Para o pesquisador e roteirista, é necessário que mudemos os termos do debate em relação ao bioma, afinal, não basta preservar os conhecimentos dos povos nativos, é preciso que, acima de tudo, os escutemos
Por Ricardo Machado, no IHU
“Nunca a Amazônia foi tão saqueada, sequestrada, mutilada e devastada como está sendo nesse instante; ao mesmo tempo, nunca vimos tanta gente gritando aos quatro cantos do planeta pedindo pela proteção da Amazônia. Parece haver um descompasso entre as palavras e as coisas.” É com essa contundência e descrição de uma realidade trágica que Bruno Malheiro, pesquisador e roteirista, descreve e define a atual situação do bioma mais biodiverso do mundo. Nesta entrevista por e-mail, Malheiro traça um panorama sobre as condições sociais e globais que nos levaram a este estado de coisas.
“O capitalismo é um modo de produção ancorado em uma maneira de pensar e representar o mundo produzida a partir de experiências absolutamente distantes de nós, amazônidas. É um modo de agir por uma racionalidade refratária ao sistema vivo que nos abriga, a terra, ou seja, é um modo de generalizar a morte e confinar a vida”, explica o entrevistado.
Por outro lado, propõe todo um outro circuito de relações sociais, políticas e cognitivas que partam do território e das cosmologias dessa região. “Portanto, pensar a Amazônia a partir de seus povos significa, também, mudar o centro de referência de onde se pensa o Brasil e o mundo; não estamos falando de uma região qualquer, estamos falando de um bioma cuja diversidade biológica espelha sua diversidade étnica e linguística, de uma região sem a qual o já desequilibrado metabolismo da vida na terra já estaria em colapso completo”, sublinha.
Toda essa riqueza se oferece também como adubo à imaginação política, inclusive da esquerda, não raro demasiadamente focada em uma visão eurocêntrica do mundo e distante dos problemas concretos desses povos. “Se boa parte de nossa esquerda anda gastando mais energia em combater o inimigo esquecendo de um projeto próprio, os povos amazônidas nos oferecem outras formas de usar, organizar, sentir e pensar o mundo radicalmente distintas da racionalidade necropolítica que nos governa”, propõe.
Bruno Cezar Pereira Malheiro é professor da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará – Campus de Marabá. Possui graduação em Geografia pela Universidade Federal do Pará, é mestre em Planejamento do Desenvolvimento pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA – UFPA) e Doutor em Geografia pela Universidade Federal Fluminense. É coordenador do Laboratório de Estudos em Território, Interculturalidade e R-Existência na Amazônia (LaTierra).
Tem experiência de pesquisa nos seguintes temas: Geografia da Amazônia; Geo-história da Amazônia; Conflitos territoriais na Amazônia; Geografia dos Grandes Projetos de desenvolvimento; Discurso e produção do espaço; Questão agrária na Amazônia; Educação do campo; e Geografia e Pensamento decolonial.
É autor de vários artigos em revistas especializadas e um dos autores do livro Horizontes Amazônicos: para repensar o Brasil e o mundo (Rosa Luxemburgo e Expressão Popular, 2021). É roteirista do filme “Pisar Suavemente na Terra”.
Confira a entrevista.
IHU – Há décadas a Amazônia é tema de debate global. No entanto, por que falar da Amazônia hoje implica também dar voz a seus habitantes em sua rica (bio)diversidade?
Bruno Malheiro – A questão de pensar a Amazônia a partir de seus povos não é necessariamente atual. Embora ela nos remeta a uma necessidade presente, esta existe justamente pelo fato de esquecermos quem somos, de onde viemos e, principalmente, onde nos perdemos no caminho. Somos os povos da mercadoria, como assim nos define David Kopenawa [1]. Como povos da mercadoria, somos produto de uma amnésia: uma amnésia biocultural. Esquecemos que a floresta amazônica, tal como a conhecemos, só se formou depois da última glaciação, entre 13 e 18 mil anos atrás. Antes disso, ensina Aziz Ab’Saber [2], ela estava reduzida a alguns refúgios, e só com o aumento da pluviosidade no planeta tornou-se o que conhecemos. Entretanto, existem povos nessa região do globo há pelo menos 19 mil anos na formação Chiribiquete na Colômbia; ou há, pelo menos, 11,2 mil anos no sítio de Serra Pintada no Pará; ou ainda, há pelo menos 8,6 mil anos na Serra dos Carajás, também no Pará, ou, se ainda restar dúvidas, há pelo menos 8,5 mil anos pelas bandas da Cachoeira de Santo Antônio em Rondônia…
Basta lermos com atenção o livro de Eduardo Góes Neves [3] para percebermos a complexidade de vida que somos nós antes da colonização. Mas percebam que a história que conhecemos esquece tudo isso. Somos formados pelo esquecimento. Não são apenas povos vivendo há milênios. São povos coevoluindo com naturezas há pelo menos 19 mil anos. Há uma relação direta entre diversidade étnica, cultural e linguística e a diversidade ecológica da Amazônia. Há florestas plantadas, inumeráveis plantas tornadas úteis ao consumo humano pelo manejo milenar dos povos amazônicos, há produção de solos de terra preta e diversos outros indícios que nos fazem dizer que a Amazônia é uma produção sociobiocultural dos seus povos, como já nos indicavam, antes de nós e por outros termos, William Balée, Darell Posey e muitos outros e outras. Quando, juntamente com autores como Vitor Toledo [4], qualificamos nossa amnésia de tudo isso como amnésia biocultural, é justamente para expressar o esquecimento dessas sabedorias milenares que nos legaram a Amazônia. É necessário, então, reencontrarmo-nos com essa memória ancestral; reconectarmo-nos a elas é reconectarmo-nos à vida, pois, como diria Ailton Krenak, “o futuro é ancestral”.
