Quando atingidos viram suspeitos: intimações no contrafluxo do desastre no rio Doce

Por Norma Valencio*, especial para Combate Racismo Ambiental

Na semana passada, uma matéria da grande mídia focalizou a deflagração de um procedimento da Polícia Civil, em Governador Valadares/MG, relacionado a um “pedido” da Fundação Renova. Tratava-se de inquirir 270 pessoas daquela região, intimadas a prestar esclarecimentos. As mesmas estariam recebendo “benefícios” da referida Fundação, desde 2015, ao alegarem uma vinculação com a pesca, atividade severamente prejudicada no desastre relacionado ao rompimento da barragem de Fundão. Entretanto, a Fundação Renova passou a suspeitar que essa vinculação ocupacional inexistia e que tais pessoas não deveriam fazer jus aos “benefícios”, tal como vinha ocorrendo desde então. E a matéria jornalística arrematou: “…se eu te dissesse que tem gente que está recebendo o benefício e não é pescador, você continuaria achando isso justo? É o que está sendo investigado pela Polícia Civil…” (ver aqui)

As oitivas dos suspeitos foram programadas para ocorrer nas instalações da UNIVALE, em Gov. Valadares, no campus Armando Vieira. Informações posteriores logo davam conta de que o total de pessoas sob suspeição e a serem ouvidas pela autoridade policial tinha subido para 350. E, em comentário enviado a matéria publicada neste Blog, a supramencionada instituição acadêmica pronunciou-se de modo a entender que havia compatibilidade entre a prática policial – neste caso, acionada pela representação dos interesses das empresas responsabilizadas por esse desastre socioambiental sem precedentes na história nacional – e a missão universitária no âmbito de seu caráter comunitário (ver aqui).

Se esse acontecimento pontual for interpretado apenas sob uma perspectiva legal reducionista e enviesada, tal como nos pareceu ter sido o tom adotado na referida matéria jornalística, a noção de justiça parece prescindir totalmente da busca dos fundamentos do “pedido” que ensejou essa miríade de intimações, ou seja, de se ter em consideração o contexto mais amplo do assimétrico campo de forças entre os responsáveis e os afetados nesse desastre catastrófico. Passa-se, assim, a enquadrar o problema tão somente na obrigação dos suspeitos em comprovar (provavelmente, segundo critérios formais de vinculação ocupacional) que não cometeram falsidade ideológica.

Porém, numa perspectiva social mais alargada de justiça, o problema talvez suscitasse outro elenco de questões, tais como:

– Quando a Fundação Renova realizou o processo inicial de cadastramento dos atingidos, em 2015, o qual ensejou o pagamento disso que ora é denominado como “benefício” (na aludida reportagem), qual teria sido a concepção institucional adotada em relação à forma de organização e reprodução do trabalho da pesca na região? Como tal concepção norteou, à época, os critérios adotados para fins de inclusão/exclusão de pessoas em seu cadastro bem como de precificação das compensações frente ao dano causado às mesmas e às suas respectivas famílias? Que falha a referida Fundação reconhece ter havido em sua atividade de cadastramento? Quais são os fundamentos concretos das suspeitas levantadas em relação a um subconjunto de pescadores-atingidos e que balizaram o seu “pedido” à autoridade policial (pedido que, na prática, parece ter o efeito de uma denúncia) que prontamente se mobilizou?

– Que novos repertórios de sentidos sobre esse desastre catastrófico estão sendo paulatinamente construídos, por quais sujeitos sociais e através de quais mecanismos de difusão para re-enquadrar (explicita ou tacitamente) os diferentes subgrupos de atingidos na categoria de “aproveitadores”? Como vem ocorrendo a legitimação de uma noção de crime que está sendo acionada num contrafluxo da compreensão pública do desastre, ou seja, deslocando o problema central das medidas recuperativas morosas e insuficientes para o lançamento de suspeição massiva contra subgrupos de atingidos (lembrando que, em Mariana, as famílias dos distritos afetados e que estão à espera de soluções já sofrem com a pecha de “aproveitadores”)? Que efeitos simbólicos – além de psíquicos, comunitários, econômicos e políticos – essa prática de deslocamento do problema estaria visando?

– Que política editorial embasou a disposição midiática para amplificar, através da referida matéria jornalística, a naturalização do processo de desencadeamento de um conjunto substantivo de oitivas? Que cuidados interpretativos deixaram de ser tomados quando se fez crer que a preocupação de centenas de pessoas intimadas naquela região (inclusive, oriundas de outros municípios e que tiveram que se deslocar para Gov. Valadares mesmo havendo autoridade policial similar em seu município de origem, tal como um dos entrevistados reportou) só seriam dissipadas através de escoramento em documentação probatória de seu vínculo profissional?  Que normalidade há numa ação policial espetaculosa que vem em atendimento a um mero “pedido” da instituição que representa as forças sociais que exauriram os horizontes de sustentabilidade socioambiental regional? Porventura não teria sido essa uma oportunidade ímpar para uma mídia socialmente comprometida problematizar esse “pedido” e a forma que as autoridades policiais encontraram para atendê-lo, tanto em termos dos esforços desproporcionalmente mobilizados (a ponto de exigir o deslocamento de parte do seu efetivo da base territorial usual de atendimento para um local mais amplo) quanto do, por assim dizer, “sentido pedagógico” subjacente, isto é, de colocar centenas de pessoas, numa só tacada, numa situação pública vexatória, obrigando-as a demonstrar tempestivamente que faziam jus ao “benefício”?

