STJ mantém terra indígena Buriti, onde foi morto Oziel Terena, anulada por marco temporal

Terena manifestaram-se contra decisão do tribunal, que ainda pode ser revertida no STF

Por Tiago Miotto, Cimi

Em 2013, Oziel Gabriel Terena caiu baleado durante uma desastrosa reintegração de posse na Terra Indígena (TI) Buriti, no Mato Grosso do Sul. Desde então, além do trauma de um parente assassinado e muitos outros feridos na truculenta ação das polícias Federal e Militar, os Terena vêm acumulando sucessivas desilusões com o Estado brasileiro, seja pela morosidade na demarcação da área, seja pelo fato dela ter sido anulada pela Justiça com base no marco temporal.

Na semana passada, dia 5, os Terena realizaram uma manifestação na TI Buriti, protestando contra uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no processo que anulou a demarcação da área. Na decisão de 27 de fevereiro, o STJ negou à União a admissibilidade de um recurso, e o processo deve agora seguir ao Supremo Tribunal Federal (STF).

Comemorada nos meios de comunicação do Mato Grosso do Sul pelos ruralistas, a decisão não é definitiva e nem tratou sobre o mérito – ou seja, não chegou a discutir diretamente a validade ou não da demarcação.

“É uma morte para nós. Mostramos que somos do diálogo, de tentar resolver na Justiça, mas infelizmente, eles não estão nos ouvindo, não querem compreender que temos direito à terra tradicional”, afirma Eder Alcântara Terena, liderança indígena e vereador em Sidrolândia (MS), que junto com o município de Dois Irmãos do Buriti abrange o perímetro da terra indígena atualmente anulada.

Cerca de mil indígenas participaram da manifestação na TI Buriti, que uniu as doze aldeias Terena em defesa da demarcação de sua terra tradicional.

“Após essa decisão, se houver alguma medida de reintegração de posse naquela região, as comunidades vão avançar sobre as área ainda não retomadas. A gente está tentando discutir para que isso não aconteça, mas aí cabe muito da atuação do governo e dos tribunais, porque a comunidade está decidida”, afirma Eder Terena.

“Tudo que foi pedido pela Justiça brasileira, a terra indígena Buriti fez. Nós obedecemos, mas os ruralistas continuaram a inflamar e a dizer que não é terra tradicional. O impasse é do lado deles. Nós tentamos resolver tudo dentro da legalidade e, principalmente, da tradicionalidade, porque é a nossa vida, é a nossa cultura” – Eder Alcântara Terena

Depois da decisão do STJ, manifestação Terena na TI Buriti reuniu cerca de mil indígenas. Foto: Povo Terena

Mesas sem diálogo

Depois da morte de Oziel, o caso ganhou repercussão e Buriti foi uma das demarcações tratadas por meio das mesas de diálogo mediadas pelo então ministro da Justiça do governo Dilma Rousseff, Eduardo Cardozo, e apresentadas aos indígenas como alternativas para acelerar os procedimentos administrativos.

A ideia era garantir uma trégua até que a situação se solucionasse pela via administrativa: os indígenas não fariam novas retomadas e os fazendeiros, por sua vez, abririam mão da judicialização do processo.

Os Terena, apesar das décadas de luta e espera pelo Estado, cumpriram o acordo; a recente decisão do STJ mostra que o mesmo não valeu para os ruralistas.

“Quando foi feito o acordo faltavam retomar quatro fazendas, e aí parou. Até hoje, elas estão ocupadas pelos ditos proprietários das terras”, relembra Eder Alcântara.

Em 2014, após o acerto firmado com os ruralistas, o Ministério da Justiça apresentou uma proposta de indenização para as 30 propriedades incidentes sobre a TI Buriti: R$ 78,5 milhões. Indo além do que determina a Constituição, que prevê indenização apenas de benfeitorias, o valor das indenizações incluía também o valor da “terra nua” avaliada em valor de mercado.

Para os ruralistas, não foi suficiente. Logo depois apresentaram sua contraproposta: R$ 130 milhões.

“O governo aceitou pagar o valor inicial e discutir o resto na Justiça, e aí eles se enrolaram, um proprietário aceitava, o outro não, e não se resolveu mais essa questão, e nem o governo que entrou teve o interesse em discutir isso”, conta Eder.