Mas para essa reconexão é preciso mudarmos os nossos centros de referência. Nesse sentido, não se trata de dar voz aos povos da floresta; quando assim nos referimos, o centro da relação continua sendo a gente, o povo da mercadoria. Os povos amazônicos não precisam de ninguém para falar, o problema é que, em alguns lugares, gritos se transformam em sussurros e em outros lugares sussurros se transformam em gritos. O problema é uma injustiça cognitiva que confere privilégio de fala a alguns e coloca à sombra os dizeres de muitos outros. O nosso conhecimento das coisas é produzido, em muito, a partir deste privilégio que alguns têm diante de outros, ou seja, nossos pontos de vista, visões de mundo, sempre carregam a influência de lugares que conseguiram falar para o país ou para o mundo, em detrimento de lugares cujas interpretações sempre se circunscreveram a eles próprios. Então, não se trata de dar voz, mas de ter a capacidade de ouvir.
Nunca a Amazônia foi tão saqueada, sequestrada, mutilada e devastada como está sendo nesse instante; ao mesmo tempo, nunca vimos tanta gente gritando aos quatro cantos do planeta pedindo pela proteção da Amazônia. Parece haver um descompasso entre as palavras e as coisas. Muita gente quer a proteção da Amazônia, mas precisamos lembrar que o verbo “proteger”, que tem origem no latim, é uma junção entre o prefixo Pro, que significa “à frente”, e Tegere, que quer dizer “cobrir ou tapar”. Proteger, portanto, é encobrir o que está à frente. Esse alerta etimológico indica que a ideia de proteção sempre projeta uma relação em que uma das partes, a mais fraca, precisa da outra, a mais forte, para continuar a existir. Os tons messiânicos das palavras ditas ainda conseguem santificar aqueles que, de longe, lutam pela “salvação” da região. Enfim, fala-se muito sobre a Amazônia, mas quase nunca com a Amazônia e os amazônidas. Por isso afirmamos que qualquer horizonte que desfaça as engrenagens de fogo, fumaça e sangue que hoje consomem a Amazônia não se constrói sem o protagonismo histórico dos povos que, por milênios, coevoluiram com essa região. Não dá mais para se contagiar com a vontade de proteção e produzir, ao mesmo tempo, esquecimento. Sabemos da importância da Amazônia e de sua sociobiodiversidade para o planeta inteiro, mas o passo seguinte é ouvir os e as responsáveis por ela ainda existir. Esses e essas responsáveis estão gritando há muitos séculos, mas só conseguiremos ouvi-los se mudarmos nossa forma de receber as mensagens, em vez de grudá-las em nossas grades cognitivas coloniais. É mais que necessário que nos abramos ao exercício de descolonização do que ouvir o que essas vozes nos indicam.
IHU – De que forma os circuitos econômicos das várzeas e terras firmes da Amazônia garantem autonomia alimentar aos diferentes povos habitantes da região e como isso tensiona os sistemas hegemônicos de mercado?
Bruno Malheiro – No livro Horizontes Amazônicos: para repensar o Brasil e o mundo (São Paulo: Editora Expressão Popular, 2021), que escrevi juntamente a Carlos Walter Porto-Gonçalves e Fernando Michelotti, apresentamos que, para os povos amazônicos, a floresta sempre foi um horizonte de liberdade. Não só a floresta, mas o conhecimento sobre ela e construído com ela pelos povos sempre foi a principal arma contra qualquer cativeiro e para a produção social da autonomia. Estamos falando de um ecossistema enriquecido milenarmente pelos saberes de muitos povos, capaz de uma produtividade primária absolutamente impressionante. Aquilo que a floresta oferece de vida em abundância, nenhuma monocultura pode oferecer. Como sempre nos lembra o professor Carlos Walter, todo sabor é, também, um saber e nesse sentido os sabores amazônicos nos oferecem saberes que nos ensinam que a construção da autonomia não se dá apenas como uma forma de produzir, mas a partir de uma maneira distinta de ver o mundo com e não contra a diversidade, com e não contra a comunidade.
Nos conhecimentos ancestrais não há um predomínio de uma espécie sobre a outra. Para a maioria dos povos amazônicos, tudo carrega uma humanidade, ou seja, a humanidade não se restringe aos humanos, como bem lembra Eduardo Viveiros de Castro [5] ao falar do perspectivismo ameríndio. Nossa arrogante norma culta talvez não compreenda exatamente essa forma de pensar, porque nossas línguas coloniais nos limitam. Se pensarmos em Tupi, talvez compreendamos. No Tupi, o tempo não é indicado por verbos, por ações, mas em sufixos agregados a substantivos. Assim, na língua em que o movimento é dado pelas coisas, a história carrega cheiro, sabor, visualidade, bem como os horizontes são concretos e expressivos, pois é o mundo das coisas que nos apresenta o significado do tempo. Uma árvore, um rio, uma montanha, portanto, ao passo que carregam as marcas de expressão do que foi, delineiam também os horizontes do vir a ser! Portanto, não se pode pensar os distintos sabores e saberes amazônicos sem essa forma de pensar o mundo que não restringe a humanidade aos humanos.
