“Quando não há participação democrática, comunidades quilombolas deixam de ser protagonistas no seu território”

Por Sabrina Felipe – Vias de Fato

Ao longo de quase um mês, o jornal Vias de Fato vem publicando reportagens sobre irregularidades cometidas pelo DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes) em obras de duplicação da BR 135 que afetam áreas quilombolas no município de Itapecuru-Mirim, Maranhão. A reportagem teve acesso a documentos públicos, até então não divulgados publicamente, que revelaram os planos da autarquia federal para remover 345 casas do território quilombola Santa Rosa dos Pretos sem nunca ter consultado a população, desrespeitando legislação federal e convenção internacional. Além dessa e outras violações, a reportagem apurou, junto às comunidades, que a duplicação da BR 135 pode gerar impactos negativos irreversíveis à saúde financeira, psicológica e espiritual dos quilombolas afetados pelo empreendimento.

Hoje, o Vias de Fato publica entrevista exclusiva com o advogado Filipe Farias Correia, do Centro de Cultura Negra do Maranhão (CCN). Nesta conversa com a repórter, realizada por telefone, Correia analisa aspectos jurídicos da atuação do DNIT e da SEMA (Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Recursos Naturais do Maranhão) em território quilombola, explica a responsabilidade do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e da Fundação Cultural Palmares (FCP) nessa questão, e fala da necessidade de um debate público amplo sobre a duplicação. Informado de que o DNIT convocou reunião com comunidades quilombolas para o próximo dia 17/1 – sem que nunca antes as tenha consultado sobre a duplicação –, Correia sugere que as comunidades estejam próximas do Ministério Público Federal e Estadual, da Defensoria Pública e de entidades da sociedade civil que as apoiam para que não sofram, novamente, as consequências da falta de transparência e das irregularidades cometidas pelo DNIT nas obras de duplicação.

Questionado sobre se havia realizado escutas junto às comunidades quilombolas entre Miranda do Norte e Bacabeira, área da duplicação, o DNIT afirmou que “foram realizadas audiências públicas na fase de licitação, nas quais foi franqueado à população oportunidade de se manifestar sobre o empreendimento (duplicação)”. No entanto, o que a autarquia fez foi publicar um anúncio em jornal maranhanse dando 45 dias de prazo a qualquer pessoa que quisesse convocar uma audiência pública – sendo que não houve procura por audiências. O DNIT pode dizer que realizou escuta segundo o que determina a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho)?

Essa audiência que o DNIT aponta é uma previsão normal que existe nos procedimentos licitatórios e que deve ser realizado para dar publicidade para a sociedade como um todo. Mas isso não supre as escutas das comunidades tradicionais que sofrem a incidência de determinado empreendimento. A escuta não é esse tipo de instrumento que eles apresentaram. A escuta é uma audiência específica, com uma metodologia diferenciada, e que serve só para isso. Esse é um primeiro vício que já se encontra [no processo de licitação do DNIT].

Qual é o procedimento correto, de acordo com a Convenção 169 da OIT, para que a escuta seja feita?

Ainda não existem diretrizes legais fechadas. O que nós temos é uma construção do Ministério Público Federal (MPF), que traz critérios básicos e sua forma de aplicar. Por exemplo: a entidade que está realizando a obra não pode ser a que dirige a audiência. Essa audiência deve ser conduzida pela própria comunidade e entidades, como a Fundação Cultural Palmares (FCP), que é estatal, e organizções da sociedade civil. Estas organizações vão elaborar, junto com a comunidade, a metodologia dessa escuta, dessa audiência especial. Uma audiência que o DNIT realizar, por si só, já não atende o requisito da escuta. Se o DNIT realizar uma audiência ele vai direcionar para onde ele quiser. Essa audiência deve ser gestada por todos, mas esse parâmetro, rotineiramente, não é obedecido.

Por quê?

Porque essas audiências são pretéritas [feitas antes de o empreendimento ter início]. No momento em que você as realiza, você deixa a comunidade ciente de que algum distúrbio vai acontecer, então isso já atiça as pessoas a irem buscar os órgãos públicos, a Defensoria, o Ministério Público para tentar entender [o que está acontecendo]. Isso gera uma grande mobilização. E hoje, infelizmente, os grandes empreendimentos não atendem a lei e não há nem a possibilidade de se fazer uma discussão política para ver se o empreendimento é válido ou não. Então é algo totalmente desvinculado da questão política, porque não tem uma discussão da sociedade, e é desvinculado da lei, porque [o empreendedor] não obedece os trâmites legais necessários.

