Raine Robichaud – RioOnWatch
Um ano após as Olimpíadas, a Zona Portuária do Rio se desprende do projeto de renovação urbana Porto Maravilha que começou em preparação para os Jogos. O projeto, que custou oficialmente R$8 bilhões rasgou ruas para abrir caminho para o VLT, colocou dois museus na Praça Mauá que juntos custaram quase R$300 milhões, e acelerou a especulação imobiliária não regulamentada e a gentrificação na área.
Como parte dessas intervenções maciças para dar ao porto um “novo visual”, as escavações das obras desenterraram um local histórico de importância internacional, o Cais do Valongo, cais onde desembarcavam os escravos no Rio de Janeiro, nomeado um patrimônio mundial pela UNESCO como “o mais importante vestígio físico da chegada dos africanos escravizados ao continente americano”. As obras se depararam com o Cemitério dos Pretos Novos, outro importante local histórico onde os africanos escravizados que chegaram ao Rio foram enterrados em uma fossa desumanizadora quando morriam antes da venda. É nesse contexto que o novo prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, anunciou sua intenção de construir um “Museu da Escravidão e da Liberdade” adjacente ao Cais do Valongo, enquanto o próprio Instituto dos Pretos Novos (IPN) está sob ameaça de fechamento após ter sido negado financiamento do seu governo para manter o orçamento operacional anual.
A importância histórica e contemporânea da Zona Portuária para o Rio de Janeiro, para o Brasil e para o mundo foi universalmente expressa em uma importante audiência na Câmara Municipal do Rio de Janeiro na sexta-feira, dia 11 de agosto. Os participantes colocaram em questão várias narrativas nacionais e culturais construídas sobre esta história, advertindo contra dois extremos: o de abraçar um “folclore” exagerado do Brasil e o de tentar apagar a dolorosa e brutal história da escravidão. As iniciativas da prefeitura na Zona Portuária muitas vezes vacilam entre estes dois extremos.
A Audiência Pública ‘Área Portuária, Pequena África e Cultura’ foi apresentada por Nilcemar Nogueira, secretária Municipal de Cultura. A audiência reuniu vários líderes comunitários e partes interessadas em discutir a proposta da prefeitura para um “Museu da Escravidão e da Liberdade”–um nome provisório–no Cais do Valongo. Numerosos painelistas e oradores argumentaram que o museu não deveria ser construído. E, embora a reunião tenha sido organizada para discutir apenas o museu, a conversa provou que o museu proposto não pode ser separado dos problemas que enfrentam a Zona Portuária, tais como os envolvidos no projeto Porto Maravilha e questões culturais como o racismo e a violência policial.
A audiência pública começou com declarações de cada um dos painelistas, que incluíam o vereador Reimont Otoni como moderador; Marcelo Dias do Movimento Negro Unificado; Damião Braga, presidente do Conselho Diretor do Quilombo Pedra do Sal; Maria Moura, uma Ekédi na tradição do Candomblé; Silvia Mendonça, líder religiosa de Ilè Ogum Megegê Asè Baru Lepê /De Waldomiro de Sangò no Parque Fluminense, Duque de Caxias; Ana Maria de la Merced Guimarães, diretora do Instituto dos Pretos Novos; e Rilden Ramos Mendes de Albuquerque, assessor de Desenvolvimento Econômico e Social na Zona Portuária.
Reimont Otoni começou apresentando a dimensão do tema–o local, nomeado patrimônio mundial pela UNESCO–o Cais do Valongo foi o maior porto de entrada de africanos escravizados na história. Reimont Otoni sugeriu que qualquer mudança na área nunca deve perder de vista a enorme escala dessa tragédia. Os oradores começaram com declarações sobre a Zona Portuária como um todo, afirmando que é um ponto nevral da resistência do Movimento Negro contra os esforços públicos e privados para vender a terra para grandes negócios. Damião Braga observou que só recentemente a Pedra do Sal recebeu o título de Área de Especial Interesse Cultural, mostrando que o Estado tem historicamente feito pouco para proteger e apoiar instituições culturais na Zona Portuária. “É uma obrigação, é dever do Estado cuidar desse patrimônio”, argumentou Damião. Ele continuou dizendo que debater sobre o “Nome A” ou “Nome B” para o museu proposto era uma perda de tempo quando os próprios moradores não estavam sendo atendidos. Muitos desses moradores negligenciados do Porto são descendentes dos próprios africanos escravizados que o novo museu propõe honrar.
