História, cultura e mobilização em Julio Otoni

Rhona Mackay – RioOnWatch

A comunidade Julio Otoni em Santa Teresa fica em um dos vários morros do Rio que estão de frente para a Baía de Guanabara. De cima da favela, se tem uma incrível visão panorâmica do o Pão de Açúcar e o Cristo Redentor. A comunidade é lar de 400 famílias, mais de 2000 pessoas no total.

As primeiras famílias se instalaram na área que se tornaria a Julio Otoni nos anos 40. Os pais do líder comunitário, Sizenaldo Marinho, chegaram ali do nordeste nos anos 50, em busca de trabalho.

“Eu tenho 47 anos, eu nasci aqui na comunidade. Meus pais moram aqui há mais de 50 anos. Quando eles chegaram era uma comunidade muito pequena, só tinha 16 famílias, mas ao longo dos anos a população cresceu. Algumas famílias ampliaram suas casas e alugaram quartos para pessoas morarem. Normalmente, as pessoas que vieram para morar em quartos alugados, acabaram ficando e construindo suas próprias casas.”

“Minhas primeiras memórias daqui, de quando eu era criança, era que tinha muita fruta, muitas árvores. Quando eu era jovem eu vivia dentro da mata, colhendo frutas. Goiaba, manga, banana, abacate… Bem próximo tinha um pomar, era gigante, então nós brincávamos lá e íamos lá para pegar fruta. Eu quase nunca comia em casa, eu comia na rua ou com as famílias dos meus amigos. As famílias eram mais unidas naquela época…”

“As memórias que eu tenho daquela época são de muito espaço. Brincávamos com brincadeiras que as crianças de hoje não brincam muito, como pular corda, pião, futebol e pipa. De noite, pegávamos lenha e fazíamos fogueiras e os adultos nos contavam histórias… Eu tinha muita liberdade, ficava na rua até tarde, descalço com meus amigos. Naquela época as pessoas se juntavam com mais frequência, eles se abraçavam mais. Essa é a memória que eu tenho da infância aqui.”

A mãe de Sizenaldo, Maria de Lourdes, tem uma memória diferente de como era a comunidade quando ela chegou. Nascida no Recife, ela se mudou para Julio Otoni 52 anos atrás. “Não tínhamos água corrente, não tínhamos energia. A mata era muito densa naquela época, ninguém podia cortar porque tinham guardas florestais que cuidavam das árvores. Minha casa era a última na comunidade, do lado da mata”.

“Todo dia às 5 horas da tarde eu descia e esperava meu esposo voltar do trabalho, porque eu tinha medo de ter alguém escondido na mata. Por isso, eu comecei criar muitos cachorros. Nós tínhamos sete cachorros para guardar a casa. Eu ficava sozinha em casa e meu filho era muito pequeno ainda.”

Muitas coisas mudaram desde aquela época. A casa da mãe de Sizenaldo não é mais a última na comunidade, e a mata foi cortada até mais acima. Casas foram construídas mais acima da ladeira com o crescimento da comunidade.

A comunidade cresceu durante os anos 90. Durante esse período Julio Otoni foi ocupada por traficantes que encorajaram o influxo de pessoas. “Quanto maior a favela, melhor para os traficantes. Assim, eles tinham mais rotas de fuga, eles tinham mais clientes, eles tinham mais lugares onde podiam se esconder… Para eles era bom que a favela crescesse”, diz Sizenaldo. Em 2013, Julio Otoni recebeu a UPP junto com a comunidade Cerro-Corá que fica do lado, mas embora haja a presença policial, outros serviços públicos como saneamento, educação e saúde não melhoraram.

A comunidade tem tradições culturais fortes, como por exemplo a realização de uma festa anual para o Dia da Consciência Negra. “É o dia do Zumbi dos Palmares, um dos nossos primeiros heróis negros. Organizamos um evento na comunidade. Sempre fica ótimo! Os moradores da minha rua me ajudam. Sempre fazemos um evento grande para comemorar Zumbi que foi muito importante”, diz Sizenaldo.

Sizenaldo também fala da demanda para educação para adultos na comunidade e sua iniciativa para cumprir essa carência. Ele abriu um centro comunitário em setembro de 2004 e começou um programa de alfabetização de adultos para membros da comunidade: “Alguém chegou para mim e falou: ‘Você sabia que têm muitas pessoas aqui que não sabem ler?’ Eu fiquei chocado. Naquela época eles tinham que descer a ladeira para aprender a ler, e poucas pessoas desciam porque eles voltavam do trabalho cansados… Tendo as aulas aqui na comunidade, ficou muito mais fácil. Então a primeira coisa que eu fiz no centro comunitário, foi oferecer aulas de alfabetização para adultos”.

“Tínhamos 26 adultos, e nós juntamos com um outro curso com 18 adultos que não sabiam nem ler nem escrever… Eu falei para meus amigos e contei para eles o que eu queria fazer. Eu fui até a Universidade Cândido Mendes e consegui cadeiras, mesas, doações de livros para fazer uma biblioteca e materiais pedagógicos, todos de graça para os alunos adultos. E foi incrível.”

“Quando as aulas acabaram eu chorei. Chorei porque entrevistamos eles e perguntamos porque eles queriam aprender a ler. Eles falaram: ‘quando vou no supermercado eu não sei o que estou comprando. Eu não sei se é um produto bom, qual é a marca e quero saber’; ‘meus filhos vão para escola e as vezes eles me perguntam alguma coisa e eu não sei como responder a meu filho’; e ‘eu dirijo, mas eu não sei os nomes das ruas, e isto é muito importante’.”

Sizenaldo afirma que ainda têm muitas demandas para o governo cumprir na comunidade: “Hoje em dia tem especulação e gentrificação em algumas favelas. Mas isso está muito longe [de Julio Otoni]. A realidade aqui é muito diferente. A questão aqui, é que o governo nunca olha para a favela. Só durante a época da eleição, para ganhar votos. As vezes eu digo que no Rio de Janeiro numa mesma rua, a uma esquina, a uma quadra pode existir duas realidades totalmente diferentes. Isto é incrível”.

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