Como resgatar o equilíbrio das relações após um ano marcado pela intolerância

Por Karine Wenzel, no DC

Em 21 de agosto deste ano, a imagem de uma professora com o supercílio direito cortado e o rosto ensanguentado invadiu as redes sociais e ganhou repercussão nacional. Docente de língua portuguesa em Indaial, no Vale do Itajaí, Marcia de Lourdes Friggi, 51 anos, levou tapas e socos de um aluno dentro da escola. Abalada, ela decidiu fazer um relato do que havia ocorrido nas redes sociais.

Mas, ao contrário do que era de se esperar em um caso de violência, boa parte das mensagens destinadas a Marcia não eram de apoio. “Provou do próprio veneno”, “lei do retorno”, “vendo que é uma petralha agredida fico até feliz” foram alguns dos comentários que fizeram com que ela bloqueasse a própria rede social. Muitos a consideraram merecedora da agressão por ter celebrado a ovada contra o deputado federal Jair Bolsonaro (PSC) alguns dias antes.

— Quando eu fiz aquele desabafo [depois do soco na escola], eu estava em estado de choque. Não tinha a menor noção da repercussão que poderia tomar. Foi uma surpresa muito grande o discurso de ódio. A intolerância vem de uma incapacidade de aceitar e de entender o mundo como um espaço plural e complexo — define Marcia, ao relembrar o episódio que classifica como linchamento virtual.

Esse está longe de ser o único caso de intolerância e ódio que teve Santa Catarina como palco em 2017. No mês seguinte, um casal levou o filho com um corte na cabeça ao Hospital Florianópolis, porém não conseguiu atendimento. Enquanto tentavam estancar o sangue com uma toalha, buscavam um táxi para ir a outro pronto-socorro. Mas os motoristas se negaram a levá-los, porque tinham chegado ao local de Uber. Depois de ver toda a cena, um jovem desconhecido acabou dando uma carona à família.

O senagalês Modou Kara, 26 anos, mora há cinco anos no Brasil e diz sofrer racismo todos os dias, mas a pior situação de preconceito foi vivida em 16 de dezembro, na feira da Lagoa da Conceição, em Florianópolis. Três homens derrubaram o artesanato que ele vende duas vezes no mesmo dia, além de o insultarem, gritando que essa aqui não era a terra dele e que deveria voltar para a África. O artesão diz que não denunciou o fato à polícia porque “não vai adiantar nada”, mas fez um vídeo com o relato e postou nas redes sociais:

— Estamos no século 21, precisamos de respeito, todos somos irmãos. Quem não é vítima não sabe o que é o racismo que enfrentamos todos os dias. Além de questões religiosas e políticas, a sexualidade também é alvo constante de ataques e brutalidade.

O prefeito Clésio Salvaro (PSDB), de Criciúma, criticou em uma rede social uma reportagem do Fantástico, em outubro, sobre a educação de meninos e meninas com liberdade para escolha de brinquedos e até roupas sem distinção de gênero. Salvaro classificou de “pouca vergonha” a matéria: “um estímulo à viadagem”. Diante da repercussão, ele deletou  o texto. Em novembro, um casal de namorados de 21 e 27 anos foi agredido na Capital. Um dos rapazes foi atingido por dois socos e o outro chegou a ficar desacordado depois da violência.

Mas, afinal, por que mesmo com tantos avanços ainda há dificuldade em aceitar as opiniões ou posturas divergentes? A intolerância sempre existiu – basta olhar para as guerras e genocídios, por exemplo. A diferença é que hoje, com as redes sociais, ela tem o potencial de ser ainda mais disseminada.

O caminho para reverter esse cenário de agressividade também não é nenhuma novidade. A rota para aceitar mais o próximo e as diferenças – que todos temos – é a empatia. Essa habilidade consiste em se colocar no lugar do outro por meio da imaginação, tentando compreender os sentimentos e perspectivas diferentes e usar essa compreensão para guiar as próprias ações. Apesar da teoria mostrar a direção, o caminho é difícil e passa, principalmente, por reflexão, mudança de conduta e pela educação.

Elcio Cecchetti, docente do mestrado em Educação da Unochapecó e membro titular do Comitê Nacional de Respeito à Diversidade Religiosa, afirma que a sociedade continua com muita dificuldade de conviver com pensamentos divergentes. Tamanha intolerância coloca em xeque a imagem do Brasil como um país cordial e respeitoso:

— É um mito que somos tolerantes. A gente nunca foi tolerante com os indígenas, com os negros. Negamos esses credos e sobre as matrizes africanas recai o estereótipo de que são cultos demoníacos. Nunca fomos tolerantes com judeus, nem com os primeiros protestantes que pisaram aqui. O Brasil é um território de intolerância.

O grande desafio é conseguir que as pessoas consigam lidar com as diferenças sem conflitos. Isso se torna ainda mais difícil ao perceber que o diferente, ao contrário do que muitos acreditam, não está longe, mas do outro lado do muro, acrescenta Cecchetti.