A partir dessas cosmologias, portanto, é o consórcio entre as espécies que produz força e diversidade aos sistemas produtivos. Um consórcio que dialoga com os distintos percursos do Sol pelo território em diferentes épocas do ano, que dialoga com o regime de chuvas e de enchentes e vazantes do rio, que dialoga com as fases da lua, que não pensa o solo apenas por uma fórmula química, mas que não há solo sem vegetação, chuvas, rio, manejo… Hoje a ciência já até reconhece esse jeito de pensar o mundo pela ideia dos Sistemas Agroflorestais, ou como um modo agroecológico de produzir, mas antes que essas palavras se reduzam a mais uma técnica, precisamos afirmar que o que confere dignidade histórica a elas são os saberes ancestrais desses povos.
Esses saberes presentes nos circuitos de várzeas e terras firmes na Amazônia, mas também em algumas periferias urbanas, são produtos de uma memória ancestral. Muitas vezes elogiamos os sabores amazônicos e sua culinária e esquecemos que comida é cultura; nesse caso, cultura milenar. E esses saberes ancestrais dialogam com um fato bastante objetivo: estamos falando da maior área do planeta de floresta tropical sob incidência do Sol. Nesse sentido, a reprodução da vida pela fotossíntese, enriquecida por distintas formas de manejo dos povos, produz um metabolismo em que a autoprodução de vida da e na floresta é central.
Quis referenciar bem essa lógica de produzir e autoproduzir vida até aqui para dizer que, antes desses circuitos, ancorados em saberes ancestrais, tensionarem e “r-existirem” às lógicas de mercado, pela sua lógica de produção com e não contra a diversidade e as comunidades, são eles que são tensionados pela mercantilização da vida em todas as suas esferas, formas e seres. Digo isso para posicionar historicamente essa questão e para demonstrar que escolhemos, como sociedade, desestabilizar esses circuitos da vida; escolhemos, como sociedade, transformar a Amazônia em nosso supermercado. Os povos estão “r-existindo” há séculos, e nós continuamos querendo transformar tudo em commodities ou colocar o superávit primário à frente da vida.
Outros caminhos para seguirmos estão postos se tensionarmos nossa amnésia biocultural e nos conectarmos a essas memórias ancestrais. Entretanto, continuamos escolhendo fraturar o metabolismo da vida, quando atravessamos e interrompemos seus ciclos fundamentais (por uma barragem, por uma estrada, por uma ferrovia…), quando ignoramos sua diversidade em nome de mais monocultivos (de soja, de milho, de dendê…), quando esquecemos sua floresta para produzir mais pasto e, até mesmo, quando os saberes que mantêm a vida são capturados por novíssimas indústrias de cosméticos e de química fina.
As nossas escolhas se pautam em uma racionalidade, pensada a partir de nossas línguas coloniais. Essa racionalidade, tão clara em nossa agricultura convencional do agronegócio, pensa, como alternativa à diversidade da vida, o veneno. Isso mesmo! Os agrotóxicos nada mais são que um modo de fazer viver uma espécie e deixar morrer todas as outras que atrapalham a espécie escolhida. A monocultura é um atentado à diversidade da vida e um modo de interromper fluxos vitais fundamentais. Mas foi ela que escolhemos como lógica hegemônica do que chamamos de desenvolvimento.
Os saberes ancestrais amazônicos, portanto, não apenas tensionam e “r-existem” a essas lógicas de mercado; eles nos indicam que uma saída ainda é possível!
Por isso, talvez esteja na hora em que nossos planejamentos, nossas pesquisas científicas, nossas agendas políticas partam, como sugere Emanuelle Coccia [6], de pontos de vida, não apenas de nossos pontos de vista.
IHU – Por que uma crítica ao capitalismo, hoje, passa necessariamente por uma crítica à colonialidade?
Bruno Malheiro – O capitalismo é um modo de produção ancorado em uma maneira de pensar e representar o mundo produzida a partir de experiências absolutamente distantes de nós, amazônidas. É um modo de agir por uma racionalidade refratária ao sistema vivo que nos abriga, a terra, ou seja, é um modo de generalizar a morte e confinar a vida. Por isso é, também, um modo de produzir esquecimento, um modo de produzir normalidades absurdas, um modo de produzir racismo e patriarcado como lógicas estruturais de organização social. Essa maneira de pensar nem sempre foi do mundo inteiro, e, para se generalizar, precisou destruir comunidades, etnias, grupos sociais, cosmologias, modos de sentir e pensar a terra distintos. Não dá para pensar o capitalismo sem dizer que sua arrogante racionalidade se ancora em uma experiência eurocêntrica de ver o mundo, experiência essa que vai ganhando novos contornos ao longo da história, a partir de outros centros que inventa para si. Portanto, o capitalismo também é um modo de produção de universalidades, ou seja, torna universal saberes e fazeres da destruição e provincializa saberes e fazeres da vida.
Por que os planejadores que pensaram seus projetos de desenvolvimento para a Amazônia se inspiraram na economia regional francesa, em vez de se inspirar nos saberes ancestrais dos Kayapó ou dos Yanomami? Por que resolvemos nos formar por conhecimentos produzidos majoritariamente em quatro países (França, Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos) a partir de suas línguas coloniais, e esquecemos completamente dos conhecimentos e línguas milenares dos povos indígenas de todas as Américas e dos outros continentes? Por que é exótico ter uma cestaria Guarani, ou um colar Apurinã e é absolutamente normal guardamos tudo em potes de plástico e usarmos bijuterias produzidas em condições aviltantes na China? Escolhemos o que tornamos universal e o que queremos que continue local. Por isso, não nos basta questionar o capitalismo se continuarmos pensando o mundo com o capitalismo. Marx nos oferece uma perfeita crítica da economia política capitalista, mas infelizmente as alternativas à essa economia política não vêm apenas deste autor e de um processo de negação a ela; vêm muito mais de outros modos de sentir e pensar o mundo tornados invisíveis por essa economia política hegemônica. É preciso, antes de tudo, produzir uma crítica a esse modo de produzir universalidades que é absurdo, e dizer, com todas as letras, que, por exemplo, o conhecimento dos xamãs Yanomami é mais necessário de ser universalizado que alguns conhecimentos pragmáticos de algumas ciências “duras” que se alimentam da possibilidade de moer o mundo e matar paisagens inteiras.