Indígenas das doze aldeias da TI Buriti participaram da manifestação em defesa da demarcação do território. Foto: povo Terena

Alvo do marco temporal

Na decisão do final de fevereiro, a 1ª Turma do STJ negou à União a admissibilidade de um recurso no processo que pretende anular a demarcação da TI Buriti e tramita há quase 20 anos na Justiça. O recurso tentava rever uma decisão anterior do Tribunal Regional Federal (TRF) da 3ª Região.

Essa decisão, de março de 2015, manteve a anulação da demarcação, obtida pelos ruralistas na primeira instância, e incluiu argumentos com base na tese do marco temporal, defendida pelos ruralistas e usada para relativizar os direitos territoriais indígenas.

Recentemente rechaçada pelo STF no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3239, que questionava a titulação de terras quilombolas, a tese defende que só seriam passíveis de demarcação as terras que estivessem sob a posse dos indígenas em 5 de outubro de 1988.

“Como nós estaríamos na terra em 1988, se nós fomos retirados dela? Nós sempre brigamos por ela, em 1988 e antes nós estávamos brigando, mas havíamos sido expulsos. Não existe marco temporal na Constituição e o próprio Supremo descartou essa questão” – Prof. Alberto Terena

Ironicamente, o próprio laudo apresentado pelos fazendeiros, que embasou a decisão do TRF-3 de anular a demarcação da TI Buriti e que acabou referendada pelo STJ, demonstra que os Terena mantiveram o vínculo com toda a área, mesmo depois que foram expulsos, antes e depois de 1988.

“A ocupação da área objeto da perícia por proprietários particulares já dura várias décadas. Nesse período, muitos Terena de Buriti trabalharam para os fazendeiros ou realizavam expedições clandestinas de caça, pesca e coleta”, afirma o laudo que embasou a decisão.

O que eram “expedições clandestinas” e trabalho de peões nas fazendas da Buriti para os desembargadores do TRF-3 era, para os Terena, a manutenção de um vínculo originário com seu território ancestral.

Embora só quatro das 30 propriedades incidentes sobre a terra indígena não estejam sob posse Terena, a decisão ainda se baseia na afirmativa de que “atualmente a área está ocupada apenas pelos proprietários rurais, inexistindo ocupação simultânea com os indígenas”.

“Ficamos nos perguntando como acontecem essas decisões, se tudo comprova que as terras são indígenas”, questiona Alberto Terena. “Nós não chegamos aqui, nós estávamos aqui, nosso direito é originário. Se o governo não garantir aquilo que é nosso, vamos persistir e retomar”.

Processo deve seguir ao STF

Além do recurso negado pelo STJ, um Recurso Extraordinário em nome da União, da Funai e do MPF ainda precisa ser analisado pelo STF.

“Cabe, por último, ao STF determinar se a terra é ou não indígena. O mérito é pura e exclusivamente sobre a tese do marco temporal e o STF tem entendido em julgados recentes, como nas ACOs 362 e 366 e na ADI 3239, que o marco temporal não tem previsão legal e muito menos pode ser aplicado para negar direito territorial aos índios”, afirma Rafael Modesto, assessor jurídico do Cimi.

Há grande possibilidade do recurso ao STF ser admitido, explica Rafael, já que a Corte tem consolidado posições favoráveis aos direitos originários dos povos indígenas e contra a tese do marco temporal – que vem afetando muitos outros povos em decisões de primeira e segunda instância.

Enquanto isso, os Terena seguem esperando por justiça, mas afirmam que não recuarão e estão prontos e dispostos a resistir.

“A manifestação mostrou que todas as doze aldeias do Buriti estão unidas para um novo enfrentamento caso haja a reintegração de posse”, afirma Eder Terena. “Em todas as retomadas no MS, as lideranças estão unidas. Onde acontecer uma reintegração de posse, vão se unir todas as comunidades. Aí pode haver uma guerra civil, índio vai defender seu território com sangue. Nós estamos unidos”.

NO OLHO DO FURACÃO

Nos últimos anos, a TI Buriti esteve no centro das disputas entre povos indígenas e ruralistas no Mato Grosso do Sul. Os conflitos chegaram ao ápice em maio de 2013, com o assassinato de Oziel Terena durante a reintegração na fazenda Buriti, uma das que foram retomadas pelos Terena, frente à demora do Estado em fazer a demarcação da terra andar.