O psicanalista João Angelo Fantini, professor do curso de Psicologia da Universidade Federal de São Carlos e autor do livro Raízes da intolerância, aponta algumas causas para essa dificuldade em aceitar o outro. Os processos intolerantes podem ser explicados pelo que é chamado de inversão projetiva:

— O homofóbico seria alguém em dificuldades com sua própria virilidade ou feminilidade; o xenófobo, alguém que não consegue lidar com a própria irrelevância e impotência de origem; o machista alguém que teme a escalada do poder feminino, diante do qual sente-se desprotegido.

Mas é possível reverter essa lógica. O padre Vilson Groh, 63 anos, é um exemplo de tolerância em uma área tão sensível ao tema, que é a religião. Com 36 anos de sacerdócio, diz que sempre manteve comunicação com terreiros de candomblé e umbanda. Essa relação começou assim que chegou ao Morro do Mocotó, comunidade de Florianópolis, em 1979, quando foi acolhido por uma mulher negra, militante e mãe de santo.

— Uma coisa é olhar a religião enquanto dogma e toda religião enquanto dogma é extremamente intolerante. Outra é olharmos a espiritualidade, centralizada em Jesus, que foi o homem mais dialogante, tolerante, de comunhão profunda com o diferente — reforça.

O religioso acredita que a intolerância é resultado de um desenvolvimento baseado principalmente no viés de mercado. Então, o outro se torna uma mercadoria, algo que pode ser descartado, criminalizado.

— A intolerância surge quando eu perco a relação humana com o outro, que é parte de mim. A intolerância está ligada ao medo, que paralisa, engessa e cria estruturas cada vez mais fortes de repressão, porque eu prefiro atacar o inimigo a dialogar. Não conseguimos nos conectar com esse diferente em uma relação de reciprocidade, de acolhimento, de respeito e de compaixão — define.

Todo esse cenário ganha contornos ainda mais graves com as redes sociais. A professora Marcia, de Indaial, recebeu mensagens de ódio que a culpavam pelos socos recebidos. Por isso, até hoje mantém bloqueada a interação com desconhecidos nas redes e evita postar sobre política.

A psicóloga Andrea Jotta, do Laboratório de Estudos de Psicologia e Tecnologias da Informação e Comunicação da PUC-SP, explica que com as redes é possível acompanhar os discursos e há um efeito de amplificação da intolerância. Além disso, os algoritmos mostram ainda mais conteúdos que o usuário posta ou consome, o que reforça as próprias convicções, criando assim uma espécie de bolha. Ela lembra que é mais comum as pessoas se excederem e serem ainda mais agressivas na internet pelo sentimento de anonimato ou impunidade.

O psicanalista Fantini segue na mesma direção. O professor compara as redes com os torcedores em um estádio de futebol, na lógica da experiência de indivíduos em massa:

— As redes oferecem um falso anonimato e a possibilidade de imersão e de perda de limites, isto é, do sujeito agir em público como se estivesse individualmente fora do alcance dos outros, revelando os segredos sujos que ele evitaria mostrar em sociedade.

A professora Zilda Iokoi, do Diversitas – Núcleo de Estudos das Diversidades, Intolerâncias e Conflitos da Universidade de São Paulo (USP), faz uma ressalva: ninguém nasce tolerante ou intolerante. Isso se aprende com a família, sociedade e na escola. Essa postura está baseada principalmente no sentimento de medo e insegurança diante da incompreensão. Por isso acredita que assim como se combate o medo de escuro nas crianças, mostrando o que há ali de fato, o mesmo deve ser feito em relação à dificuldade de respeitar as diferenças.

— Há estruturas de intolerância muito antigas, que vêm dos conflitos religiosos da Idade Média, como de cristãos versus muçulmanos. Elas só podem ser minimizadas ou eliminadas por duas vias: convívio ou cultura, como na literatura e cinema.

O caminho da empatia

Ao chegar na construção que imita uma caixa de sapatos gigante, o visitante pode escolher entre um dos 25 pares disponíveis. Ao calçar e caminhar com um deles, é possível escutar o depoimento da pessoa a quem eles pertenceram. Essa é a proposta do Museu da Empatia, que ficou montado no Parque do Ibirapuera, em São Paulo, até meados de dezembro.

A ideia se baseia na expressão inglesa walk in someone’s shoes (caminhar com os sapatos de alguém) para permitir a experiência de estar no lugar do outro, que é a essência da empatia. Essa habilidade é apontada pelos especialistas como essencial na busca de uma sociedade mais tolerante.

Andréa Buoro, diretora do Intermuseus, que trouxe a exposição para o Brasil, acredita que uma sociedade empática consegue lidar melhor com conflitos, porque reconhece a diversidade que existe nela e tenta compreender. Ou, no mínimo, torna o diálogo mais possível.

— A empatia pode ser aprendida. E duas questões estão envolvidas neste processo, principalmente no mundo de hoje, muito agitado, tecnológico e complexo: a primeira é conseguir escutar o outro. Conseguir parar e escutar de verdade. E a partir dessa escuta, reconhecer a diversidade e os direitos de diferentes pessoas — afirma.