A reportagem entrevistou Antônio Oliveira Santos, coordenador geral de Regularização de Territórios Quilombolas do Incra do Distrito Federal. Ele afirmou que o órgão não foi procurado pelo DNIT em nenhum momento para discutir a duplicação, mas disse que o Incra também não tem competência de fiscalizar nenhuma atividade como a implantação de uma BR. Do ponto de vista legal, como você avalia essa resposta?

Isso é preocupante. O Incra, apesar de não estar legalmente obrigado [a fiscalizar], com o passar do tempo foi esvaziando a sua participação em qualquer tipo de discussão territorial rural. Hoje em dia o Incra cumpre precariamente suas atividades rotineiras porque não têm dinheiro. Eles não conseguem fazer nada por questões políticas mesmo – o congresso não dispõe de dinheiro para eles trabalharem, e há menos dotação ainda para a questão quilombola. Se você for ao Incra aqui no Maranhão você vai ver, já na própria estrutura do trabalho rotineiro, que ele não tem dotação suficiente para fazer uma gestão territorial num Estado que é um dos maiores do Brasil. É preocupante pelo fato de que, como o Incra tem um destaque nessa problemática, ele é totalmente secundarizado.

Por que isso acontece?

A titulação quilombola é feita numa área que vai se tornar inalienável [que não pode ser vendida ou cedida], é uma área que vai sair do mercado, e não é de interesse de quem quer se apropriar da terra para fins lucrativos que se tenha essas grandes porções de terra fora de onde seja possível se apropriar dela. Isso é fruto de uma política de enfraquecimento direcionado. A gente tem um espaço institucional que é a Mesa Quilombola. Lá, o Incra foi questionado sobre por que não tem orçamento para fazer a regularização fundiária dos quilombolas. Foi falado claramente que não tem dinheiro porque existe uma política de não fazer a regularização quilombola, mas sim a comum, individual, cada um com seu pedaço de terra. Para essa tem dinheiro. Essa é uma regularização que, se a pessoa quiser realizar um grande latifúndio, é mais fácil ela enfraquecer o pequeno trabalhador do campo e tomar a terra dele. Você não consegue fazer isso com terras quilombolas, porque é uma área que sai do mercado. Então há uma precarização direcionada, ciente, para que esse setor específico não tenha acompanhamento especial de diversos órgãos.

Esse sucateamento também acontece na Fundação Cultural Palmares?

A FCP, na estrutura administrativa do nosso país, ficou com a incumbência de fazer essa assistência às comunidades em relação ao licenciamento ambiental de grandes empreendimentos. Então ela, sim, é uma autarquia que é mais competente para fazer esse esclarecimento, para participar diretamente. Inclusive, a manifestação da FCP é essencial para a expedição desse tipo de empreendimento. Só que, de forma até pior que o Incra, a FCP não tem viabilidade nenhuma de funcionar. Hoje em dia você conta com duas pessoas no Maranhão, o responsável e um assistente. Há pouco tempo atrás só tinha uma pessoa. Não tem condição nenhuma de abarcar a quantidade de empreendimentos.

Voltando ao Incra: o coordenador geral de Regularização de Territórios Quilombolas do Incra do Distrito Federal disse que a duplicação da BR não interfere na titulação das terras quilombolas. O que você acha disso do ponto de vista legal?

Do ponto de vista legal, ele deveria ter um esclarecimento melhor dessa fala. É claro que afeta, porque se uma parte [a parte ocupada pela BR duplicada] não vai ser mais regularizada, já afetou. A duplicação pode não extinguir o processo, porque o processo continua na área não afetada pelas desocupações ou desapropriações. Mas se você reduz o tamanho do território a ser titulado, você já afetou.

O Incra Maranhão afirmou que o DNIT fez uma consulta informal ao órgão, por telefone. Em relação ao processo de licitação das obras e do ponto de vista legal dessa consulta, como você avalia esse fato?

Eu posso até destacar que a Fundação Cultural Palmares é mais competente para participar diretamente, mas por prudência e por uma gestão administrativa responsável, o Incra deve ser informado [pelo DNIT] para apontar algum tipo de interesse ou empecilho no empreendimento. E essa informação deve ser dada de forma legal, nos termos da lei do processo administrativo federal. Uma ligação telefônica não condiz com o que está previsto na lei do processo administrativo federal. Você tem que fazer um ofício, por escrito, pedindo informações para o Incra.

