Documento foi apresentado durante Ato Denúncia realizado na sede da PGR, em Brasília, e segue aberto a novas adesões
PFDC
Atuar contra a criminalização de movimentos sociais e de defensores de direitos humanos, além de estabelecer esforços pelo direito à autodeterminação dos povos originários e tradicionais. Esses e outros compromissos para a garantia de direitos e para o fim da violência no campo foram firmados por um conjunto de 18 entidades da sociedade civil e do poder público – entre elas, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão e a Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais, do Ministério Público Federal.
As diretrizes estão em uma carta pública lançada no dia 23 de maio, durante o Ato Denúncia Por Direitos e Contra a Violência no Campo. O diálogo foi realizado na sede da Procuradoria Geral da República, em Brasília, e reuniu mais de 200 participantes, entre trabalhadores rurais, indígenas, quilombolas, defensores de direitos humanos, parlamentares e ativistas por justiça e paz no campo.
Além de alerta social, os compromissos buscam articular, em caráter de urgência, organizações e autoridades públicas para conter o avanço da violência e da retirada de direitos. Dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT) apontam que 2016 teve registro recorde no número de conflitos no campo: foram 61 assassinatos de trabalhadores rurais (o dobro em relação à média dos últimos dez anos) e 1.536 conflitos, envolvendo 909.843 famílias.
O ano de 2017 já revela a intensificação do problema. Somente nos primeiros cinco meses deste ano haviam sido registrados pela CPT 26 assassinatos em decorrência dos conflitos agrários no Brasil – número duas vezes maior que o registrado no ano passado para o mesmo período. Com as recentes mortes na região de Pau d’ Arco, no Pará, a violência no campo em 2017 já pode ser apontada como a maior do período em todo o registro histórico já feito pela CPT ao longo dos últimos 25 anos.
“Essa violência extrema é também resultado do desmonte das políticas agrárias – na demarcação de terras indígenas e quilombolas, na reforma agrária, na criação de unidades de conservação. É preciso cobrar investimento e execução orçamentária dessas políticas, além de instar o Governo Federal à instalação de uma ouvidoria agrária nacional independente. Esse deve ser nosso primeiro compromisso”, destacou a procuradora federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat.
A PFDC também apontou a importância de por fim à criminalização de movimentos sociais – cuja licitude das atividades já foi reconhecida, inclusive, pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos – e ressaltou a necessidade de fazer frente à atuação de milícias armadas: “junto com o Conselho Nacional de Direitos Humanos, vamos assumir o compromisso de solicitar à Polícia Federal para que sejam estabelecidos controles mais criteriosos acerca das atividades de empresas de segurança, que podem estar sendo usadas em ações de violência contra trabalhadores do campo”.
O coordenador da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF (Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais), Luciano Mariz Maia, destacou a importância de uma política de alerta precoce de situações de risco: “a partilha das informações com os parceiros possibilita o mapeamento das instituições que podem ajudar numa resposta mais rápida aos conflitos. A Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais tem trabalhado nessa perspectiva de incorporar elementos de prevenção e de atuar em equipe”, esclareceu.
A carta de compromissos também recebeu adesão do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), por meio de sua Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais.
A Carta segue aberta a novas adesões e sua íntegra pode ser acessada abaixo.
Testemunhos
O ato contou com depoimentos de vítimas e familiares e buscou denunciar a omissão do Estado diante do aumento da violência no campo. O encontro também buscou chamar atenção para a responsabilidade do poder público na criminalização dos movimentos sociais, na atuação desproporcional das polícias e na aprovação de medidas que agravam os processos de concentração, privatização e estrangeirização de terras brasileiras.
Entre os testemunhos, esteve o feito pelo liderança indígena Nailton Pataxó Hã Hã Hã, um dos indiciados da CPI Funai/Incra, da Bahia. “Nem sei o que é uma CPI. A minha inclusão como indiciado talvez seja porque há 30 anos esperamos julgamento sobre a nossa área. A violência continua contra os pataxós, contra os tupinambás, contra todas as lideranças que estão reivindicando os seus direitos. É vergonhoso para o nosso país, para as nossas autoridades.”
Outro relato foi de Luiz Batista, trabalhador rural e liderança do MST/GO, perseguido e preso por sua luta pela terra. “Fui acusado de terrorista. Sou trabalhador e nunca vi antes que lutar pela terra era crime. A minha prisão foi conhecida internacionalmente, foi uma prisão ridícula, igual à prisão do meu companheiro Valdir. Gostaria que as autoridades olhassem melhor para nós do campo”.
Saiba mais
O Ato Denúncia foi realizado pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e, além do Ministério Público Federal, contou com a parceria das seguintes entidades e órgãos: Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (Contag), da Plataforma de Direitos Humanos Dhesca Brasil, Comissão Pastoral da Tera (CPT), Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Confederação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar, Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST), Movimento dos Trabalhadores do Campo (MTC), Movimento Camponês Popular (MCP), Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Terra de Direitos, Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH), Unisol Brasil, Defensoria Pública da União (DPU), e Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados.
