Agronegócio e monoculturas [Parte 1/2]

Por Roberto Naime*, no EcoDebate

A FASE que é uma organização não-governamental voltada para a promoção dos direitos humanos, da gestão democrática e da economia solidária exerce fundamentada reflexão, asseverando que atualmente os ciclos produtivos ocupam todo o território dos países.

Nas culturas anteriores, para exportação de cana, café, borracha, cacau, algodão, ocupavam espaços delimitados do território, mantendo-se confinadas neles ou trocando por outras áreas. Hoje os ciclos produtivos tendem a se espraiar por todo o território, abrindo novas áreas na “frente de expansão” ou reconquistando áreas degradadas ou abandonadas.

Contudo, mesmo que na lógica do atual sistema sejam consideradas degradadas ou abandonadas, muitas dessas áreas possuem dinâmicas ecológicas e socioculturais que desautorizam sua utilização para as monoculturas.

Isso é ainda mais verdadeiro no caso da Amazônia, onde a diversidade florestal não permite considerar como “reflorestamento” a substituição da vegetação original por plantações homogêneas ou monocultivos.

No entanto, junto com as grandes culturas de grãos e a pecuária, intensifica-se na região a produção de itens para exportação com frangos e suínos criados à base de soja. Ou frutas, flores e crustáceos. E também de matérias-primas para a indústria como madeiras para papel ou celulose, carvão vegetal, biomassa para fins energéticos e algodão.

Essa produção tem caráter “totalitário”, pois não coexiste com agricultura familiar e agro-extrativismo, e menos ainda com a opção agroecológica.

Se antes não se utilizavam certos espaços, devido à distância dos mercados e ao predomínio de solos inférteis ou inapropriados para a exploração tradicional, hoje a correção dos solos, a disponibilidade de sementes que se adaptam a diversas condições, a possibilidade de novas culturas, como a criação de crustáceos (carcinicultura), facilitam sua expansão em detrimento de outros usos e ocupação dos territórios.

Também os métodos agressivos de produção, com o emprego maciço de agrotóxicos e água, dificultam e até mesmo impossibilitam a produção e a sobrevivência da pequena agricultura e núcleos rurais ilhados, pois geram uma terra devastada, sem água ou com água contaminada, e roças, pomares e pequenas criações de animais e abelhas envenenadas.

Onde agricultores familiares querem produzir soja não-transgênica, o emprego de sementes transgênicas impede na prática essa opção, pela contaminação.

Beneficiando-se dos preços baixos da terra em áreas remotas ou consideradas inaptas, de créditos e subsídios, e da alta lucratividade dos produtos no mercado internacional, essa produção em larga escala expulsa pela força ou pressiona os pequenos agricultores e agroextrativistas a vender suas propriedades, se utilizando da depressão dos preços dos produtos tradicionais e da falta de serviços públicos no campo.

A maioria das culturas de exportação é herdeira do latifúndio. Assim, a grande exploração é encarada como um fenômeno “natural”, como se só se pudesse produzir em grandes propriedades.

O maquinário e os sistemas de apoio à produção como crédito, armazéns e vias de transporte e comunicações, além do tecido urbano interiorano, são estruturados em função desta realidade.

Esse modelo de agricultura produz impactos ambientais negativos que hipotecam o futuro, geram empobrecimento e contaminação dos solos, diminuição dos recursos hídricos e contaminação das águas, perda de biodiversidade natural e cultivada, mudanças microclimáticas e destruição de paisagens.

Tais impactos não são apenas ambientais. Têm também o potencial de afetar a segurança alimentar e nutricional, a saúde, a soberania e a qualidade de vida rural e urbana.

Na esfera do intangível, esse modelo promoveu o desgaste e o abandono de antigas práticas culturais relacionadas ao manejo da produção, desvalorizou os saberes acumulados por incontáveis gerações de indígenas, caboclos e quilombolas e desqualificou os conhecimentos das comunidades tradicionais, marginalizando as mesmas dos sistemas simbólicos do mundo globalizado.

A “revolução verde” transformou profundamente a agricultura no plano tecnológico, baseando-se no tripé de maquinário, insumos químicos e sementes cada vez mais artificializadas. Vale notar que a pesquisa e o conhecimento científicos foram e continuam sendo postos quase que totalmente a serviço desse modelo.

Marcel Mazoyer e Laurence Roudart afirmam que “liberadas da necessidade de fornecer a si mesmas bens de produção essenciais como ferramentas, adubos, sementes, matrizes, alimentos para os animais e força de tração, e bens de consumo variados, as explorações agrícolas se especializaram e abandonaram a diversificação da produção para se consagrar, quase que exclusivamente, a algumas produções destinadas à venda”.

Isso cavou um abismo entre os agricultores que tiveram condições de se adaptar pela sua instrução, conhecimentos, terra e capital e os outros que ficaram excluídos.

Especializada e totalmente voltada para a comercialização, tendo obtido ganhos de produtividade enormes, essa agricultura é resultante e ao mesmo tempo produtora da internacionalização do mercado. Marca o deslocamento do eixo na produção agropecuária, do produtor para a indústria e a agroindústria.

As máquinas postas à disposição do agricultor pela primeira revolução industrial não eram tão sofisticadas que não pudessem ser consertadas pelo próprio agricultor ou pelo ferreiro da aldeia.

Agora, máquinas, sementes e matrizes, entrepostos, indústrias de beneficiamento e empresas de comercialização, assistência técnica, créditos e seguros e planejamento da produção, infraestrutura de transportes e bolsas de mercadorias, tudo é concebido e gerenciado nas grandes cidades.

Quase não há mais contato entre o produtor e o consumidor. Hipermercados ditam as regras para seus fornecedores. Os produtos agrícolas chegam ao consumidor final já industrializados.

A dieta alimentar não tem mais a ver com as produções locais e de estação. Isso não é sinal de diversificação, mas de empobrecimento da dieta alimentar, comandada exclusivamente por ditames de mercado.

*Dr. Roberto Naime, Colunista do Portal EcoDebate, é Doutor em Geologia Ambiental. Integrante do corpo Docente do Mestrado e Doutorado em Qualidade Ambiental da Universidade Feevale.

Imagem: Brasnorte, MT, Brasil: Árvore em meio a plantação de soja. (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

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