O DNIT iniciou as obras da duplicação dentro de território quilombola sem antes ter conseguido da Fundação Cultural Palmares (FCP) o documento obrigatório de manifestação favorável da FCP ao empreendimento. Quais as consequências legais para o DNIT por ter agido de maneira irregular?

Depende dos campos sobre os quais vamos falar. No campo administrativo, a própria SEMA pode embargar a obra, para que ela não tenha continuidade enquanto não se resolver essa questão. No campo judicial, por meio de ação popular – que é uma ação específica que qualquer cidadão pode usar para defender a moralidade e o interesse públicos – você pode, além de embargar a obra, pedir indenizações para as comunidades. Ainda no âmbito judicial, através dos órgãos próprios para a defesa do interesse coletivo, o Ministério Público e a Defensoria Pública podem entrar com ações civis públicas pleiteando a interrupção da obra e indenizações. Você tem uma série de instrumentos para que se pare a obra.

A SEMA disse que realizou uma ação de fiscalização na comunidade Santa Rosa dos Pretos, mas que não apurou nenhuma irregularidade. A reportagem, porém, identificou naquele quilombo a marcação de árvores para serem derrubadas e a marcação do asfalto com números referentes às obras de duplicação. Além disso, em outro quilombo do mesmo território, árvores foram derrubadas. Qual a responsabilidade da SEMA nas infrações cometidas pelo DNIT?

Em relação aos danos ambientais, todos respondem de forma solidária. O DNIT tem uma responsabilidade na execução, e a SEMA tem uma responsabilidade de vigilância. Eles estão do mesmo lado da moeda. Se ocorre o dano de forma indevida, os dois podem ser responsabilizados – a SEMA, por ser uma secretaria, não possui personalidade jurídica própria, então quem responde é o próprio estado do Maranhão. Caso a via administrativa não dê solução para esta violação, você pode usar o meio judicial, inclusive de maneira preventiva. Por exemplo, se já existem as marcações no asfalto, você tem todo o indício de que vai ocorrer a duplicação. Então você pode pleitear uma medida jurisdicional pedindo que, caso o DNIT não cumpra as condicionantes, caso não seja feita da forma devida, que ele se abstenha de realizar qualquer tipo de andamento da obra. No caso de violações comprovadas, podem ser pleiteadas indenizações.

No Estudo de Impacto Ambiental (EIA), o DNIT afirma que haverá desapropriação de 345 casas do território Santa Rosa dos Pretos. Depois, numa entrevista ao jornal, ele “corrige” e substitui o termo desapropriação por “desocupação da faixa de domínio”. Questionado sobre como se daria essa desocupação, o DNIT respondeu: “a desocupação se dará se algum imóvel construído na faixa de domínio do DNIT for atingido. O DNIT está adaptando o projeto para evitar ao máximo que casas sejam atingidas. Caso seja necessário a demolição de algum imóvel, este será indenizado por meio de mutirão judicial de conciliação, na qual um juiz da justiça federal celebrará acordo entre o DNIT e o proprietário do imóvel. Os imóveis só serão demolidos após o pagamento da devida indenização. Tão logo seja identificado os imóveis a serem atingidos, o DNIT se reunirá com as comunidades.” Do ponto de vista legal, como você avalia essa substituição de desapropriação por desocupação?   

Quando você tem uma rodovia, você tem a faixa de domínio, que continua pertencendo à unidade federativa proprietária da rodovia, que no caso é o Estado do Maranhão. Nessa faixa de domínio, a propriedade pertence ao estado do Maranhão, e bens públicos não estão sujeitos a usucapião, ou seja, a pessoa pode ocupar, mas nunca vai ser proprietária. Por isso ele não fala em desapropriação, porque para desapropriar você tem que ter, no mínimo, algum direito real [à propriedade, à habitação, ao usucapião etc], e nenhum desses direitos reais podem se manifestar num bem público. Quando você retira alguém da faixa de domínio, você tem que reassentar essas pessoas em um lugar seguro, é uma questão de direito social de habitação. Você não pode simplesmente retirar uma pessoa que está há 100, 200 anos morando num lugar e relegá-la a qualquer canto. Mas se a ocupação é na faixa de domínio, é mais difícil conseguir qualquer coisa na Justiça, porque é uma faixa que foi prevista para que não tenha nenhum tipo de ocupação, só servidão para postes de energia etc. A evasividade do DNIT na afirmação de que a indenização será decidida pela Justiça, é porque ele não quer afirmar para a comunidade que eles não serão indenizados de forma alguma.