A colonialidade, constitutiva do capitalismo, conseguiu transformar uma região produzida por um patrimônio milenar de conhecimentos indígenas, afro/amazônicos e camponeses, a Amazônia, em um espaço vazio, atrasado e menos moderno. É necessário, sim, produzir uma crítica ao modo de produção capitalista que, a partir daqueles que estão em seu caminho, melhor poderia ser definido como modo de destruição capitalista; mas se quisermos construir alguma alternativa ao que está posto, precisamos também criticar essa colonialidade que provincializa saberes que nos legaram a Amazônia. Ou restituímos esses saberes, fazeres, pensares ao centro do mundo ou o mundo tal como conhecemos pode não ser uma realidade nos próximos anos. Ailton Krenak, David Kopenawa e tantos outros e outras pensadores e pensadoras indígenas já estão alertando ao povo da mercadoria há algum tempo, mas a nossa colonialidade não tem nos permitido ouvir. O primeiro passo para uma crítica à colonialidade constitutiva do capitalismo é reconhecer que somos atravessados por essa maneira colonial de pensar o mundo e que, por mais coisas que tenhamos a falar, chegou a hora de ouvir.
IHU – Qual a importância de repensar a Amazônia a partir de seu próprio território em contraposição à perspectiva histórica da industrialização e dos ciclos econômicos comprometidos em transformar a biodiversidade em “recursos”?
Bruno Malheiro – A Amazônia precisa ser pensada por seus povos como justiça histórica àqueles que, em coevolução entre sociedades e naturezas, legaram-nos um bioma sem o qual não haveria equilíbrio metabólico do planeta. É justiça histórica e necessidade de sobrevivência de todos nós reconhecer isso. Mas precisamos ir além… É preciso ter a coragem de dizer que a experiência da industrialização no Brasil, que deu base a boa parte de nossas teorias críticas, é uma experiência restrita espacial e temporalmente, se considerarmos a longa duração do capitalismo no país. Pensar o Brasil a partir da locomotiva industrial de São Paulo, por exemplo, é um equívoco histórico provindo de uma ignorante arrogância geográfica. O centro da acumulação no país sempre foi o processo que um influente geógrafo, David Harvey, chamou de acumulação por espoliação, ou seja, os processos que, por violência, fraude, roubo e saque, transformam bens comuns em mercadoria, terras indígenas em garimpo, assentamentos de reforma agrária em pastagem, as nossas aposentadorias como direito em aposentadoria privada…
A ideia de que essas formas de acumulação violenta seriam apenas uma preparação ao capitalismo moderno e que iriam cessar só poderia vir de quem nunca enxergou a periferia desse movimento de acumulação. Aqui na Amazônia o capitalismo sempre foi uma guerra aos povos e a espoliação sempre foi a regra de acumulação, nunca cessou. Por isso, o autoritarismo aqui sempre foi a forma de expressão do Estado, seja em tempos de ditadura, seja em tempos de “democracia”. Maria da Conceição Tavares já havia nos advertido que precisaríamos deslocar a centralidade dos limites do progresso técnico e da industrialização para a superação do nosso subdesenvolvimento para começarmos a dar ênfase à reprodução de um certo tipo estrutural de dominação interna, reconhecendo um pacto de dominação social férreo entre os donos da terra, o Estado e os donos do dinheiro, para os quais a dinâmica de expansão do capitalismo é, sobretudo, a ocupação e o domínio privado do território.
Se as linhas de força do capitalismo brasileiro forem lidas deslocando o centro da análise da industrialização ao pacto férreo de poder oligárquico e patrimonial, também deslocamos o lugar de observação privilegiado, ou seja, fazemos um giro geoepistemológico para incluir, por exemplo, a experiência histórica do capitalismo na Amazônia como o centro analítico das interpretações de Brasil, tomando as fronteiras, e não as relações consolidadas dos centros mais dinâmicos, como as linhas interpretativas do conjunto da nossa economia política.
Saberes emancipatórios
Onde quero chegar com tudo isso? Quero falar aberta e claramente que não só a Amazônia precisa ser pensada a partir de seus povos, isso é restituição e justiça histórica, mas também o Brasil precisa ser pensado a partir da Amazônia, pois essa região não é apenas importante por condensar em sua história a violência colonial, que talvez melhor expresse nossos processos de acumulação, mas fundamentalmente porque essa região também carrega saberes, dizeres, sabores, cores, ritmos e pensares que nos apontam horizontes de sentido radicalmente distintos e emancipatórios. Saberes testados por milênios se oferecem aos nossos ouvidos; vamos continuar ignorando-os como fizeram os tantos projetos nacionais de desenvolvimento pensados ao longo da nossa história, que sempre tiveram a Amazônia como um apêndice agregado a temas considerados mais relevantes ou como um risco que precisava ser colonialmente domado e eliminado?
