parecem índios fisicamente e, por isso, não são índios. Como vê isso?

R. Essa fala tem a ver com a formação do imaginário brasileiro do que é o índio. Se fixou muito nesses elementos genéticos e de alto contraste cultural. O que é um equívoco do ponto de vista sociológico e antropológico. Primeiro porque não existe povo sem mistura. Os povos indígenas estão sempre em contato com outros povos. Do ponto de vista dos povos indígenas do Nordeste e dos gamela, o tipo de mistura que se realizou levou a uma mudança na aparência física. Eles são muito semelhantes ao povo camponês, ao povo negro. É muito comum se chamar esses povos indígenas de negro e se negar sua identidade.

No caso dos gamela, esses processo de mistura tem a ver, claro, com esse processo de invisibilidade. Eles foram se articulando com os outros grupos sociais violentados como eles. O povo gamela é um povo indígena que se relacionou, acolheu e fez aliança com comunidades negras rurais, que hoje nós chamamos de quilombola. E não é só uma situação só dos gamela, isso é algo frequente em todo o Brasil. Como o território gamela foi invadido há muitos anos, eles estão ali numa situação de contato intenso, então é natural que isso aconteça.

P. E como a antropologia entende a situação desses povos indígenas que não correspondem à representação esperada por uma parcela da sociedade?

R.  O que determina são as construções sociais, políticas, econômicas e espirituais e não o vínculo sanguíneo. Até porque os critérios que os povos indígenas estabelecem para dizer quem é ou não membro de seu povo não passam necessariamente pelos critérios biológicos, mas por critérios de várias ordens: de ritual, de iniciação, de comprometimento com a organização social do povo. Cada um vai criar os seus critérios. Desde o século 20, Max Weber diz que não são os vínculos consanguíneos que determinam uma comunidade étnica, mas as relações sociais, políticas, a crença de uma origem comum. Há um grande desconhecimento de todo o Brasil quando se questiona a identidade indígena a partir desses critérios objetivos. Há uma expectativa que se coloca de que a cultura dos povos indígenas seja uma cultura cristalizada. E quando há qualquer alteração e mudança no modo de vida desse povo eles passam a ser visto como menos índios e deslegitimados: os indígenas passam a ter veículos, mudam as suas habitações, têm celular, acesso à tecnologia, como os ashaninka, no Acre, que são cineastas, então pronto: deixaram de ser índios. É uma exigência muito injusta de que os povos indígenas cristalizem a sua cultura quando eles estão sendo o tempo todo violados na sua cultura e no seu modo de ser. Se exige que os gamela correspondam a um estereótipo quando todo modo de vida e território do povo gamela foi violentado. E por mais que os gamela correspondessem a esse estereótipo, diante do nível de conflito e violência que se estabelece ali há muitos anos, ainda assim a identidade deles ia ser negada. Os guajajara, um povo no Maranhão, têm frequentemente sua identidade negada e eles estão muito mais próximos a esse imaginário. No Alto Rio Negro, os povos indígenas que são de menos contato, também têm a sua identidade negada. É uma realidade que está posta no Brasil, por desinformação, por ignorância, por uma série de fatores. A sociedade brasileira é muito desinformada sobre o que é um povo indígena, sobre quais são os elementos definidores da identidade de um povo indígena.

P. Qual a saída possível para resolução desse conflito?

R. Não existe outra resolução que não a do Estado brasileiro restituir o povo gamela do seu direito ao território e do seu direito a ser povo. E, assim, assegurar o futuro do povo gamela como povo indígena. A Funai precisa instituir o grupo de trabalho para o estudo de identificação do território tradicional desse povo. E isso passa pelas indenizações das benfeitorias de boa fé e do reassentamento das populações camponesas que não são indígenas e não se identificam como indígenas e querem sair do território. A violência cresce por conta da omissão do Estado em relação ao reconhecimento do direito territorial do povo gamela. O Estado precisa se fazer presente. Ele permitiu ao longo desses séculos todo o espólio desse território, a violência contra esse povo. Esse massacre recente é só uma faceta de um etnocídio que vem assolando o povo gamela, se a gente entende o etnocídio não só como um extermínio físico, mas também como a violência de todas as formas. A começar pela violência de negar a eles essa possibilidade de ser povo e de viver segundo a sua cosmovisão e a sua cosmopolítica.

Foto: A antropóloga Caroline Leal. CIMI/DIVULGAÇÃO

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