Porém a empatia tem alguns filtros, destaca o psicanalista Fantini. Ele cita alguns obstáculos, como a distância geográfica e psíquica: quanto mais longe em termos geográficos, ou mais distante dos nossos afetos, menos possibilidade de estabelecer empatia.

— Por exemplo, se uma criança é atropelada na nossa cidade, normalmente sentimos mais empatia do que se 10 crianças forem mortas na Síria – cita.

O cientista político e sociólogo Roman Krznaric, no livro O Poder da Empatia, lançado em 2015 no Brasil, se debruçou sobre o tema. Ele explica que neurocientistas identificaram no cérebro um “conjunto de circuitos da empatia”, que impactam diretamente na capacidade de compreender o que outras pessoas estão sentindo. Além disso, biólogos evolucionistas também mostraram que o seres humanos são animais sociais que evoluem naturalmente para serem empáticos e cooperativos. Ou seja, “é evidente então que temos em nossa natureza um lado empático, tão forte quanto nossos impulsos internos egoístas”, escreveu.

Porém atualmente vive-se o que ele chama de déficit de empatia e isso pode estar relacionado ao fato de mais pessoas morarem sozinhas e passarem menos tempo envolvidas em atividades sociais e comunitárias. Também haveria uma “epidemia de narcisismo”, quando as pessoas se interessam cada vez menos pelas vidas de outras pessoas.

Uma das saídas é, além de reforçar o ensinamento em casa na prática, trabalhar a temática em escolas. Exercitar a empatia e o diálogo foi inclusive uma das aprendizagens essenciais definidas na Base Nacional Comum Curricular, aprovada neste mês pelo Conselho Nacional de Educação. O documento servirá como referência para a formulação dos currículos em todas as escolas públicas e privadas do país.

Desenvolver essa habilidade foi exatamente o que fez a professora Kamilla da Silva Rovaris, docente há sete anos. Ela estava incomodada com os constantes insultos, empurrões e conflitos dos alunos na escola EEB Pedro Simon, de Ermo, no Sul de SC. Kamilla resolveu implementar o projeto Vida: Ame, Cuide, Valorize nas aulas de artes no segundo semestre deste ano.

Inicialmente pensada para o ensino médio, a iniciativa se expandiu para toda a escola. Foram várias práticas para falar sobre o tema. Em uma delas, alunos escreviam em cartazes apelidos que não gostavam. “Gorda”, “cabeção” e “nariz empinado” foram alguns dos que apareceram. Em outra, alunos descreviam os sentimentos em relação a alguns insultos. Um deles, por exemplo, revelou que se sentia magoado quando o chamavam de Pelé.

— É muito importante trabalhar isso na escola, porque é neste ambiente que começam os apelidos. Nem eu sabia que os traumas eram tão profundos. Depois do projeto, eles começaram a ter mais consciência. Saber que os atos tinham consequência — diz a professora, que pretende continuar o trabalho no próximo ano.

Aprender a respeitar as diferenças pode não ser tarefa fácil. Por isso, o trabalho deve ser em conjunto. Para o pesquisador Cecchetti atualmente vive-se um momento de mudança de mentalidade e a educação é a principal via para isso.

— Um caminho possível é começar a entender que a vida do outro, que pode ser diferente ou idêntica a minha, não é problema. Pelo contrário, a riqueza está na diversidade.

Para começar a adotar uma postura mais alteritária, ou seja, de respeito às diferenças, o primeiro passo é a reflexão. E o fim de ano é uma ótima oportunidade para isso. O padre Vilson sugere um balanço de vida para mensurar nosso grau de aceitação e relação com o próximo.

— Afinal, como foram minhas ações durante o ano, quantas vezes passei pelas pessoas e as reconheci e parei para escutar? Eu fiz um gesto solidário, eu tive relação de proximidade, de qualidade? — questiona.

Essa avaliação interna permite a reconexão com a história, família e amigos. Além disso, segundo o religioso, faz com que cada um se lembre que para ser feliz não precisa de muitas coisas, mas que passa pela relação com o outro, pelo reconhecimento.

Para Groh, é fundamental recuperar de novo a ternura, que é a única força capaz de romper com a brutalidade. Mas nada de ficar apenas no discurso. É para colocar a mão na massa e começar olhando para a própria casa, rever o modelo de vida, os vínculos com os familiares e com os bens materiais. Livrar-se das coisas que não se precisa mais e estabelecer relações verdadeiras são partes fundamentais nesse processo.

Depois dessa reavaliação, é hora de olhar para fora e buscar vínculos com os outros e com projetos sociais. Com todas essas mudanças, o religioso acredita que é possível ter uma perspectiva otimista em relação ao futuro. Aliás, é o que defende também a professora Marcia Friggi.

Com o supercílio cicatrizado, depois de tratamento médico e psicológico e do apoio da família, ela se sente segura para voltar à sala de aula, o que deve ocorrer no próximo ano. Apesar do receio e ansiedade, conta, acima de tudo, com uma boa dose de confiança:

— A gente está trabalhando com aquelas crianças e jovens com olhar no futuro. A matéria-prima do nosso trabalho é a esperança.

 

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