A jornalista Eliane Brum tem nos instigado a pensar a Amazônia como centro do mundo e é fazendo eco às suas preocupações que alertamos que precisamos reunir forças políticas para tornar a Amazônia o centro de um outro projeto nacional, que, de princípio, já precisaria ser plurinacional, pois foi em nome de uma nação no singular, de um “Brasil acima de todos” que tem um único “Deus acima de tudo”, que tantas nações indígenas foram massacradas. Mas é da “r-existência” a esse Brasil no singular que emergem, desde a Amazônia, outros horizontes de sentido para a construção de um Brasil mais plural.
Portanto, pensar a Amazônia a partir de seus povos significa, também, mudar o centro de referência de onde se pensa o Brasil e o mundo; não estamos falando de uma região qualquer, estamos falando de um bioma cuja diversidade biológica espelha sua diversidade étnica e linguística, de uma região sem a qual o já desequilibrado metabolismo da vida na terra estaria em colapso completo. Pensar a Amazônia, portanto, é repensar o Brasil e o mundo, como sugerimos junto a Carlos Walter Porto-Gonçalves e Fernando Michelotti em nosso livro Horizontes Amazônicos.
IHU – O que são “pluriversalidades”, em especial no contexto amazônico, e como esse conjunto de saberes nos oferece alternativas de vida diante da catástrofe climática?
Bruno Malheiro – Talvez eu já tenha antecipado, de alguma maneira, essa resposta anteriormente, mas vou me permitir voltar a alguns pontos para aprofundá-los e deixar mais claro o significado do termo “pluriversalidades”. Mencionei, em respostas anteriores, a necessidade de pensar o capitalismo também como modo de produção de universalidades. Penso ser essa reflexão fundamental para desnaturalizamos a ideia de universalidade e conferimos a ela um processo produtivo, o qual precisamos analisar para entendê-la. Aquilo que se tornou universal, portanto, tornou-se por algum motivo, por algum interesse, por relações de poder, por processos desiguais de circulação dos saberes. Nesse sentido, tornar universal é, também, provincializar e localizar.
Há uma geopolítica do conhecimento que não podemos esquecer, e ela nos explica que o lugar a partir do qual se fala interfere diretamente na capacidade de circulação daquilo que se diz. Hoje estou em Marabá, uma cidade do Pará, sou professor em uma universidade no interior da Amazônia e não me parece que eu, as minhas colegas e meus colegas, possuímos as mesmas condições de circulação daquilo que pesquisamos que pesquisadores que estão mais próximos aos centros de circulação do saber, definidos historicamente no Brasil. E isso porque falo de desigualdades regionais, mas muitas outras desigualdades e exclusões, até mais violentas que esta, interferem na circulação do que se diz, como as de raça, as de gênero, as de sexualidade… Há um enorme desequilíbrio entre diferentes lugares de enunciação que suprime a diversidade de vozes.
Somos formados, portanto, por visões de mundo de alguns privilegiados que puderam ser ouvidos e, assim, em nossa formação, não tivemos acesso à pluralidade de outras vozes que alargariam nossas maneiras de ver o mundo. Imaginem se tivéssemos sido formados por um modo de pensar a grandeza, não como tamanho, medida, como nos ensinou as ciências matemáticas, mas como ancestralidade, como fazem os povos Gavião aqui no sudeste do Pará. Imaginem se tivéssemos sido formados para entender o que chamamos de Terra não por uma figura circular azul distante de nós, mas como Hutukara, como fazem os Yanomami; talvez a entenderíamos como um sistema vivo, como um corpo/casa que é mãe e nos deixa nascer. Imagem se tivéssemos sido alfabetizados pela língua Añuu, dos povos Añuu do Lago de Maracaibo na Venezuela, na qual não existe a palavra “ser”, pois tudo é definido por um fazer e, assim, todos os fazeres são fundamentais, da abelha ao homem, sem hierarquia. Imaginem, ainda, se fossemos formados em uma língua em que o tempo não estivesse marcado no verbo e, portanto, não se referisse a ações humanas, mas que o tempo estivesse grudado a substantivos, como no Tupi, em que o tempo está em tudo no mundo; como será que pensaríamos a nossa relação com a natureza? Haveria, afinal, essa separação entre nós e o que denominamos natureza?
Esses saberes e muitos outros nos foram roubados pela colonização que, assim, também precisa ser chamada de colonialidade. Esse roubo colonial nos fez esquecer dos séculos de domínio Árabe sobre a Europa e das contribuições desses povos à ciência, à arquitetura. Esse roubo também nos fez esquecer os pensares desde a África, desde os povos indígenas, desde as mulheres…
Pluriversidades
Quando falamos em pluriversalidades estamos, juntamente a muitos autores e autoras antes de nós, reafirmando a importância da pluralidade epistêmica, da possibilidade de pluralizar o que é e o que se torna universal, de devolver à nossa compreensão de mundo várias compreensões de mundo furtadas de nós, de tirar a hierarquia entre diferentes epistemes para, então, restituir ao centro do debate os saberes comprometidos com a vida. Nesse movimento, os saberes ancestrais amazônicos são o fundamento de uma transformação cognitiva, que nos faça descolonizar o pensamento.
A catástrofe climática está aí ancorada em saberes e práticas, ou melhor, em uma racionalidade que normaliza o barramento de um rio por uma barragem como um acerto de engenharia, que normaliza o atravessamento de corpos-territórios indígenas por uma estrada de ferro como o acerto de construção de um “eixo de desenvolvimento”, que normaliza a destruição de uma montanha inteira por um projeto mineral como um acerto dos cálculos geológicos. Restituir ao centro do debate os saberes produzidos para e com a vida é conseguir desnaturalizar esses movimentos a partir daqueles que sempre “r-existiram” a eles, mas nunca tiveram suas vozes escutadas como vozes capazes de nos indicar outros caminhos a seguir.