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Carta do Ato Denúncia
Por Direitos e contra a Violência no Campo
Os casos de violência e barbárie no campo no mês de abril de 2017 chocaram a população brasileira e repercutiram mundo afora.
A Comissão Pastoral da Terra – CPT, que registra e analisa os conflitos no campo desde 1985, percebeu um aumento significativo no número de assassinatos no campo em 2015, quando sete camponeses foram assassinados num período de cinco meses, na Gleba Bacajá, Anapú, PA. Notou também que o número de assassinatos no campo aumentou sucessivamente, de 36 em 2014, para 50 em 2015 e 61 em 2016.
O ano de 2017 já apresenta um cenário desolador de violência que não se restringe apenas a algumas pessoas, mas adquiriu caráter de chacinas e massacres brutais. A CPT já confirmou 26 assassinatos no campo desde janeiro de 2017.
O Brasil todo viu o massacre de Colniza, MT, no dia 19 de abril de 2017, quando nove vidas foram ceifadas, e em Viana, MA, no dia 29 de abril de 2017, quando um ataque brutal deixou 22 feridos.
A região de Vilhena, RO, palco de conflitos violentos em 2015 e 2016, teve mais um caso em 2017: três pessoas foram encontradas carbonizadas, dentro de um veículo incendiado; o mesmo que se viu em Sta. Maria das Barreiras, PA, onde 4 pessoas foram encontradas carbonizadas dentro de um carro.
Esses casos assustam ainda mais pelo nível de crueldade e violência empregados. No ataque aos Gamela, um indígena teve as mãos decepadas e ferimentos graves à altura dos joelhos, e outro uma das mãos praticamente decepada. Em Colniza/MT, uma pessoa foi degolada e outras mortas depois de sofrerem tortura. O militante do MST, Etevaldo Soares Costa, assassinado no dia 5 de maio de 2017, na fazenda Serra Norte em Eldorado do Carajás, no Pará, teve os dedos cortados, as pernas cortadas em quatro partes, os olhos furados, e foi colocado num saco plástico e jogado fora da área da fazenda.
Vivemos uma situação de violência estrutural e recorrente. A impunidade das violações de direitos humanos ocorridas no campo garante a eficácia da repressão e aumenta a lista de pessoas e grupos ameaçados e assassinados. Para exemplificar este cenário, tendo como referência o período de 2007 a 2017, das 390 vítimas de assassinatos, 48 foram ameaçadas anteriormente. Neste mesmo período, tivemos 407 vítimas de tentativas de assassinato, destas, 55 foram ameaçadas anteriormente. De um total de 302 pessoas ameaçadas de morte, 254 foram ameaçadas mais de uma vez, 55 já sofreram tentativa de assassinato e 48 foram assassinadas.
A violência não se restringe às ameaças, tentativas e assassinatos, pois é igualmente preocupante a intensificação da criminalização de lideranças e movimentos do campo, com aumento de prisões preventivas e tentativas de aplicação de leis que tratam de organização criminosa como formas de coibir o protesto social.
As prisões de militantes do MST nos Estados de Goiás e do Paraná, com acusações de formação de organização criminosa, são graves e revelam a sanha punitivista de parte de nosso sistema de justiça.
O Estado não é apenas conivente e omisso, posição que perpetua a impunidade no campo pela ‘seletividade’, ‘morosidade’ e ‘inoperância’ do sistema de justiça que de um lado criminaliza os movimentos populares e de outro mantém impunes as ameaças, homicídios e violações de direitos humanos. O Estado é também agente ativo no fomento à violência, tanto pelas políticas e programas do Executivo que fomentam a acumulação de terras e de riquezas, como pelo Legislativo que, ao passo que destrói os direitos humanos conquistados pelos trabalhadores e trabalhadoras, faz uso de mecanismos, como a CPI da Funai e Incra, para criminalizar as vítimas e defensores de direitos humanos.
Nos últimos tempos, especialmente após o golpe que retirou do poder uma presidenta eleita pelo voto popular, os ataques institucionais e físicos experimentaram crescimento acelerado. Entre as primeiras medidas, o governo usurpador extinguiu Ministérios e autarquias e seguiu o desmonte do Estado com diminuição de recursos e pessoal de órgãos responsáveis por garantir políticas sociais, como Funai e INCRA.
É longa, enfadonha e trágica a série de Medidas Provisórias, Projetos de Lei, Propostas de Emendas à Constituição e Decretos que afetam diretamente povos e comunidades do campo, entre as quais destacamos:
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A PEC 215, que propõe transferir para o Congresso Nacional a prerrogativa de reconhecimento de terras indígenas, hoje competência do Executivo Federal;
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Os 29 Projetos de Decreto Legislativo-PDCs, apresentados pelo deputado federal Jerônimo Goergen-PP-RS em junho de 2016, à Câmara Federal, para suspender decretos assinados pela presidenta afastada Dilma Rousseff, de desapropriação de imóveis rurais para a Reforma Agrária e regularização de territórios quilombolas e terras indígenas;
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A MP 759/2016, que aniquila políticas de reforma agrária e do uso social da terra, municipaliza a prerrogativa de regularização fundiária urbana e rural e privatiza ainda mais as terras públicas.