Silvia Mendonça falou de seu trabalho com a religião, observando que há “exclusão, até hoje”, das religiões de raízes africanas no Brasil. Ela descreveu seu passado com o movimento feminista negro, observando o importante papel das mulheres na discussão–“nós, mulheres do Candomblé, temos um papel importante… na preservação da nossa história”. Ana Maria de la Merced Guimarães contou sua luta para tentar manter o IPN aberto, insistindo: “é dever do Estado, e não o dever de uma família” manter esse espaço aberto. Ela lamentou que “um país sem educação, sem cultura, é um país doente”. Da mesma forma, Maria Moura falou que muitas histórias são transmitidas através da tradição oral, e essas partes da história estão se perdendo–“há pessoas que não sabem que a Pedra do Sal é um quilombo urbano”. Ela lamentou que, embora grande parte da cultura brasileira provenha de raízes africanas, essas raízes raramente são respeitadas ou preservadas.
Marcelo Dias abordou diretamente o projeto de renovação urbana Porto Maravilha, citando o orçamento mensal exorbitante do Museu de Arte do Rio (MAR) em comparação com os R$85.000 do IPN, e que, devido ao abandono da cidade, o IPN agora deve recorrer à captação de recursos para comprar suprimentos básicos como produtos de limpeza. A secretária de Cultura, Nilcemar Nogueira, se apresentou como “militante”, enfatizando que ela não estava vinculada a nenhum partido político e que se sentia livre para falar o que pensa. Ela deu uma breve descrição de sua visão para o museu–que se relacionaria com o movimento da “nova museologia” no Rio, que seria “experiencial” e que seria um lugar para compartilhar vozes e perspectivas nunca antes ouvidas.
O evento então abriu para as falas dos que se inscreveram para compartilhar suas opiniões. O professor Carlos Vainer, professor de planejamento urbano do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) da UFRJ, descreveu um museu que poderia ser um centro de cultura, pesquisa e arte contemporânea. Ele imagina “um centro global e nacional enraizado na Pequena África do Rio“. Ele argumentou que traria riqueza aos bairros vizinhos através de emprego e que a estrutura administrativa deveria incluir a representação das comunidades circundantes.
Outro orador deu o exemplo de um museu afro-brasileiro previamente construído como prova do fracasso do governo em criar um museu que represente toda a extensão da história, pois trata a história afro-brasileira como meramente um artefato do passado. Mais relevante seria um museu de resistência no Rio nos dias atuais e ao longo do tempo, para contar a história da favela, por exemplo. Mais vozes ecoaram a desigualdade flagrante entre os orçamentos atribuídos para o Museu do Amanhã em comparação com aqueles oferecidos ao IPN, ou para outros projetos na Zona Portuária. Edson Santos, ex-ministro da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, expressou seu apoio a mais expressões da história negra no Brasil, que “raramente são valorizadas pelas elites brasileiras”.
Helena Galiza, que tem um histórico em planejamento urbano, expressou sua frustração com as desigualdades do projeto Porto Maravilha. A cultura e o planejamento urbano devem ser integrados, e a exclusão deve ser denunciada, argumentou ela. “Se não houver um cuidado especial” na Zona Portuária com a implementação de novos projetos como o Museu da Escravidão e da Liberdade, haverá gentrificação, turismo e deslocamento de moradores originais. Ela sugeriu que deveria haver um “sistema preferencial” para os descendentes de moradores existentes nos edifícios novos que estão sendo construídos na região.
Mariluce Luzia do Quilombo Pedra do Sal chamou a atenção para a condição existente e inadequada do quilombo. Ela perguntou: “As pessoas pensam que os moradores da Pedra do Sal querem desordem urbana ou edifícios em mal estado?” Ela levantou uma foto de uma fachada tradicional da Pedra do Sal para argumentar que a Secretaria de Cultura deveria se concentrar em locais existentes, honrando a “dignidade da habitação” dos moradores, um direito humano.
Os painelistas fizeram seus comentários finais, com Silvia Mendonça explicando que, se deve haver um Museu da Escravidão e da Liberdade, deve ser um “espaço de retratações, principalmente” e de políticas públicas e outras ações diretas na comunidade. Damião Braga se perguntou se poderia haver a criação de uma comissão para apoiar os propagadores da cultura que já residem e estão enraizados na comunidade. Marcelo Dias concluiu: “o debate que estamos tendo aqui é o debate de retratações históricas para os negros. E as retratações históricas para os negros também significam a ocupação de nossos espaços”, observando que um desses espaços “para os negros, nesta cidade, é o edifício chamado Galpão Pedro II, construído pelo engenheiro negro André Rebouças“. E para esse espaço, as necessidades não são “simplesmente um museu. Queremos uma biblioteca lá… queremos uma filmoteca”. Como declaração final, Mãe Dezuita conduziu o painel e o público com músicas tradicionais.