IHU – Do que se trata, em linhas gerais, o livro Horizontes amazônicos: para repensar o Brasil e o mundo? Quem participa da publicação?
Bruno Malheiro – O livro, além de mim, é escrito por duas de minhas grandes referências intelectuais: o professor Carlos Walter Porto-Gonçalves, intelectual de longa contribuição à Geografia e Ecologia Política na América Latina, e o professor Fernando Michelotti, intelectual de destacada referência nos estudos sobre a questão agrária no Brasil e na Amazônia. A nossa cumplicidade foi construída e costurada por nossas relações a distintos movimentos sociais, entidades e organizações em defesa da vida. São três trajetórias de Amazônia distintas, mas complementares, que se encontraram em processos de luta concretos e com os povos. Eu digo que foram os povos em luta que permitiram que a gente se encontrasse, tanto que o primeiro texto que escrevemos juntos foi no calor de um evento de luta pela terra e território, que reunia movimentos sociais e organizações indígenas dos vários países da América Latina, que ocorreu em Marabá em 2018, logo após a vitória da ultradireita no Brasil. O texto referido, que se encontra na abertura do Caderno de Conflitos no Campo da CPT do ano de 2018, já apresentava questões que depois desdobramos no livro. É importante lembrar, também, que a materialização do livro ganha seus primeiros passos com o convite do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra ao professor Fernando Michelotti, após uma palestra de Fernando sobre a Amazônia na escola Nacional Florestan Fernandes. É depois desse convite que Michelotti articula o nosso encontro que culminaria no “Horizontes Amazônicos”.
A tarefa de escrever sobre a Amazônia de forma leve – para que o nosso texto comunicasse com os protagonistas das lutas sociais, sem perder a profundidade, contundência e a capacidade de indicar caminhos – atravessou a escrita coletiva do livro. Nesse sentido, gostaríamos, com o livro, de construir uma crítica densa, contextualizada, historicamente embasada sobre a guerra capitalista contra a vida na Amazônia, mas não queríamos parar aí e – pelo amplo diálogo que os três autores construíram ao longo de suas trajetórias com distintos povos em luta – também nos era importante recuperar o legado teórico e político dos povos amazônicos na indicação de caminhos reais e viáveis, na indicação de outros horizontes de sentido à vida no planeta.
A escuta foi a principal arma analítica e política do livro e, por isso, ele pretendeu restituir ao centro do debate sobre o mundo as perspectivas de mundo dos povos amazônicos, uma vez que seus conhecimentos são densos de outros horizontes mais justos, e indicam caminhos de vida mais dignos para todos nós. Por essa perspectiva geral, o livro faz um mergulho no presente para pensar o atual momento de ofensiva espoliadora contra a Amazônia e seus povos; recupera a longa duração do capitalismo nessa região por suas ruínas; interroga os atuais paradigmas de desenvolvimento postos à região e, ao fim, dialoga com a sabedoria dos diversos povos amazônicos, na tentativa de apontar ideias amazônicas para um diálogo com o mundo.
IHU – Na obra são apresentados quatro caminhos de análise e enfrentamento aos desafios da Amazônia: 1) crítica da economia política; 2) relações de poder e governo do território; 3) ecologia política crítica e 4) ontologia política. O senhor poderia falar um pouco de cada um deles?
Bruno Malheiro – O livro é escrito por diferentes mãos e por distintas trajetórias intelectuais. Isso não nos foi um problema, pelo contrário, tentamos construir uma convergência entre diferentes caminhos críticos na compreensão do capitalismo.
O primeiro deles é a crítica da economia política capitalista elaborada por Marx, que nos é ponto de partida. Essa crítica se revela na compreensão dos movimentos capitalistas na Amazônia como processos de expansão/invasão, ancoradas em lógicas de acumulação por espoliação, produzindo uma verdadeira guerra aos povos amazônicos. Entretanto, para ler essa guerra em toda sua complexidade e a partir das formas de exercício do poder, ou seja, pela sua engrenagem concreta e objetiva, ou ainda, para pensar essas estruturas de acumulação a partir de suas extremidades, ou seja, dos seus mecanismos de interdição nos corpos amazônidas, dialogamos, também, com Michel Foucault e outros autores que nos permitiram pensar a expansão capitalista na Amazônia também como formas de governo do território, como formas de exercício do poder que interditam, violam, supliciam, disciplinam, matam e deixam morrer.
Mas estamos falando da Amazônia, região que é produto da coevolução entre distintas sociedades e naturezas, um patrimônio sociobiocultural dos seus povos, espaço central para o equilíbrio metabólico do planeta, mas que está sendo atravessado por uma lógica econômica (ou necroeconômica) de espoliação que funciona matando, desmatando e apagando a memória com bala, fogo, sangue e veneno. Nesse sentido, a ecologia política foi o terceiro campo fundamental de diálogo, pois a questão ambiental, nesse particular, não se impõe apenas como uma questão entre as demais, mas como a questão central para enfrentarmos de forma crítica o atual contexto com alguma perspectiva emancipatória. A Ecologia Política, que se forjou na crítica aos padrões de produção, consumo e excreção da sociedade capitalista contemporânea, deu-nos pontes analíticas para repensar as relações entre a sociedade e natureza no capitalismo a partir da Amazônia.
