Os projetos hidrocarboníferos, junto ao acaparamento de terras, são uma das fontes do agravamento do conflito indígena.
Por Maristella Svampa*, no Correio da Cidadania
O não reconhecimento da responsabilidade da Gendarmeria Nacional no desaparecimento forçado de Santiago Maldonado e, mais ainda, a negação sistemática do fato ocorrido em uma solitária estrada da Patagônia argentina em 1º de agosto, no marco de um protesto em favor da libertação do lonko (líder) mapuche Facundo Jones Huala, gerou no governo Macri uma inesperada crise política. Por um lado, a desaparição colocou no tapete não só o endurecimento do contexto repressivo, mas também o desconhecimento e a indiferença do atual governo a respeito dos consensos forjados na sociedade argentina em torno dos direitos humanos, após a experiência do terrorismo de Estado e desaparição forçada de milhares de pessoas sob a última ditadura. Por outro lado, em meio a uma enorme campanha política midiática de caráter anti-indígena, a crise terminou por dar visibilidade aos reclamos dos mapuches sobre a propriedade das terras, hoje em disputa.
Vai saber como evoluirá a indagação da justiça, diante do chamado a depoimento dos policiais presentes na repressão que culminou com a desaparição de Maldonado e como isto impactará nas eleições parlamentares de outubro, que – supostamente – confirmarão a vitória do governismo em escala nacional. No que diz respeito às reivindicações mapuches, desde o princípio o oficialismo deixou clara uma estratégia política que retoma e potencializa as leituras demonizadoras dos grandes proprietários rurais, que associam aos mapuches a violência e inclusive o terrorismo, além de desenterrarem velhas acusações como aquela de “que os mapuches não são argentinos, são chilenos” ou que “exterminaram os tehuelces”, os supostamente verdadeiros “originários” da região.
A campanha de demonização está ligada à aposta explícita que o governo Macri fez pelo aprofundamento do modelo extrativista, baseado em exploração de combustíveis convencionais, megamineração a céu aberto, multiplicação de represas hidrelétricas e expansão de cultivos transgênicos, ao que deve se somar os empreendimentos imobiliários, em territórios que defendem comunidades indígenas e não indígenas, muitos deles em mãos de proprietários estrangeiros.
O caso é que desde fins de 2015 a situação das comunidades indígenas que reclamam terras ancestrais piorou. Houve numerosos despejos e vários dirigentes indígenas encarcerados em situação irregular, entre eles o wichi Agustín Santillán, detido e encarcerado na província do norte de Formosa, contra quem se reativaram causas anteriores, assim como o dirigente mapuche Facundo Jones Huala, a quem se atribuem crimes de enorme gravidade e está no processo o pedido de extradição do Chile.
A agressiva campanha político-midiática que tenta associar grupos mapuches com a violência politica, supostamente articulada pelo grupo radicalizado Resistência Ancestral Mapuche (RAM), do qual pouco se sabe e muito se inventa sem rigor investigativo algum, arrancou no começo do ano e foi tema central dos principais diários do país.
As comunidades mapuches estão divididas pelo imenso território patagônico, nas províncias de Neuquén, Rio Negro e Chubut. Depois da chamada “campanha do deserto”, em 1878, que exterminou uma parte dos indígenas do sul, muitos dos sobreviventes foram reclassificados como “trabalhadores rurais”, considerados cidadãos de segunda e acantonados na estepe e na cordilheira, em territórios então não valorizados pelo capital.
Há algumas semanas tive a oportunidade de visitar Añelo y Campo Maripe junto com a Confederação Mapuche de Neuquén. Trata-se de uma das organizações indígenas mais sólidas e de maior trajetória da Patagônia. Com o apoio de Organizações Não Governamentais (ONGs) internacionais, veio desenvolvendo um trabalho social e político que aponta conseguir um maior exercício de direitos, assim como o fortalecimento e difusão de sua cultura. As relações da Confederação Mapuche com o poder político, econômico e judicial da província sempre foram tensas. Em 2006, conseguiu um triunfo histórico, ao incorporar na reforma da Constituição neuquina um artigo que reconhece a preexistência étnica e cultural dos povos indígenas, assim como o reconhecimento jurídico das comunidades por parte do Estado provincial.
Mesmo assim, a realidade dos territórios atravessados pela lógica do capital extrativista está longe das promessas da interculturalidade. Em 2013, o Observatório de Direitos Humanos dos Povos Indígenas (ODHPI), destacava que, só para o caso de Neuquén, havia 42 juízos penais (25 deles pelo delito de usurpação), que criminalizavam 241 mapuches por suas ações. Tais lutas estão ligadas a direitos reconhecidos juridicamente, como as reivindicações por terras e territórios, cujos direitos se ampararam na normativa nacional e provincial existente.
Minha presença no coração de Vaca Muerta, junto com organizações sociais, ativistas e intelectuais de diversos países, esteve vinculada à realização de um “ato de desagravo” pelo quarto aniversário da assinatura do convênio entre a multinacional Chevron e a empresa argentina Yacimientos Petrolíferos Fiscales (YPF), o qual abriu as portas ao fracking em grande escala na província mencionada. Talvez poucos lembrem, mas a aprovação de dito convênio por parte da legislatura neuquina (que deveria referendar o firmado pelo governo nacional então presidido por Cristina Fernández de Kirchner) rompeu com todos os protocolos democráticos e inclusive jogou fora a intensa retórica nacional-popular e latino-americana utilizada pelo governo de então. Em 28 de agosto de 2013, enquanto deputados neuquinos votavam favoravelmente sem conhecer a letra do convênio, fora do recinto se desenrolava uma interminável repressão – uma das piores do ciclo kirchnerista – sobre uma forte mobilização composta pelas organizações sociais e ambientais, comunidades mapuches, partidos políticos de esquerda e estudantes.
