por Patricia Fachin, em IHU On-Line
Apesar de o capítulo VIII da Constituição brasileira tratar sobre os direitos dos povos indígenas, na prática o texto constitucional ainda não tem sido utilizado como fonte primária para aplicar a legislação indigenista, e muitos operadores do Direito ainda tomam o Estatuto do Índio, de 1973, como parâmetro para as decisões judiciais. “A proeminência teórica e normativa da Constituição ainda não se refletiu na prática, porque o que vemos hoje, diferentemente de outros ramos do Direito, é que ainda não existe uma leitura constitucional do Estatuto do Índio”, lamenta o procurador do Ministério Público de Mato Grosso do Sul, Marco Antonio Delfino de Almeida.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, Almeida frisa que “a construção teórica da interpretação das normas à luz da Constituição e dos tratados internacionais de direitos humanos, aplicada correntemente para o Direito Penal, o Direito Civil e o Direito do Consumidor, ainda não é, infelizmente, empregada em relação aos povos indígenas. O que ainda vale para os povos indígenas é o Estatuto do Índio a partir de a leitura totalmente anacrônica”, diz. Ele informa também que o Estatuto do Índio “ainda é o único entre os grandes estatutos que regulam relações, que é anterior à Constituição. (…) Todas as legislações especiais, que contêm de alguma forma um enfoque a grupos que têm uma diversidade ou uma especificidade, foram contempladas com mudanças legislativas pós-Constituição, justamente para receber as mudanças que a Constituição estabeleceu. Agora, em relação aos povos indígenas, isso ainda não ocorreu”.
De acordo com o procurador, “todos os avanços recentes que ocorreram em relação aos povos indígenas foram avanços políticos”, que estiveram à mercê da vontade dos presidentes. “Infelizmente o processo demarcatório está viciado, ele se transformou em um processo eminentemente político, como se a demarcação não fosse um direito, mas uma benesse que pudesse ser concedida como um processo de indulto ou graça presidencial”, reitera. E denuncia: “Só se consegue demarcar uma terra se o governante titular entende que é politicamente viável. Isso demonstra que essa questão é refém da agenda política, o que é um absurdo. A demarcação é uma obrigação constitucional que tem que ser exercida independentemente da conjuntura política. (…) Esse processo, que sempre foi técnico, se politizou e isso inviabiliza que se tenha hoje um avanço significativo nessa questão”.
Marco Antonio Delfino de Almeida é procurador do Ministério Público Federal de Mato Grosso do Sul. É graduado em Ciências Jurídicas pelo Centro Universitário de Campo Grande – Unaes e mestre em Antropologia pela Universidade Federal da Grande Dourados.
Confira a entrevista.
IHU On-Line — Qual é atual situação dos Guarani e Kaiowá que vivem em Caarapó, em MS?
Marco Antonio Delfino de Almeida — A situação pode ser caracterizada como de uma tranquilidade aparente, mas, na verdade, os motivos que ensejaram o conflito não foram resolvidos, porque o processo demarcatório continua paralisado. Ou seja, trata-se de uma fase de tranquilidade extremamente frágil, pois os motivos subjacentes ao conflito permanecem. Especialmente nesse quadro de polarização política existe uma clara possibilidade de nova eclosão de violência. Possibilidade está estimulada por lideranças políticas nacionais que estiveram recentemente no Estado.
É importante entendermos por que essa violência se repete. Ela se repete porque ainda não existe no Brasil, efetivamente, um processo de justiça de transição endereçado aos Povos Indígenas. Esse processo é importante para que possamos entender que a suposta “proteção” que estava contida no Serviço de Proteção aos Índios – SPI era inexistente, pois nunca houve uma “proteção” efetiva; na verdade o que houve foi uma exploração da mão de obra indígena. Tanto é que o SPI, em todos os governos até 1967, permaneceu ligado ao Ministério da Agricultura. Então, o objetivo político não era a “proteção”, mas a exploração da mão de obra indígena. Era uma relação absolutamente colonial, onde havia punições fora do sistema jurídico, sem a observância do devido processo legal, e restrições ao direito de locomoção. Foi isso o que fizemos com as comunidades indígenas, e, ainda que isso tenha acabado em 1967, os resquícios permaneceram até 1988 e, em alguns casos, até depois disso.