O povo do campo clama por seus direitos e protesta:
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Pelo cumprimento dos acordos internacionais assinados pelo Estado Brasileiro e respeito à Constituição Federal;
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Pela autodeterminação dos povos originários e tradicionais;
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Pela realização da Reforma Agraria com a ampliação das desapropriações de terras para assentar a todas as famílias de trabalhadores e trabalhadoras rurais sem terra e com pouca terra, atendendo emergencialmente aquelas que se encontram em áreas de conflito agrário, em ocupações e acampamentos;
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Pela titulação dos territórios quilombolas;
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Pela demarcação dos territórios indígenas;
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Para que sejam assegurados recursos orçamentários e financeiros em quantidade suficiente para a execução das políticas de reforma agrária, titulação de territórios quilombolas, demarcação das terras indígenas, atendendo à demanda por ampliação dos recursos humanos, tecnológicos e operacionais de modo a permitir a realização das políticas públicas, programas e serviços destinados aos trabalhadores e trabalhadoras rurais;
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Pela não aprovação da MP 759/2016 e dos demais instrumentos normativos que significam retrocessos nos direitos dos povos, comunidades tradicionais e trabalhadores rurais;
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Pela atualização dos instrumentos normativos que possibilitem o fortalecimento do papel do Estado nos processos de fiscalização do latifúndio e das propriedades rurais que não cumpram a Função Social, especialmente quanto à Função Social da Propriedade, à Criminalização da Luta pela Terra, à atualização dos índices de Produtividade, e contra a estrangeirização das Terras;
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Pelo pleno desenvolvimento econômico e social dos projetos de assentamento de reforma agrária, garantindo crédito, políticas públicas, infraestrutura e serviços de qualidade, em quantidade e com prazos adequados para que as famílias assentadas possam fortalecer seus processos organizativos e produtivos e viver com dignidade e segurança nas áreas reformadas;
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Pela adoção emergencial de procedimentos e ações de combate à violência e impunidade no campo, em especial:
a) Retomada da Ouvidoria Agrária Nacional com caráter independente do Incra, assegurando condições operacionais e financeiras para atendimento de toda a demanda;
b) Fortalecimento da FUNAI como autarquia responsável pela política indigenista garantindo o orçamento e estrutura necessária para dar celeridade aos processos de demarcação e atendimento aos povos indígenas;
c) Gestão junto aos órgãos do poder judiciário nos estados, junto aos tribunais regionais e aos ministros do STJ e STF, visando dar prioridade ao julgamento de ações pendentes e que tenham relação com os conflitos fundiários, uma vez que a demora no julgamento das mesmas faz acirrar os conflitos fundiários e geram imensos prejuízos financeiros ao Estado;
d) Gestão junto aos tribunais estaduais e regionais cobrando julgamento prioritário dos processos criminais relativos à violência no campo e ao trabalho escravo;
e) Reativação do Fórum de Assuntos Fundiários no âmbito do CNJ;
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Pela urgente investigação e punição dos responsáveis pelos assassinatos, massacres e violências no campo!
Diante do exposto, nós participantes deste Ato Denúncia, nos comprometemos a:
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Manter esta articulação com a sociedade para o desenvolvimento de ações urgentes;
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Lutar pelo direito à terra e ao território dos povos indígenas, quilombolas, povos e comunidades tradicionais e camponeses;
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Lutar pelo direito dos povos originários e tradicionais à autodeterminação;
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Lutar contra a criminalização dos movimentos sociais e defensoras e defensores de direitos humanos;
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Lutar por direitos e combater as violações de direitos humanos no campo!
Brasília/DF, 23 de maio de 2017
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB
Comissão Pastoral da Terra – CPT
Confederação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar – Contraf Brasil
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura – CONTAG
Conselho Indigenista Missionário – CIMI
Conselho Nacional dos Direitos Humanos – CNDH
Defensoria Pública da União – DPU
Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados
Movimento Camponês Popular – MCP
Movimento Camponês Popular, Movimento de Mulheres Camponesas – MMC
Movimento dos Pequenos Agricultores – MPA
Movimento dos Trabalhadores do Campo – MTC
Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra – MST
Movimento Pela Soberania Popular na Mineração – MAM
Sociedade Maranhense de Direitos Humanos – SMDH
Unisol Brasil – Central de Cooperativas e Empreendimentos Solidários
Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão – Ministério Público Federal
6ª Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais – Ministério Público Federal
Plataforma de Direitos Humanos Dhesca Brasil
Terra de Direitos