Entretanto, uma das premissas do livro é não ficar apenas em uma crítica ao capitalismo, mas pensar em alternativas a ele a partir das memórias ancestrais dos povos amazônicos. Nesse sentido, para conseguirmos pensar de forma crítica ao capitalismo não reduzindo as alternativas a ele à sua racionalidade, precisamos encontrar outros modos de ser e de produzir vida em comunidade, outros modos de se relacionar com a terra, com a floresta e com os rios, ou seja, precisamos pensar com outras ontologias políticas ou cosmopolíticas que nos mostrem outros horizontes de sentido para a vida. Esse quarto caminho, chamado por alguns autores de ontologia política, levou-nos a tensionar nossas formas de pensar o mundo a partir de outras formas de sentipensar a terra. São esses, então, os quatro caminhos interpretativos críticos que colocamos em diálogo no livro. Mas é importante dizer que esses caminhos foram atravessados por muitos outros indicados pela sabedoria dos povos em movimento na Amazônia.
IHU – Qual a importância e como fazer o mundo dialogar com a Amazônia em um sentido horizontal, e não vertical como historicamente é a relação com seus interlocutores, sobretudo, do Norte Global?
Bruno Malheiro – A Amazônia sempre esteve no centro das preocupações do mundo ocidental, desde a colonização, quando cinco potências europeias (Inglaterra, Holanda, França, Espanha e Portugal) disputavam esse território, até hoje, quando parte do mundo percebe a importância dessa região para o metabolismo da vida no planeta. Entretanto, a preocupação com a Amazônia decisivamente não significa dialogar com ela. A questão é que, por séculos, construiu-se uma representação dessa região que silenciou aqueles que realmente precisariam ser escutados. Aquilo que hoje denominamos Amazônia não era Brasil até 1675, pois existiam dois estados autônomos, o estado do Brasil e o do Mato Grosso e Grão-Pará. Aqui na América Portuguesa setentrional, o regime de colonização, entre 1616 (quando os portugueses começam a construir estratégias de conquista) até aproximadamente 1750, foi absolutamente distinto do então praticado no Brasil.
Aqui o centro dos processos de produção do valor girava em torno do controle dos corpos e saberes indígenas e o ator colonial fundamental eram as ordens religiosas. Digo isso pois essa importância da igreja vai fazer emergir uma preocupação do Estado português, de que a Amazônia se configurava como um risco à soberania. A Amazônia como um risco, nesse sentido, representa não apenas a exterioridade irracional da natureza frente a uma humanidade moderna que está bem distante, mas também uma inferioridade de suas populações em relação à civilização, que é uma condição de quem chega, nunca de quem está aqui. Nesse sentido, a Amazônia, como risco, entra na política para estar fora, pois faz ver algo absolutamente distinto do que se estabelecerá como coroa, império ou república.
Relações horizontais
Esse esvaziamento simbólico abriu o caminho para as mais horrendas experiências capitalistas, das guerras justas, que autorizavam a morte de indígenas não convertidos no século XVII às expedições punitivas organizadas para o extermínio e expulsão dos indígenas que estivessem nos caminhos dos seringais, entre os séculos XIX e XX. Essas são as consequências concretas da vontade de esquecer a Amazônia. O Brasil sempre foi uma máquina de produção de esquecimento, que reserva violência e morte para aqueles que esquece. Talvez por isso a Amazônia siga sendo conhecida mais pelas pessoas que aqui morrem do que pelas pessoas que aqui vivem.
É necessário mudar esse modo de ver e pensar se nenhum diálogo é possível, pois os saberes, representações, cosmologias e agendas políticas dos povos amazônicos nunca caberão nos centros de referência cognitivos de quem representa a Amazônia sem nenhuma vontade de ouvir os amazônidas. Até aqui, nessa entrevista, alertamos que não há caminho viável ao caos ambiental e civilizatório sem os conhecimentos que nos legaram a região hoje capaz de ainda adiar o fim do mundo.
Para produzirmos relações mais horizontais com o Norte Global, precisamos existir para essa relação, pois até aqui fomos uma externalidade ao que existe, a partir dos parâmetros de existência inventados por eles.
Para reverter isso, é tarefa nossa, primeiro, reler a nossa história por nossos próprios olhos, vendo ruínas onde sempre se viu grandes construções. Precisamos desmonumentalizar nossa análise e encadear fragmentos de histórias não ditas para que o exercício de pensar o tempo não se reduza ao ato de colecionar fatos, mas seja um ato de salvar silêncios.
O segundo movimento, também histórico, é reconectarmo-nos à nossa memória ancestral, demonstrando a relação entre nossa diversidade étnica, linguística e cultural com nossa diversidade ecológica.
O terceiro movimento passa por uma crítica ao modo de produção de universalidades ou a essa geopolítica do conhecimento, que sempre provincializou os saberes da vida e universalizou os saberes da morte. Após velar os nossos mortos esquecidos pela história colonial e reconectarmo-nos à nossa memória ancestral, é preciso que digamos: precisamos colocar no centro do mundo os conhecimentos comprometidos com a vida.
O quarto movimento é um giro geoepistemológico, só possível pelos outros movimentos, ou seja, precisamos conseguir pensar com os povos e não contra os povos, com a diversidade e a comunidade e não contra a diversidade e a comunidade, e só fazemos isso se ouvirmos quem sempre pensou assim.
O quinto movimento, então, é considerar as agendas teóricas e políticas concretas que emergem da escuta dos saberes com a vida, da escuta aos saberes milenares dos povos amazônicos.