Ainda assim, o kirchnerismo não estava só: tanto a oposição de centro como de direita acompanharão sua decisão. Para além das incoerências, o “Consenso das Commodities”, como caracterizamos este período, projetava Neuquén como a nova “Arábia Saudita”. Em grande medida, graças à imagem projetada por Vaca Muerta (a maior formação de shale gas, ou gás de xisto, da Argentina), teve a particularidade de mostrar o resistente cordão que une na mesma visão sobre desenvolvimento progressistas, conservadores e neoliberais. Como consequência, e tal como com a soja e megamineração, a Argentina apostará em se converter em um laboratório de grande escala na implementação de uma técnica tão controversa em escala global, através de um marco regulatório claramente inconstitucional e muito favorável aos investimentos estrangeiros.
A história não é linear, no entanto. A partir de 2014, com a queda dos preços internacionais do petróleo, haveria de se colocar freio à febre eldoradista em Vaca Muerta, o que não impediria o início de um processo de reconfiguração social e territorial, com sede em Añelo, localidade ocupada pelas grandes operadoras transnacionais. Certamente, em Añelo tudo está pronto para (voltar a) arrancar, quando se dá o sinal de largada; isto é, apenas aumente o preço do petróleo e se projete um horizonte de rentabilidade para o esperado investimento de grandes corporações globais.
A região de Vaca Morta está longe de ser um “território vazio”, tal como é concebido pelas autoridades provinciais e nacionais. Ali se assentam de modo disperso umas vinte comunidades indígenas. Em função dos direitos coletivos reconhecidos pela Constituição Nacional e as normativas internacionais, os mapuches estão longe também de ser meros “superficiários”, como os taxara sem se envergonhar um dos diretores da YPF, em um debate recente.
Assim, na raiz dos protestos levados a cabo pela Confederação Mapuche, em 2014, o governo de Neuquén teve de reconhecer a comunidade de Campo Maripe, assentada na região desde 1927. O território em disputa, assinala o Observatório Petróleo Sul, é de 10.000 hectares, mas o governo só aceita como parte da comunidade uns 900. Nessa extensão é impossível realizar as tarefas de pastoreio extensivo e agricultura, as duas atividades das quais vivem as 120 pessoas que fazem parte dela.
Desde 2015, os conflitos se agravaram e são muitos os dirigentes mapuches judicializados: em julho deste ano, a gendarmeria irrompeu em Campo Maripe, por pedido da YPF, para sitiar e resguardar a zona de exploração da YPF-Chevron; e faz alguns dias um fiscal declarou em rebeldia seis integrantes de Campo Maripe, sobre quem pesa a acusação de “usurpar” um caminho privado que conduz à jazida Loma Campana.
Este é um exemplo, mas são muitos mais territórios em disputa, hoje recuperados pelas comunidades mapuches que alertam sobre uma estendida cartografia do conflito frente ao avanço das diferentes modalidades do extrativismo e acaparamento de terras. Certo é que companhias como Chevron ou Halliburton, proprietários como o britânico Joseph Lewis ou o grupo Benetton se expandiram notavelmente durante o “ciclo progressista”, mas naqueles anos o avanço dessa lógica depredadora do capital deveria conviver com uma narrativa governista dos direitos humanos que, ainda contrariamente do que as próprias políticas do kirchnerismo impulsionavam, também incluía os direitos dos povos indígenas. Não por casualidade, em 2006, em um contexto de crescente conflitividade, foi sancionada a lei 26.160, que proíbe os despejos das comunidades indígenas das terras que ocupam e ordena a realização de um relevamento territorial.
Mesmo assim, hoje o duplo discurso, suas tensões e contradições, parecem parte do passado. Não só o racismo contra os indígenas segue operando como dispositivo disciplinar e fortemente criminalizador nas cidades, como traz novas dimensões nas crescentes disputas pelos territórios. A campanha anti-indígena contra os mapuches é uma clara ilustração, pois elimina matizes e complexidades, o que é facilitado pelo olhar simplificador e agressivo de certos grandes meios de comunicação. Seu objetivo é claro: trata de dissociar os reclamos dos mapuches do discurso dos direitos humanos, associando-os à violência, e criando as bases de um consenso anti-indígena que avalize ante a sociedade o avanço do capital sobre os territórios em disputa. A este contexto de crescente demonização agrega-se que há alguns dias o Senado argentino, com o voto ativo do oficialismo e abstenção de parte da oposição (inclusive kirchnerista), rejeitou tratar com urgência a prorrogação da lei 26.160, que expira no fim de 2017.
Hoje, mais do que nunca, a extensão da referida lei exige o fim da indiferença e a adoção de um compromisso decidido da sociedade civil em apoio aos povos indígenas. Dita intervenção não só permitiria desmontar o consenso anti-indígena que se pretende instalar; também habilitaria um diálogo necessário e democrático com as comunidades indígenas sobre o lugar que estes povos devem ter no Estado argentino. Ao mesmo tempo, a intervenção da sociedade civil possibilitaria abrir o esperado debate sobre o avanço de modelos de mal desenvolvimento nos territórios e o papel que as resistências sociais hoje existentes têm em defesa da vida.
*Maristela Svampa é socióloga argentina. Traduzido por Gabriel Brito, do Correio da Cidadania.