É importante entendermos que a relação que tivemos com os povos indígenas foi uma relação de colonizador e colonizado. Um dos pressupostos do colonizado é que ele tem um status jurídico diferenciado, e era o que ocorria com os indígenas: eles não tinham uma cidadania plena. A legislação existente à época pode ser comparada ao “Code de l’indigenát” Francês que era empregado nas colônias francesas.
Depois de 1988, ainda que essa relação colonial tenha desaparecido, os resquícios permaneceram. Ainda temos uma relação que é assimétrica. Muitos países já reconhecem que cometeram violações às comunidades indígenas, entre eles, a Guatemala, a Austrália e o Canadá, por exemplo. A partir do momento em que temos a explicitação das violações e a devida reparação às comunidades, é possível que seja estabelecida a memória. Nesse sentido, o estudo das comunidades indígenas nos currículos escolares precisa ser atualizado para conter essas violações. Essa, por exemplo, é uma forma de aplicarmos de forma efetiva, a lei 11.645/2008, que determina a inclusão da temática da História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena nos currículos escolares. A narrativa da relação efetiva que se teve com essas comunidades no país. A substituição da narrativa do colonizador, do tratamento extremamente cordial, da exotização, pela relação real. A história posta, invisibiliza as violações e retira a voz do colonizado e dos escravos. A partir do momento em que esse processo for restabelecido, poderemos atuar, de forma mais exitosa, na vedação da repetição as violações.
IHU On-Line — Este ano se comemoram os 30 anos da Constituição de 88, que dedicou o capítulo VIII à questão indígena. Como o senhor analisa o texto constitucional? Ele avançou no modo de perceber o indígena de outra forma, ou essa relação colonial se mantém?
Marco Antonio Delfino de Almeida — Após 1988, a Constituição percorreu um caminho difícil até ser entendida por seu aspecto de centralidade, ou seja, como uma norma central, uma norma que seja não apenas o fundamento de validade, mas de interpretação em relação às outras normas. Na década de 1990, se iniciaram vários movimentos, como os de Direito Civil Constitucional e Direito Constitucional Penal, para que a leitura desses instrumentos jurídicos — os Códigos Civil, Processual e Penal — fosse feita à luz da Constituição. Hoje pode parecer uma obviedade, mas até então não tínhamos uma cultura constitucional. Esse movimento hoje está superado e ninguém mais discute a centralidade e a proeminência da Constituição em relação às outras normas. Mas em relação aos povos indígenas isso não ocorreu ainda. Isto é, ainda que tenhamos normas constitucionais, supostamente elogiadas, esse arcabouço ainda não se reflete na prática.
O primeiro país que reconheceu, no plano constitucional, a diversidade da sociedade e seu aspecto multicultural e multilíngue, foi o Canadá, com a Constituição de 1982. Seguida, na América latina, pelas Constituições da Guatemala de 1985 e da Nicarágua, de 1987. O Brasil veio nessa segunda onda, um ano antes da promulgação da Convenção 169 da OIT sobre direitos dos Povos Indígenas. Mas essa proeminência teórica ainda não se refletiu na prática, porque o que vemos hoje, diferentemente de outros ramos do Direito, é que ainda não existe uma interpretação constitucional do Estatuto do Índio. A construção teórica da interpretação das normas à luz da Constituição e dos tratados internacionais de direitos humanos, aplicada correntemente para o Direito Penal, o Direito Civil e o Direito do Consumidor, ainda não é, infelizmente, empregada em relação aos povos indígenas”.
IHU On-Line — Quais são as dificuldades de se utilizar a Constituição como um instrumento central para tratar da questão indígena? Essa é uma dificuldade do próprio Estado, do Judiciário, dos operadores do Direito, das comunidades?
Marco Antonio Delfino de Almeida — Há várias questões. A primeira é uma questão de formação jurídica. Uma parte expressiva dos operadores de Direito — advogados, juízes e promotores — sequer tiveram aula de direitos humanos na universidade. E mesmo em relação a direitos humanos, a questão indígena é absolutamente eclipsada. Talvez sejam poucos os cursos que tenham na sua grade curricular, ou em alguma aula do curso, algum ponto relacionado a povos indígenas. Então, não há uma formação jurídica que contemple povos indígenas. Obviamente, que esta falha jurídica na formação irá se refletir, especialmente em uma atuação que consiga se contrapor à visão discriminatória corrente na sociedade, mormente na região sul e centro-oeste. Em outros termos, se não tenho o fundamento científico apenas reproduzo o senso comum, absolutamente preconceituoso.