Então além de, provavelmente, os quilombolas não serem indenizados nas obras de duplicação, eles ainda terão suas terras apropriadas pelo Estado por meio do DNIT?

Quando você amplia a rodovia, a faixa de domínio se expande junto, porque ela é uma determinação legal, ela sempre tem que existir. Então se você expande em 30 cm, a faixa de domínio se desloca 30 cm, ela não pode diminuir. O que pode acontecer é que, antes da expansão da rodovia, a casa esteja fora da faixa de domínio, mas no momento da sua expansão, com o deslocamento dessa faixa mais para dentro, o DNIT passe a considerar que a casa já estava dentro da faixa de domínio [apropriando-se, assim, de uma área ainda maior de terras quilombolas]. No âmbito jurídico é difícil discutir a não desapropriação, porque o ente público tem o poder de império para desapropriar por interesse público [nota da reportagem: ato de império é aquele que a administração pública impõe aos administrados de forma coercitiva, como a desapropriação]. Mas no âmbito político você pode ter uma discussão mais ampla.

Nesse âmbito político pode se discutir quem é o verdadeiro dono das terras, se os quilombolas que são herdeiros das mesmas desde o século XIX ou se o governo federal, que abriu a estrada no início de 1940?

A discussão em relação a quem é o dono já está clara, tanto para o poder público quanto para a comunidade: a comunidade é, de fato, a dona da terra. O que se tem que fazer no âmbito político é discutir os impactos desse empreendimento e os benefícios que ele trará. Na época em que foi instalada essa rodovia, a democracia – que ainda hoje engatinha no Brasil – era ainda mais rudimentar. A rodovia foi passada sem que houvesse uma discussão sobre onde ela deveria ter sido feita para se gerar menos impacto. Como a construção da rodovia já tem esse vício em sua origem, o que resta ao poder público é ampliar a discussão. Quando não há discussão nem participação democrática, as comunidades quilombolas deixam de ser protagonistas no seu território. No caso de Santa Rosa é uma questão mais delicada porque vai haver desapropriação de casas. É preciso saber se é necessário haver a desapropriação dessas casas, se não há outro local para passar a estrada. É uma discussão que tem que se aprofundar.

Fui informada de que o DNIT marcou uma reunião para o dia 17/1 com algumas comunidades quilombolas de Itapecuru-Mirim. Do ponto de vista legal, como as comunidades podem se colocar diante de situações de violações e coerção cometidas pelos órgãos públicos?

Num primeiro momento, elas devem voltar a se dirigir às entidades máximas que podem atuar judicialmente na defesa delas, que são o Ministério Público Federal e Estadual, e a Defensoria Pública. Deve haver uma audiência pública ampliada a título de esclarecimento do cronograma das obras, do que vai ser feito, do que deve ser feito, de quem vai ser desapropriado, quem não vai, questões de transparência e publicidade. No momento em que isso for feito, as entidades podem se programar. Porque às vezes, essas reuniões [como a marcada pelo DNIT para o dia 17] acontecem de forma muito rápida. Eles vão na comunidade e dizem ‘amanhã reúnam a comunidade toda aqui para conversar’. Às vezes não dá tempo de as entidades que assessoram as comunidades no aspecto técnico se fazerem presentes, e a comunidade fica sem aquela informação técnica. Se você não é da área de alguma ciência específica, quando você escuta uma informação você não compreende. Eu, que sou da área do Direito, se vou pra uma reunião como essa despreparado e ouço algo da área de engenharia, eu fico sem entender, logo, não saberei combater aquilo. Então eu preciso saber a pauta com antecedência pra me preparar. Se a comunidade não sabe a pauta e não sabe o que vai ser falado… muitas vezes esses gestores de obra mentem, dizem que é uma coisa, e quando vão fazer o relatório dizem que debateram um monte de outras coisas que não foram nem faladas. Acho, então, que tem que ter uma audiência ampliada com as comunidades, entidades e a sociedade civil interessada em participar e questionar. Isso é um primeiro momento. Ao mesmo tempo, esses mesmos órgãos que apoiam as comunidades podem entrar na via judicial para pleitear os danos, porque a ausência do cumprimento das condicionantes já causou um dano, e as comunidades já devem ser indenizadas. E é preciso haver a mobilização política. Se não tiver mobilização política, o DNIT passa por cima mesmo, o órgão responsável pela fiscalização concorda e fica tudo por isso mesmo.

Desmatamento realizado para obra de duplicação da BR 135 no município de Itapecuru-Mirim. Foto: Andressa Zumpano

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