 – Seria realmente papel essencial da Universidade predispor-se a servir de locus a essa performance empresarial-policial que acuou membros das comunidades locais afetadas nesse desastre?

E assim por diante.

As respostas para essas e outras tantas questões que possam surgir em torno desse acontecimento são complexas e as controvérsias seriam infindáveis. Não obstante, desde a nossa perspectiva, algumas pistas não deveriam ser desprezadas.

A primeira delas, a de que esse desastre (como tantos outros) não pode ser considerado pós-desastre, uma vez que não se pode confundir três distintos tempos, a saber: o tempo do evento, o colapso da barragem de rejeitos e a inundação que matou, feriu, destruiu e contaminou o ambiente localizado a jusante; o tempo da emergência (situação de emergência ou estado de calamidade pública), que cria uma excepcionalidade administrativa para lidar com as providências públicas entendidas como sendo as mais urgentes; e o tempo do desastre propriamente dito, explicado pela duração do sofrimento social relacionado às perdas e danos coletivos, ou seja, o processo de estresse coletivo que, entre a crise aguda e sua cronificação, não encontrou reparação a contento. Tal distinção permite considerar que há dois anos deflagrou-se esse desastre catastrófico e que esse muda de nuance a cada dia, inclusive devido à lentidão, inadequação e insuficiência dos processos recuperativos. Mas, chamá-lo de pós-desastre significaria aceitar que as rotinas comunitárias se recompuseram a contento, o que, de Mariana à foz do rio Doce, no litoral capixaba, parece que ainda não é o caso.

Outra pista a considerar, decorrente da primeira, é a de que a narrativa sobre pós-desastre, que parece inocente e apenas escorada num tempo cronológico, tende também a atuar no tempo social da localidade afetada de modo a ressignificar os elementos e os processos em torno do desastre havido. Forjam-se novas estruturas de sentido e memórias, tornando-as mais compatíveis com os interesses dominantes e a mentalidade mais conservadora. As evidências que embasam a responsabilização em torno desse desastre se tornam a cada dia mais tênues – porque o tempo cronológico colabora para que novos fatores ambientais interfiram na relação de causa-efeito da contaminação decorrente do colapso da barragem de rejeitos -, ao passo que o tempo social acende os velhos preconceitos locais contra os grupos sociais que já se encontravam às margens (e vistos como obstáculos) da cadeia de negócios em torno do setor minerário e a ela passaram a vincular por meio do “benefício”.

Adicionalmente, é de considerar que o uso do conceito de “benefício” escamoteia aquilo que, ao nosso ver, é um arremedo de compensação diante o malefício causado às condições ambientais objetivas relacionadas ao exercício do trabalho da pesca artesanal e viabilidade de sua reprodução social, além das atividades extraeconômicas que lhes dão suporte. Mais do que um mero trabalho, a pesca artesanal é um modo de vida configurado por saberes específicos sobre a dinâmica ecossistêmica e seus elementos constituintes, transmitidos através da história oral; por práticas específicas, relacionadas às técnicas de elaboração e manejo de petrechos; por formas de sociabilidade específicas, voltadas à aprendizagem de jovens na atividade, à camaradagem, às regras de acesso à ictiofauna, à associação entre a rotina doméstica e comunitária e de trabalho, entre quintais, terreiros e praias, e por aí afora.

Em termos formais, esse trabalho se organiza em torno de Colônias ou Associações, as quais também se articulam na Federação Estadual e na Confederação Nacional. Supõe-se que tais instituições disponham de documentação probatória sobre o rol de seus associados. Portanto, esse teria sido um caminho que, com menos alarde, se poderia conferir tal vínculo associativo de uma grande parte dos pescadores, os quais então não precisariam ter sido incomodados por uma intimação policial para que fosse checada a sua condição de trabalhador. Todavia, uma vez que a atividade econômica que embasa o modo de vida da pesca também é composto por aprendizes e ajudantes, sendo os mesmos eventuais ou regulares; por trabalho comunitário ou doméstico adicional fora do ambiente aquático (como na produção ou manutenção de petrechos e iscas, além de limpeza, filetagem e de conservação de peixes e de outras espécies dessa fauna, tratando-se recorrentemente trabalho feminino invisível); por comércio de geleiros e pela venda do recursos capturado (in natura ou não, incluso na forma de petiscos), toda essa gama de trabalhadores se sentem pertencentes ao mundo da pesca. Sobrevivem da pesca. Isso cria um viés muito claro entre ser ou não um pescador, e ser membro dessa communitas, vindo a se sentir prejudicado, no desastre em curso, em decorrência dos efeitos diretos da contaminação ambiental sobre a pesca.