Com isso, infelizmente, o que deveria ser o usual: a interpretação da legislação à luz da Constituição se torna exceção em relação aos povos indígenas. Por exemplo, o Código Civil estabelece que “A capacidade dos indígenas será regulada por legislação especial”. Em vez de uma leitura constitucional e convencional para está definição, temos a aplicação literal do Estatuto do Índio, que é de 1973. Esse ainda é o único, entre os grandes estatutos que regulam relações, que é anterior à Constituição. Por exemplo, o Estatuto do Estrangeiro foi substituído por uma nova lei de imigração. Da mesma forma, temos o Estatuto do Consumidor, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estatuto do Idoso, o Estatuto da Pessoa com Deficiência. Ou seja, todas as legislações especiais, que contêm de alguma forma um enfoque a grupos que têm uma diversidade ou uma especificidade, foram contempladas com mudanças legislativas pós-Constituição, justamente para receber as mudanças que a Constituição estabeleceu. Em relação aos povos indígenas, infelizmente, isso ainda não ocorreu.
IHU On-Line — Em que pontos especificamente o Estatuto do Índio precisaria ser revisto?
Marco Antonio Delfino de Almeida — O foco principal de revisão deveria se dar na alteração da visão evolucionista e integracionista. Desde a Constituição Federal de 1934, havia a previsão de “incorporação dos silvícolas à comunhão nacional”. Esta visão se refletiu no próprio Estatuto do Índio que classifica os indígenas em: Isolados, em vias de integração e integrados. Segundo essa escala evolucionista, reprodutora de um pensamento antropológico do século XIX, as sociedades evoluiriam da Selvageria, para a Barbárie e, enfim, para a Civilização. Ideias já criticadas pelo antropólogo Franz Boas, no inicio do século XX. Essa ideia de integração é um conceito ultrapassado, porque não existe uma escala evolucionista, não existem sociedades atrasadas; as sociedades são diversas, cada uma tem suas especificidades e um modo de encarar o mundo. O indiano Raimon Panikkar tem uma alegoria muito interessante: o mundo tem várias janelas e cada sociedade tem a sua janela, isto é, cada sociedade tem uma visão particular do mundo, cada cultura concebe uma ordem humana justa para seus indivíduos.
Infelizmente, essa visão evolucionista ainda é muito usada nas decisões judiciais e, frequentemente, contra as comunidades indígenas. É a aplicação jurídica inversa do exposto por Boaventura dos Santos: “Temos o direito a ser iguais sempre que a diferença nos inferioriza; temos o direito a ser diferentes sempre que a igualdade nos descaracteriza.” Por exemplo, em Mato Grosso do Sul há decisões que afirmam que as comunidades estão em vias de integração, por isso devem receber uma intimação por intermédio da Funai. Ou seja, o direito que todos os demais cidadãos têm de receber uma intimação judicial pessoalmente, não seria aplicável aos Povos Indígenas. Muitas vezes, nos mesmos autos, no momento da prolação da sentença, o entendimento “evolui”. A menção de que os Kaiowa e Guarani usam calça jeans, jogam vôlei, ou seja, têm características de integrados, fundamentam a sua punição como cidadãos comuns. As categorias são utilizadas, não raro de acordo com as conveniências. Via de regra, para restringir direitos.
É fundamental respeitarmos a diversidade, o modo de vida, os usos, os costumes, as tradições e a autonomia das comunidades indígenas como a Constituição, Convenções e declarações estabelecem. Essa leitura do Direito Internacional e da Constituição deve ser utilizada na relação com os povos indígenas. Toda e qualquer política pública deve ser feita mediante diálogo, consulta e construção com a sociedade, e não simplesmente imposta.
É igualmente importante que superemos este cenário de patente discriminação. Temos em relação aos Povos Indígenas, o que denominamos de graves desigualdades horizontais. As desigualdades horizontais ocorrem quando comparamos grupos com o mesmo acesso a bens econômicos e acessos diferenciados a políticas públicas. Quando comparamos, por exemplo, as pessoas inscritas no Cadastro Único e suas taxas de mortalidade e nutrição em comparação aos Kaiowá e Guarani há claramente uma diferenciação. Não há como justificar esta diferenciação de outra forma que não seja pela discriminação. No caso das comunidades indígenas o Brasil exerce com muita tranquilidade o racismo — até mais que o racismo, exerce com muita tranquilidade o ódio racial.
