Com Temer, a questão indígena retrocede

Os poucos avanços da era petista estão sob risco e a ofensiva ruralista ameaça o estilo de vida de muitas etnias

por Murilo Matias – CartaCapital

Muito cacique para pouco índio. A tradicional expressão brasileira que sugere excesso de autoridades para um reduzido número de seguidores inverte-se na realidade vivenciada pelos índios na política nacional. 

Ausentes nos espaços de poder, os indígenas veem seus dramas se intensificarem, com a fragilização da Fundação Nacional do Índio (Funai), a ofensiva da bancada ruralista e o massacre de etnias impulsionado pela guerra de especuladores do agronegócio, percebida por muitos como a continuação de um genocídio.

Resta aos indígenas lutar pelas reservas, mas mesmo essa solução está longe do ideal. O próprio conceito de reserva, centro do conflito entre indígenas e agricultores, não atende às necessidades dos povos. “Lutamos pela demarcação, mas a prioridade das comunidades é a sustentabilidade. Não adianta a terra estar demarcada e desassistida”, diz o cacique Rafael Weere, liderança do PDT. “Vivíamos como nômades e agora estamos ilhados. Os recursos naturais diminuem e a população aumenta. O governo deveria nos garantir alternativas”, afirma.

Weere é neto de Mario Juruna, único índio deputado federal pelo Brasil. Parlamentar durante a ditadura, Juruna defendia causas populares, a principal, a volta da democracia. Filho da floresta, não seria filhote da ditadura. Respaldado por Leonel Brizola, que o levou ao Rio de Janeiro, instalando-o em Santa Teresa, elegeu-se pelo PDT em 1982 com mais de trinta mil votos.

“Quando os governantes souberam que fui eleito declararam que o povo não sabe votar porque havia eleito um exótico de tanga. Respondi que vinha pra incomodar”, disse Juruna em uma de suas históricas subidas à tribuna da Câmara.

A história do Xavante remete à invasão de sua tribo em Mato Grosso. Viu a chegada do branco, da carabina e da doença, conforme sua descrição. Para evitar o extermínio, buscou o convívio com aqueles que aportavam. A semelhança é com os anos 1500, quando da chegada dos portugueses ao Brasil, mas tratava-se dos idos de 1900.

A contínua repressão precisava ser denunciada e com isso a trajetória política do cacique se iniciou nos anos 70. Visto sempre com um gravador, cobrava atitudes da Funai, já à época contestada pelos indígenas. “Passei a trazer comigo um gravador como arma contra as promessas mentirosas das autoridades”, dizia.

Em repetidas ocasiões, Juruna exigiu a demissão de dirigentes da entidade. No seu mandato, terminado em 1986, votou a favor da emenda Dante de Oliveira, que previa voto direto para Presidência da República. Derrotado, restou escolher Tancredo Neves a Paulo Maluf, na eleição restrita ao colégio eleitoral.

Nos demais campos, alertou para o crescente desmatamento e apoiou greves ao lado de nomes da projeção de Abdias do Nascimento e Eduardo Suplicy, eleito vereador em São Paulo em outubro passado. “Graças à chegada de Juruna na Câmara descobrimos que temos muitas lições a aprender com os índios. Percebemos como é importante alguém externar as dores do seu povo e aquilo que constitui um sentimento nacional”, destacou Suplicy em 83.

Juruna trouxe visibilidade à causa. Criou a Comissão do Índio, atualmente sem atividades, para dar paridade às disputas que se colocavam diante do homem branco. “O índio autêntico é dono do Brasil. O branco está roubando a terra do índio, somos injustiçados e sacrificados. Vim aqui para defender a minha gente”, afirmava.

Três décadas de silêncio na democracia

Da atuação de Juruna já se vão 30 anos de ausência de indígenas no parlamento. Para rearticular seu movimento indígena, o PDT tem promovido encontros em comunidades. A tentativa pode refletir o alinhamento dos trabalhistas com uma bandeira partidária, como pode transformar-se em um nicho a ser explorado eleitoralmente.

Os Xavantes do Centro-Oeste foram os primeiros a participar. A fronteira agrícola da soja na região torna dramática a vida de etnias exprimidas por latifundiários do grão mais exportado pelo Brasil. Ali, uma das principais forças políticas é o ex-governador de Mato Grosso Blairo Maggi (PP), o “rei da soja” e atual ministro da Agricultura.

Os ruralistas são temidos pelos índios, ferrenhamente contrários à PEC 215, que dá ao Congresso a possibilidade de arbitrar sobre as demarcações, retirando a exclusividade da União. A medida foi aprovada pela Comissão da Demarcação de Terras Indígenas, mas ainda não avançou.

No texto da comissão, há uma menção a uma disputa no Rio Grande do Sul classificada como “manipulação criminosa do processo de demarcação de terras”. Os pequenos proprietários dizem ter a documentação da terra, reivindicada pelos indígenas. Como em boa parte do País, ambos estão no limbo criado pela inoperância do Executivo, que nunca resolveu as pendências atribuídas a ele.

