Carta Denúncia – Inundações de Direitos às margens do Rio Madeira

Desde 2006 nossas vidas às margens do Rio Madeira começaram a sofrer ameaças pelo anúncio do processo de licenciamento para a construção das duas hidrelétricas. Nós, indígenas, ribeirinhos, pescadores, extrativistas, agricultores familiares, moradores de núcleos urbanos e cidades não fomos ouvidos e escutados, porém fomos enganados.

O tormento começou com aliciamentos das empresas para que as populações das margens do Madeira fossem favoráveis à construção da Hidrelétrica de Santo Antônio, praticamente em cima da cidade de Porto Velho, iniciada a construção em 2008.

Houve muita resistência do outro lado do rio, margem esquerda do rio Madeira, nas proximidades do lugar onde ficava a cachoeira de Santo Antônio e localizava-se as comunidades tradicionais de onde foram expulsas para que fosse construída esta hidrelétrica. Posteriormente sofreram pressão com a liberação da água acumulada também pela Hidrelétrica de Jirau, iniciada a construção em 2010, o que provocou a destruição do bairro Triângulo da cidade de Porto Velho.

Em 2014 com o rio barrado, sem poder correr livre, transbordou e inundou povos e comunidades em toda sua bacia hidrográfica. Como o rio não tem fronteira, a inundação afetou drasticamente não só o Estado de Rondônia, mas também o Acre e o Amazonas, transpondo também a fronteira Brasil/Bolívia. Foram perdas que ficaram marcadas na vida das pessoas. Desde então, tudo mudou, o desbarrancamento de vidas acelerou. A temporalidade das águas foram alteradas. Não dá mais para prever o tempo certo para plantar e para colher. Não tem mais como saber pelos sinais da natureza se a cheia vai ser grande ou pequena, mesmo que o pássaro que anuncia com seu canto que a água vai baixar, porque os homens que controlam as usinas à distância, vão lá e abrem as comportas das hidrelétricas e mandam mais água.

Segundo os mais velhos, era de quatro em quatro ano que acontecia uma grande cheia, mas essa grande cheia não chegava no nível dessas que estão acontecendo após 2014. Mesmo quando não alcança o nível de 2014, a duração por mais de dois meses afeta o tempo de plantar e colher.

Em 2014 não houve plantação de melancia e com isso a festa da Melancia não aconteceu na comunidade de Nazaré, distrito de Porto Velho, a seis horas de viagem de barco de linha. Até agora (2019) ainda não se recuperou a plantação da melancia e outras culturas, gerando desânimo em muitas famílias que preferem investir esforços no garimpo familiar no rio Madeira. Até mesmo na terra firme, parte das terras mais altas é preciso correr para desmanchar as roças e salvar a produção da farinha, como está acontecendo agora em 2019.

No mês de fevereiro de 2019 a cheia já começou a preocupar e no mês de março superou o nível do mês de abril em 2018.  De acordo com dados da própria defesa civil apresentados no https://globoplay.globo.com cerca de 820 famílias que vivem no espaço urbano são afetadas pela cheia, onde o nível do rio chegou na marca dos 13 metros e 80 centímetros, perto do estado de alerta que se dá ao alcançar os 14 metros. O nível das águas vem oscilando, tem dia que fica estagnado ou abaixa centímetros, mas logo quando as comportas das hidrelétricas são abertas sobe novamente.

São muitos os direitos humanos violados. Só na sede do distrito de Nazaré são mais de 500 pessoas afetadas. Os próprios moradores entre si se ajudam na construção de marombas ou na retiradas dos pertences de suas casas para levar para a terra firme e guardar onde for possível; em casas de parentes, na escola Municipal, e em barracas da defesa civil, que foram usadas em 2014 e montadas novamente esse ano, sem a devida higienização. No dia 08 de Março os equipamentos e materiais do posto de saúde foram retirados, porque a água estava adentrando no mesmo. Um ponto de atendimento foi montado para emergências numa sala da escola municipal da comunidade. Todos os dias chegam pessoas vítimas de picadas de cobra, mordida de jacaré ou outros acidentes de trabalho. Além das pessoas os cachorros também são vítimas das picadas de cobras e dos jacarés. O suporte dado pela defesa civil é limitado. A voadeira, meio de transporte fluvial para transportar os pacientes que o posto de saúde possui é precário.

Na terceira semana de alagação ainda não estavam distribuindo água mineral e cestas básicas para as famílias, impossibilitadas de prover seu próprio alimento com os roçados inundados. Somente no dia 11 de março depois de faltar pouco para 100 por cento das casas da várzea serem desocupadas foi que começaram a distribuir as cestas básicas e as águas minerais, mas as famílias da terra firme que ficam ilhadas, correndo para salvar suas roças e com a escassez no lago, não receberam cesta básica por não serem considerados pelo Estado como afetados e consequentemente, fora da situação de calamidade. De modo geral, a ação governamental deixa a desejar. Até hoje muitas famílias não foram indenizadas pelas perdas ainda de 2014. Enquanto isso, as pessoas vão se virando sozinhas ou na solidariedade dos vizinhos.

O que se espera é que as pessoas vestidas de alguma autoridades pública, cumpram seu papel na defesa dos direitos e interesses de nossas comunidades, principalmente ouvindo e escutando as comunidades.

O que está por vir não sabemos ao certo, mas ainda tem muita água para ser liberada pelas hidrelétricas. O que sabemos é que nosso destino parece estar nas mãos das empresas, já que o poder público está de costas para os direitos dos Povos e Comunidades da beira do rio Madeira. A resistência e a persistência na defesa do direito de ir e vir, de viver onde se escolheu, continua motivando e animando cada família.

Porto Velho RO, 13 de março de 2019.

INSTITUTO MADEIRA VIVO – IMV

MALOCA MURA

Maloca Querida

Coletivo Mura.

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Enviada para Combate Racismo Ambiental por Elen Pessôa

Enchente no Madeira, março de 2019. Foto: Márcia Mura

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