Em 2013, já iam três anos desde a publicação da Portaria Declaratória reconhecendo a tradicionalidade da área e doze desde o relatório de identificação da Fundação Nacional do Índio (Funai).

“Houve uma marca muito grande para nós, porque ali caiu um jovem Terena e muitos outros ficaram feridos. É a marca de um Estado que não quer reconhecer o direito territorial de um povo, mas esse povo tem mostrado sua determinação em resistir” – Professor Alberto Terena

Após outros três anos de investigação, o MPF concluiu que o tiro que matou o indígena durante a violenta reintegração de posse veio da Polícia Federal (PF). O MPF também processou a delegada Juliana Resende Silva de Lima, responsável pelo parecer que levou ao arquivamento de uma sindicância da PF para apurar possíveis irregularidades durante a operação.

A delegada é esposa do também delegado Eduardo Jaworski de Lima, um dos comandantes da desastrosa operação de reintegração de posse. O coordenador da PF na operação, delegado Alcídio de Souza Araújo, foi prolífico na apresentação de acusações sem provas durante a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) contra o Cimi, criada e conduzida pelos deputados ruralistas da Assembleia Legislativa do MS.

Na tentativa de reintegração de posse anterior à que resultou no assassinato de Oziel, o delegado Alcídio apreendeu sem nenhuma justificativa legal o equipamento do jornalista Ruy Sposati, do Cimi, que cobria a ação policial.

Por esse histórico de violações e de resistência, a TI Buriti foi escolhida, no ano passado, como palco para a 10ª Assembleia do Povo Terena – Hánaiti Ho’únevo Têrenoe.

“Essa luta nossa pela terra já faz muito tempo. Com a povoação do MS, o Estado acabou titulando terras que eles diziam que eram devolutas, mas que eram indígenas, e eles não procuraram saber de fato se essa terra tinha dono, e tinha – éramos nós”

STF JÁ NEGOU PEDIDO RURALISTA PARA ANULAR BURITI

A Terra Indígena Buriti possui 17,2 mil hectares, declarados como de ocupação tradicional indígena pelo Ministério da Justiça em 2010. Essa área inclui também uma reserva, demarcada em 1928 pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e homologada pelo governo federal em 1991, na qual os Terena foram confinados ao longo do século XX.

Em 2001, o estudo antropológico elaborado pela Fundação Nacional do Índio (Funai) identificou que a delimitação da reserva havia deixado de fora cerca de 15 mil hectares de ocupação tradicional dos Terena do Buriti. A revisão, corrigindo um erro histórico do Estado brasileiro, foi divulgada pelos ruralistas como uma “ampliação” da terra indígena.

“Essa luta nossa pela terra já faz muito tempo, os nossos avós e os que passaram já vinham reivindicando essa demarcação há anos. A demarcação das nossas terras nunca existiu, ela havia sido reservada. Com a povoação do MS, o Estado acabou titulando terras que eles diziam que eram devolutas, mas que eram terras indígenas, e eles não procuraram saber de fato se essa terra tinha dono, e tinha – éramos nós”, explica Alberto Terena.

Em 2014, a Primeira Turma do STF negou provimento ao Mandado de Segurança (MS) 31240, movido pelo Sindicato Rural de Sidrolândia (MS), que pretendia impedir a homologação da TI Buriti. A justificativa do sindicato – de que a demarcação seria uma ampliação da reserva Buriti, algo vedado após a decisão do STF sobre Raposa Serra do Sol – foi afastada pelo relator, o ministro Luiz Fux.

“A motivação da ampliação de uma área indígena já demarcada pode ser diversa e depende de um conjunto probatório para comprovar sua real necessidade, análise que é incabível no âmbito do mandado de segurança”, avaliou o ministro, ressaltando que a decisão de Raposa não se aplica a outras demarcações, em voto seguido de forma unânime por toda a turma.

Imagem destacada: Depois da decisão do STJ, manifestação Terena na TI Buriti reuniu cerca de mil indígenas. Foto: Povo Terena

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

2 × quatro =