“Para nós o Congresso decidir sobre as demarcações é a morte. Não somos inimigos dos pequenos agricultores, e sim do grandes plantadores de soja, dos criadores de gado”, afirma o cacique Weere.

A recriação, em agosto, da CPI da Funai e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, o Incra, não deve incluir as etnias no debate. Na primeira versão da CPI – encerrada sem relatório – estava o deputado Luis Carlos Heinze (PP-RS), conhecido por declarar que “quilombolas, índios e gays são tudo que não presta”.

A violência atual encontra marcas no passado. Recentemente, a Cruz Vermelha documentou crimes da ditadura relacionando trabalhos forçados, miséria e doenças que levaram povos à beira do extermínio. Em tempos de aparente democracia, a instabilidade na Funai demonstra o descaso com o tema.

João Pedro Gonçalves da Costa, que esteve 352 dias na presidência da Funai, foi exonerado em junho com o afastamento de Dilma Rousseff do Planalto. Desde então, a entidade não tem titular. A possibilidade de o militar Franklimberg de Freitas assumir e o risco de o órgão transformar-se  em feudo do Partido Social Cristão (PSC) mobilizam organizações contra os planos do governo.

A inclusão dos povos

Diante do quadro, políticas públicas da última década estão ameaçadas. A presença de índios em universidades a partir das cotas é uma das tentativas de amortizar as injustiças. O retorno dos estudantes às suas terras estabelece vínculos sólidos entre os indígenas e a sociedade.

A inclusão em programas federais com a presença de profissionais advindos do Mais Médicos, que passaram a conviver intensamente com as comunidades, juntamente com recursos do Bolsa Família, foram importantes avanços das gestões petistas. Nunca houve, entretanto, a elaboração de uma agenda específica para o segmento.

A inédita prioridade ao social, incluindo quilombolas e indígenas, possibilitou ações como o Carteira Índígena. Concebido em 2004, atendeu associações ao desenvolver projetos entre 10 mil e 50 mil reais – em Pernambuco uma etnia tornou-se a segunda produtora de arroz do estado após o programa.

Com a suspensão de novos contratos em 2009, a assistência técnica e extensão rural foram potencializadas. Em cinco anos, foram atendidas 17 mil famílias de 30 etnias para um orçamento de 104 milhões de reais.

“O projeto foi interrompido com o golpe. Estamos penando para garantir os recursos pactuados. Instituições estão em situação perigosa diante da falta de repasses”, enfatiza Luiz Fernando Machado, ex-coordenador de Política para Povos Indígenas do Ministério do Desenvolvimento Agrário, extinto com a saída de Dilma. “Desde o estado de exceção, não existe terra indígena em processo de demarcação”, afirma.

Para os indígenas, o governo Temer indica o desmonte de medidas que vinham funcionando. “O acesso às políticas sociais pelos índios contribui para que as comunidades possam sair de um cenário de vulnerabilidade. O ataque a esses direitos coloca em risco a vida dos povos, a exemplo da PEC que congela por 20 anos os investimentos em áreas sociais”, alerta o indígena Weibe Tapeba, eleito vereador pelo PT em Caucaia, a segunda maior cidade do Ceará.

Como resolver a situação?

O caso de Tabepa é exceção em um cenário de falta de representação política, mas a disputa eleitoral dificilmente apresenta candidatos indígenas. Sobram relatos de compra de votos, troca de apoio por cestas básicas e promessas infundadas na véspera de eleições.

Ultrapassando obstáculos dessa ordem, o professor Isaac Pyânko (PMDB) tornou-se o primeiro prefeito índio do Acre, em Marechal Thaumaturgo. No Brasil, o blog De Olho nos Ruralistas aponta a eleição de mais de cem vereadores indígenas espalhados pelas cinco regiões. PSDB e PT foram os que mais elegeram representantes.

“Não acredito ser possível a inserção de indígenas no Congresso nos padrões atuais. O caminho é a reforma política”, afirma Rodrigo Arajeju, diretor do documentário Índios no Poder. “Na Colômbia estabeleceram duas cadeiras na Câmara para indígenas, votados pelas populações dos Povos. Proposta similar foi apresentada pelo deputado Nilmário Miranda, mas não decolou”, diz.

Outra referência está na Bolívia, nação de maioria indígena que somente em 2006 elegeu o primeiro índio como presidente. Evo Morales nacionalizou setores da economia e implementou uma progressiva reforma agrária. A mudança, que renomeou o país como o Estado Plurinacional da Bolívia, em reconhecimento aos povos originários, traduz a direção cultural da gestão há dez anos no poder. “Nosso povo, muitas vezes, elege os não-indígenas. Participamos das eleições, mas nunca olham para nós”, diz Weere.

Foto: Índios protestam em frente ao STF, em 1º de dezembro

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