Lembro de uma ocasião em que estava fazendo um interrogatório de uma pessoa por motivo de trabalho escravo. Comecei a questioná-lo em relação aos alojamentos em que as comunidades indígenas ficavam e a pessoa começou a cair em contradição e se irritou, porque a contradição era evidente, e saiu com esta pérola: eles não são gente como a gente. As pessoas cometem violências em relação aos povos indígenas porque claramente há um processo de desumanização: o indígena é visto como o outro, o diferente, o não humano, ele é aquela pessoa que eu não entendo, que não compreendo, que não faz parte da minha comunidade, portanto não é humano. Assim, em relação a ele eu não preciso ter os mesmos cuidados que tenho em relação aos humanos.
IHU On-Line – Diante de casos como esse, a Funai ainda tem sentido? Ela tem um papel proeminente em relação à questão indígena?
Marco Antonio Delfino de Almeida — A Funai hoje, tecnicamente, em face das graves restrições orçamentárias, se tornou uma espécie de vaso ornamental, mantido para visualização internacional. Sem prejuízo da brilhante atuação dos seus servidores, mesmo com parcos recursos, me parece óbvio que a prioridade de um determinado órgão, na estrutura de governo, é obtida pelo seu acesso a recursos. No atual cenário político, a Funai só é mantida “para inglês ver”, como eventual resposta em caso de demanda perante órgãos internacionais.
Em um texto de 1962, denominado a “Política Indigenista Brasileira”, Darcy Ribeiro discorre sobre a gênese do SPI e aponta as condições para o seu sucesso: “Verbas suficientemente avultadas para financiá-la:; pessoal altamente qualificado (…) e suficiente autoridade e poder para se impor aos régulos locais”. Ainda que não tenhamos mais a “aculturação e assimilação” contida neste contexto como meta, me parece que o cerne do órgão indigenista permanece o mesmo. A partir do momento em que um órgão não tem acesso a recursos e não tem peso político significativo, se transforma em um instrumento de desproteção. Apesar do papel procedimental de garantidora de direitos, a Funai ainda tem um papel substancial no processo de demarcação de Terras Indígenas e na proteção dos Povos Isolados. Logo, é fundamental que esta fórmula, relatada há 56 (cinquenta e seis) anos seja seguida, à risca.
Igualmente importante é definir o papel efetivo da Funai. Até hoje há uma confusão clara: se o índio tem problemas de saúde, se diz que o problema é da Funai, mas o problema na verdade é da Secretaria Especial de Saúde Indígena – Sesai e dos sistemas de saúde municipais, governamentais e federal, porque o índio é um cidadão, que deve ser atendido por todas essas instâncias.
Alguém tem dúvida de que se um colono que estiver num assentamento do Incra for picado por uma cobra ou sofrer um acidente ele será atendido por uma ambulância da prefeitura? Ninguém tem dúvida disso. Agora, em relação ao indígena, a prefeitura diz que quem tem que ir buscá-lo é a Sesai e não a ambulância da prefeitura. Esse tipo de questão mostra que esses processos de tutela ainda permanecem. Essa transição para a nova Constituição ainda não ocorreu.
IHU On-Line – Então outras questões como, por exemplo, a saúde indígena, os direitos indígenas, deveriam ser tratadas pelas mesmas instâncias que tratam qualquer cidadão?
Marco Antonio Delfino de Almeida — É isso que eu digo. Essa é a ideia. Antes a Funai concentrava a educação, a saúde, a assistência social, a parte de auxílio à agricultura. Depois da promulgação da Constituição todas essas competências passaram a valer da mesma forma que para os demais cidadãos. Por exemplo, em relação à assistência social, em todas as cidades existem os CRAS e CREAS, que são municipais e têm que atender dentro das comunidades indígenas.
Na questão da saúde, existe a Sesai e parte da educação é atribuição municipal ou estadual, mas algumas competências ainda não foram assimiladas e, nesse sentido, a própria Sesai acaba assumindo essa discriminação e não atuando de forma correta. Ela deveria se recusar a ser usada como ambulância, porque ela foi criada para atuar como um médico da família e fazer atendimento básico. Então ela não tem que atender uma pessoa esfaqueada. Quem tem que atender as comunidades nessas situações são os bombeiros, o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência – Samu, e não a viatura que é utilizada para fazer atendimento médico básico.