Outro aspecto, é o de que a pesca de subsistência (no geral, associada à lavoura ou pequena criação de aves e mamíferos) e a de finalidade comercial são distintas, de modo que a finalidade de subsistência pode ser considerada culturalmente como um trabalho, na medida em que o mesmo é visto como um esforço, mas isso independe dos requerimentos de caráter formal e associativo no meio profissional da categoria. Isso implica dizer que, uma vez intimado, o/a chefe da família e seus membros dedicados a tal esforço de subsistência não estarão escorados numa formalização profissional nem tampouco numa documentação correspondente, pois o exercício de suas artes para fins de sobrevivência, característico de um modo de vida tradicional, deixa escapar os nexos de formalizações próprias da racionalidade urbana. Poderão vir a ser penalizados por causa disso, isto é, por não se enquadrarem numa concepção de pesca eventualmente mais restritiva que venha a ser adotada por aqueles que lhes lançam suspeição?

Sobre o papel da mídia nesse episódio, sobram preocupações, uma vez que houve insistência, na matéria, de que a Fundação Renova teria feito um “pedido” à Polícia Civil. A pista a seguir, nesse aspecto, é a de que a atuação policial espetaculosa contra atingidos no desastre parece algo plausível num contexto democrático. Há que se ter em conta, sempre, que os meios de comunicação têm como tarefa precípua a de recortar aquilo que se passa sob os olhos da sociedade e de seus profissionais e agir como um intérprete daquilo que pauta para ser, então, amplificado. No caso da matéria jornalística em tela, foi dado de barato que a assimetria de forças entre os sujeitos centrais nesse desastre – responsáveis e atingidos – agora passou a contar com uma importante mediação, a policial, o que pode vir a recrudescer o desnivelamento de poder. Esse desbalanço foi apresentado como um “dado da realidade”, naturalizando a desconfiança contra os desviantes, aqueles que não se ajustam aos requerimentos do ideário de progresso de seu tempo histórico.

Nessa jovem e cambaleante democracia, também é preocupante constatar que uma Universidade aceite se tornar uma extensão espacial de uma repartição policial e considere que isso possa ser uma de suas atribuições normais na interação institucional com os demais membros da comunidade da qual participa. Desde a Constituição Cidadã de 1988, a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão passou a reger a concepção integrada dos saberes e fazeres universitários, os quais devem, mais do que reproduzir o meio social, apontar para novos horizontes. Desse modo, fica difícil entender como uma prática policial – que, embora embasada na lei, tenha o efeito prático de atender a um “pedido” do meio empresarial, representado pela mencionada Fundação, às custas de suscitar o constrangimento público centenas de pessoas das comunidades locais -, possa estar localizada, de um modo coeso, na agenda de pesquisa, de ensino ou de extensão da instituição anfitriã.

Seria concebível e até esperado que a Universidade se prestasse à produção de conhecimento (através de pesquisa, inclusive, de caráter participativo), ao ensino (de graduação e pós-graduação, no conteúdo de suas disciplinas teóricas e práticas, nos trabalhos de conclusão, nos estágios e afins) e à extensão (através de seminários, oficinas e outros) sobre as estruturas, dinâmicas e desafios hodiernos das comunidades tradicionais; sobre as relações umbilicais e problemáticas entre o meio empresarial e político, que culminaram na crise nacional em que estamos mergulhados; sobre a necessidade de aperfeiçoamento da investigação e da abordagem policial no contexto insistente de discriminação e preconceito de classe e raça; sobre a multidimensão de desastres como este, que é emblemático; entre outros. Mas, qual aprendizagem subjaz a um processo no qual estudantes de um curso de Direito, dentro de um espaço universitário, são postos à disposição do trabalho policial desencadeado por via de intimações a um coletivo, o qual, de um modo não voluntário (portanto, fora dos requerimentos exigidos por Comitês de Ética universitários) terá seus indivíduos persuadidos a proferir declarações e apresentar provas de sua integridade? Como estão eles preparados para distinguir o que é certo e o que não é dentro de uma relação complexa de poder, a qual exigiria um conhecimento sociopolítico e socioambiental sólido e prévio, que talvez não esteja no conteúdo de sua formação?

Por fim, mas não menos importante, uma pista de que algo de muito grave está ocorrendo é que esse episódio pode não ser algo pontual, mas um sintoma desse contrafluxo do desastre, no qual a inicial solidariedade e mobilização da sociedade em torno dos direitos dos atingidos se desloca paulatinamente para a precedência dos interesses empresariais sobre tudo o mais, de modo a significar que aqueles que reivindicam compensações são agora obstáculos inaceitáveis para a retomada da acumulação voraz.

*Norma Valencio é vice-coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas Sociais em Desastres – NEPED, do  Departamento de Ciências Ambientais – DCAm da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar.

Destaque: O Rio Doce tomado pela lama das barragens. Foto: Daniel Marenco / Arquivo O Globo.

 

Comments (1)

  1. Antes de qualquer coisa, falta seriedade institucional nas ações públicas e excesso de paternalismo na elaboração e na execução de projetos na área publica.

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