Na próxima questão terei a oportunidade de desdobrar melhor esse último movimento de descolonização do olhar sobre a Amazônia para a construção de um real diálogo com os amazônidas.
IHU – Como preservar o conhecimento produzido pelos amazônidas e por que essa tarefa se tornou incontornável nos dias que seguem?
Bruno Malheiro – Não é plausível que esse conhecimento milenar dos amazônidas, que tanto falamos aqui, historicamente encoberto pela colonialidade constitutiva do Brasil, não nos indique outros rumos. Por isso, é da “r-existência” desses povos que emerge outro legado teórico e político para repensarmos o Brasil, e é esse legado que demonstra a sua importância.
Mas antes, de novo é importante dizer que, quando falamos em preservar os conhecimentos dos amazônidas, novamente estamos falando de uma relação entre nós e eles, cujo centro da relação somos nós. Insisto em mudar os termos desse debate: não temos que preservar apenas esses conhecimentos, precisamos escutá-los para mudar como pensamos!
Esses conhecimentos ancestrais deslocam os nossos centros de referência e apontam uma outra agenda teórica e política necessária de ser ouvida. Nesses termos, se historicamente tratamos a Amazônia como um supermercado, esses povos nos oferecem a complementariedade e reciprocidade entre si e com a natureza como modo de diversificar a vida.
Se só conseguimos imaginar um Brasil mononacional, as lutas desses povos nos forçam a reconhecermo-nos como país plurinacional. Se vemos democracia num país em que o capitalismo é uma guerra, esses povos nos ensinam que não há democracia sem a restituição de suas capacidades decisórias sobre seus destinos e territórios. Se organizamos nossa vida pela propriedade privada, os saberes amazônicos nos apresentam diversas experiências de uso comum da terra. Se o direito tem sua face mais crítica na noção de direitos humanos, esses povos nos oferecem a ideia da natureza como portadora de direitos, daí falarmos em direitos da natureza. Se a propriedade privada também definiu nossas formas legais de reconhecimento da propriedade, a luta pelas autodemarcações dos territórios indígenas nos dá formas ágeis de reconhecimento de territórios tradicionalmente ocupados. Se o capitalismo na Amazônia se expressa como uma forma de masculinizar os espaços, a luta das mulheres indígenas aponta-nos um modo de ver o mundo comum pela reprodução e pelo cuidado. Se a nossa sociedade envenenou a comida e tornou o agro pop, esses povos nos ensinam técnicas milenares de produção de alimentos saudáveis e um saber-fazer comida como uma forma de reunião e não de individualização.
Enfim, se boa parte de nossa esquerda anda gastando mais energia em combater o inimigo esquecendo de um projeto próprio, os povos amazônidas nos oferecem outras formas de usar, organizar, sentir e pensar o mundo radicalmente distintas da racionalidade necropolítica que nos governa.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Bruno Malheiro – Queria aproveitar esse espaço para dizer que, nos últimos dois anos, fiz parte de um projeto cinematográfico que tentou dialogar com todas essas ideias acima colocadas. A maioria dos conhecimentos que tratamos nessa entrevista possuem uma tradição oral e, muitas vezes, perdem muito de seus contornos e de sua potência comunicativa em suas traduções escritas na ciência.
Creio ser tarefa nossa, também, fazer circular as vozes desses saberes por outras formas, por outras linguagens, para que elas realmente possam ser ouvidas. Por isso, na condição de roteirista e pesquisador, somei esforços com uma equipe, coordenada pelo professor e diretor Marcos Colón, da Universidade Estadual da Flórida, na construção do filme Pisar Suavemente na Terra. O documentário reúne histórias de sobrevivência à barbárie capitalista contra a Amazônia e tem a participação da cacica Kátia, do povo Akrãntikatêgê, de Marabá (PA), do cacique Manuel, do povo Munduruku, de Santarém (PA) e José Manuyama, indígena Kokama de Iquitos, Amazônia peruana.
Os três narram situações de resistência contra a violência imposta aos seus territórios originários, seja pelo garimpo, pelo petróleo, pela grande mineração, pela construção de usinas hidrelétricas ou pela expansão do cultivo da soja e outros empreendimentos econômicos agressivos. A voz e o pensamento do líder indígena e filósofo Ailton Krenak servem como fios condutores da obra.
Convido a todos os leitores dessa entrevista a assistirem ao filme, que deve rodar alguns festivais em algumas cidades do Brasil, alguns lugares da América Latina, EUA e Europa.
Antes de finalizar, então, quero agradecer o convite e, também, reforçar a importância desse espaço de reflexão. Fico honrado e feliz por poder contribuir de alguma forma. Espero que continuemos o diálogo!
Notas:
[1] KOPENAWA, David; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã Yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2016
[2] AB’SABER, Aziz N. 1977. “Os Domínios Morfoclimáticos na América do Sul: primeira aproximação”. Revista Geomorfologia, São Paulo, n. 52, p. 1-22
[3] NEVES, Eduardo Goes. Sob os Tempos do Equinócio: oito mil anos de História na Amazônia Central. São Paulo: Edusp/UBU, 2022.
[4] TOLEDO, Vitor; BARRERA-BASSOLS, Narciso. A memória biocultural: a importância ecológica das sabedorias tradicionais. São Paulo: Expressão Popular, 2015.
[5] VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio. Mana. vol.2 nº 2. Rio de Janeiro, Oct, 1996.
[6] COCCIA, Emanuelle. A vida das Plantas: uma metafísica da mistura. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2016.
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Créditos imagem: Carl de Souza /AFP /France Culture