Quando há, por exemplo, o deslocamento de um indígena da comunidade para a cidade, ele não deve ir numa viatura da Sesai e sim numa ambulância, como vão os demais cidadãos. Quando um indígena vai ao banco para sacar o FGTS, ele não precisa do funcionário da Funai ao lado dele para assinar, porque ele é um cidadão que vota e pode ser votado e pode sacar o seu FGTS como qualquer cidadão, sem precisar da presença de um funcionário da Funai. Tivemos que recomendar esse tipo de atitude porque as pessoas tinham resistência em liberar o dinheiro por se tratar de um índio. Então, 30 anos se passaram e a Constituição não faz parte das nossas relações diárias com as comunidades indígenas.
IHU On-Line – Quais são as dificuldades nos processos demarcatórios das terras em Caarapó?
Marco Antonio Delfino de Almeida — O problema é político, simples assim. Enquanto não houver vontade política para resolver essa questão, ela não será resolvida. Todos os avanços recentes que ocorreram em relação aos povos indígenas foram concessões políticas. Como exemplo, a determinação presidencial de publicação da Portaria de identificação de Iguatemipeguá I, em 2013. O estudo estava pronto, mas não era publicado. No mesmo sentido, foram as identificações que ocorreram no ano de 2016, inclusive na região de Caarapó. Importante ressaltar que não estamos reforçando as alegações fantasiosas de “indústria das demarcações”. O que criticamos é a transmudação do impulso de ofício, inerente ao processo administrativo, em impulso político. O processo tecnicamente construído, apenas avança se houver interesse da administração. Infelizmente, o processo demarcatório está viciado, ele se transformou em um processo eminentemente político, como se a demarcação não fosse um direito, mas uma benesse que pudesse ser concedida como um processo de indulto ou graça presidencial.
O processo de demarcação se tornou refém da agenda política, o que é um absurdo. A demarcação é uma obrigação constitucional que tem que ser exercida independentemente da conjuntura política. Apenas quando fatos extraordinários ocorrem, como por exemplo, a ameaça de suicido coletivo em 2013, é que se obtém a sobreposição da pressão política contrária.
Este é o problema do processo demarcatório hoje: o seu conteúdo é técnico, mas o processo é político. Além da pressão na própria Funai, temos uma clara pressão, no Congresso, para que não ocorram mais demarcações. A partir do momento em que ocorre a politização da questão, e temos um grupo afetado com uma vulnerabilidade econômica e política, me parece óbvio que ele não irá avançar.
IHU On-Line – Qual sua avaliação da decisão da ministra do Supremo Tribunal Federal Cármen Lúcia, de suspender a ordem de despejo de comunidades indígenas que estavam em Caarapó?
Marco Antonio Delfino de Almeida — Felizmente, a decisão ocorreu aos 45 minutos do segundo tempo. Ela possui um aspecto dúplice: negativo/positivo.
O aspecto positivo decorre do reconhecimento, ainda que por vias transversas, do direito ao território das comunidades indígenas. O ideal, obviamente, é que houvesse um reconhecimento judicial e definitivo sobre esta questão.
Ela igualmente é positiva por evitar uma situação de confronto em um ambiente tensionado. A população em geral, fruto do ambiente discriminatório em que estão inseridas os Kaiowá e Guarani, estão irresignadas com a prisão dos produtores rurais, em decorrência do denominado “Massacre de Caarapó”. O sentimento, que não posso dizer como generalizado, mas comum, é de que as prisões foram equivocadas. Entendem justificada a morte e a violência para suposta proteção da terra. E me parece claro que este sentimento contamina o próprio processo de reintegração. Pessoas que não cumprem uma decisão judicial, mas foram responsáveis pela prisão de cidadãos de bem. Aí as categorias se misturam, porque no Brasil um cidadão de bem é um cidadão de bens.
Então, a decisão foi acertada porque evitou um escalonamento, embora ela não enfrente o problema central. É fundamental que o processo de demarcação avance. Enquanto ele não avançar, continuaremos tendo situações-limite como essas.
O aspecto negativo decorre da demora na concessão da decisão. O pedido já havia sido postulado há algum tempo. A demora, ainda que razoável, na decisão acarretou uma clara possibilidade de escalonamento da violência. Então, esse foi o lado negativo da decisão, ou seja, a demora no processo de concessão e a consequente tensão associada.
Ontem [18-4-17] eu estive com representantes da comunidade indígena e eles relataram essa tensão que viveram. Deu para sentir que a comunidade viveu um momento de estresse muito grande, especialmente no momento atual, onde a polarização é gritante. Efetivamente, a possibilidade de haver violência era grande.
–
Foto: MPF