Proposta de novo marco legal da Regularização Fundiária é grave. Por Patrícia Silva

A atual legislação brasileira sobre regularização fundiária já é suficiente para garantir aos agricultores familiares com áreas de até quatro módulos fiscais a titulação de suas terras

No Le Monde Diplomatique Brasil

Depois da aprovação apressada do projeto de lei dos agrotóxicos pela Câmara dos Deputados na última semana, duas propostas legislativas que visam instituir novas regras da regularização fundiária também podem tramitar aceleradamente: os PL 2.633/2020 e PL 510/2021. Do ponto de vista da democratização do acesso à terra, da proteção do meio ambiente e dos direitos territoriais de indígenas, quilombolas e demais povos e comunidades tradicionais, as matérias representam ameaça às garantias constitucionais e selam um pacto do parlamento com a especulação imobiliária, a grilagem de terras e a destruição da Amazônia e do Cerrado para avanço do agronegócio.

Estes projetos tramitam no contexto da pandemia de Covid-19, o que restringe a participação social no acompanhamento das propostas. Ainda que tenham sido realizadas audiências públicas nas Comissões de Meio Ambiente e de Agricultura e Reforma Agrária do Senado Federal, não se pode dizer que houve um amplo debate público sobre a matéria e, certamente, não houve amadurecimento das propostas em análise.

Diante de um tema tão relevante para a população brasileira, que desde a invasão colonial movimenta a política no país, o parlamento tem se mostrado avesso às evidências que refutam a necessidade de alteração na legislação fundiária. Ao contrário de um entendimento justo sobre distribuição de terras, o substitutivo do relator, senador Carlos Fávaro (PSD-MT), privilegia aqueles que se apropriaram de terras públicas de forma ilegal.

Conforme levantamento realizado pelo Instituto de Pesquisas da Amazônia (Inpa), entre 2019 e 2021, a Amazônia perdeu mais de 32 mil km² de floresta, registrando aumento de 56% em relação ao período anterior ao governo de Jair Bolsonaro, de 2016 a 2018. O estudo aponta ainda que 51% dos desmatamentos ocorridos desde 2019 foram em terras públicas. Dentre elas, as florestas públicas não destinadas, alvo dos projetos em tramitação, foram as mais atingidas, registrando alta de 85% na área desmatada, provocada geralmente pela ocupação ilegal visando especulação fundiária.

O substitutivo ainda amplia a dispensa de vistoria para a regularização de médias propriedades, proposta desnecessária visto que a grande maioria dos imóveis que aguardam a regularização fundiária atualmente são pequenas propriedades. A ausência de vistoria certamente não evidenciará os conflitos fundiários existentes, bem como representará um risco para os direitos territoriais de comunidades tradicionais e agricultores familiares.

Também preocupa nas matérias a dispensa da assinatura dos confrontantes, prevista no substitutivo, deixando a critério do proprietário a definição dos limites do imóvel, o que poderá acirrar conflitos fundiários e a judicialização do processo de georreferenciamento de imóveis rurais. Territórios de comunidades tradicionais e as terras públicas ainda não arrecadadas ou discriminadas podem vir a ser incorporadas em imóveis supostamente privados.

O substitutivo abre a possibilidade de desafetação de projetos de assentamento para titulação segundo as normas da regularização fundiária, o que pode favorecer pessoas que não possuem o perfil de beneficiários da reforma agrária, bem como promover a concentração de lotes adquiridos de forma irregular. Além disso, o relatório do senador Fávaro é pela ratificação automática de títulos, o que viola o disposto nos artigos 186 e 188 da Constituição Federal, que tratam da função social da propriedade agrária e estabelecem que a destinação das terras públicas deve ser compatibilizada com a política agrícola e com o Plano Nacional de Reforma Agrária.

A atual legislação brasileira sobre regularização fundiária já é suficiente para garantir aos agricultores familiares com áreas de até quatro módulos fiscais a titulação de suas terras. Não há necessidade de alteração do marco legal. O que o país precisa é reforçar os quadros de pessoal e restabelecer orçamentos e regramentos infralegais dos órgãos que executam as políticas socioambientais. O combate ao desmatamento e o acesso democrático à terra somente serão possíveis com a retomada de investimentos e de políticas públicas voltadas aos povos, comunidades tradicionais e agricultores familiares a partir do fortalecimento dos órgãos ambientais e fundiários.

Patrícia Silva é advogada, mestra em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural, assessora de políticas públicas do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN).

Foto principal (Leandro Taques/MST-PR):

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