Um rastro vermelho de tinta marcou a Esplanada dos Ministérios e chamou atenção pela violência cometida contra os povos indígenas no Brasil
Por Ascom – Mobilização Nacional Indígena
Na manhã de quinta-feira (26), os cerca de 3 mil indígenas acampados, desde o início da semana, saíram em marcha e ocuparam o Eixo Monumental e a Esplanada dos Ministérios, em Brasília. Reivindicando a retomada dos processos de demarcação de Terras Indígenas, delegações de todo o país fizeram um ato simbólico: a manifestação deixou manchado de vermelho o caminho, simbolizando o sangue das lideranças indígenas derramado no genocídio histórico cometido contra essas populações.
Os mais de 100 povos presentes no Acampamento Terra Livre (ATL) 2018 trouxeram reivindicações de suas comunidades, vindas de todas as regiões do Brasil. No final da caminhada, os indígenas protocolaram um documento no Ministério da Justiça (MJ), no qual repudiam a paralisação das demarcações de terra durante o governo Temer. O documento aponta o Parecer 001/2017 da AGU e a tese do Marco Temporal como instrumentos inconstitucionais utilizados para negar os direitos territoriais dos povos indígenas, duramente conquistados na Constituição de 1988. Os indígenas foram recebidos no MJ pela Polícia Federal e somente após uma longa negociação permitiram o protocolo do documento levado em nome da marcha.
“O parecer da AGU teve participação do Ministério da Justiça, da Casa Civil e da Funai também. No ato de ontem, na AGU, a gente pediu e exigiu que seja suspenso até que esse grupo se reúna para poder discutir o melhor encaminhamento. A gente não pode deixar os nossos parentes morrendo nas bases”, diz Kretã Kaingang sobre a necessidade de revogação do parecer oficializado pelo governo Temer, que, na prática, inviabiliza as demarcações de Terras Indígenas no Brasil.
Vagner Krahô Kanela, da Terra Indígena Mata Alagada (TO), explica a razão da tese ruralista do marco temporal ser uma ameaça para os indígenas: “é mais uma invenção para barrar as demarcações em curso, rever outras e desencorajar as novas demandas. No Tocantins, e no país todo, muitos povos foram expulsos à força, na bala mesmo. Então se ele não for derrotado, o governo brasileiro vai negar esse genocídio e praticar um novo”.
Documento protocolado
O documento protocolado no MJ denuncia, ainda, o loteamento de cargos na Fundação Nacional do Índio (Funai), por meio do qual o governo Temer atende aos interesses da bancada ruralista no Congresso. Para o movimento, a paralisação das demarcações, somada ao sucateamento do órgão indigenista, tem aumentado a violência contra lideranças indígenas, muitas delas assassinadas por lutarem pela demarcação de seus territórios tradicionais.
O sucateamento da Funai não é um assunto novo, mas conforme explica Mário Nicácio, da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), nos últimos dois anos a situação motiva “um avanço descontrolado de invasões em terras indígenas. Sem fiscalização, os madeireiros e grileiros se sentem motivados”.
Na Terra Indígena Karipuna (RO), em fevereiro deste ano, criminosos não identificados atearam fogo no Posto de Vigilância da Funai, a apenas 12 quilômetros da aldeia Panorama, abandonado por falta de recursos. Nesta terra, a grilagem é tamanha que o Ministério Público Federal (MPF) declarou o quadro como de “genocídio iminente” e o caso foi denunciado por Adriano Karipuna durante a 17ª Sessão do Fórum Permanente sobre Assuntos Indígenas das Nações Unidas, em Nova York, em 18 de abril.
Com o congelamento dos gastos primários pelos próximos 18 anos, um estudo do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) aponta que ao fim deste período “teremos, na melhor das hipóteses, um orçamento equivalente ao valor, em termos reais, de 30 anos atrás”. Associada a esta medida do governo Temer, a presença ruralista na presidência e cargos de direção da Funai. “Tem gente dos ruralistas na Presidência da Funai e em diretorias estratégicas. Sem dúvida isso não é em nosso benefício, mas dos invasores”, diz Mário Nicacio.
Marciano Rodrigues, do povo Guarani Nhandeva da aldeia Yvy Porã, no norte do Paraná, e membro da coordenação da Arpinsul, conta como isso afeta sua comunidade: “Estamos há 12 anos esperando que o processo avance. Hoje são mais de 30 famílias vivendo em apenas três alqueires”.
O cacique Juarez Munduruku trouxe para a marcha do ATL 2018 reivindicações e fortes dores nas costas. Promete descansar algumas semanas quando regressar à Terra Indígena Sawré Muybu (PA), mas sob o sol da Esplanada dos Ministérios reflete: “eu tava pensando que aqui no Ministério da Justiça se parece com uma história da época do Karosakaybu”.
“Quando Karosakaybu dividiu os Munduruku em vários animais, metade transformou em peixe, outra em porco, em pássaros. Karosakaybu começou a transformar também as árvores porque tem vida nelas igual tem na gente. Se você mata elas, morre e nunca mais volta. Se um madeireiro mata um cacique, uma história se acaba”, diz.
Os Munduruku são como as árvores, conclui cacique Juarez. “Nós somos as árvores fortes, como os ipês, um destino só para o que quer o governo, os ruralistas, os madeireiros, os garimpeiros. Somos árvores fortes, as mais antigas. Sempre estivemos aqui, não chegamos do mar não”, afirma o Munduruku.
No Médio Tapajós, lembra Alessandra Munduruku, há projetos para 43 usinas hidrelétricas (duas foram feitas) e 30 portos de soja, além de garimpos ilegais, retirada de madeira e palmito. “Em 19 de abril de 2016 publicaram o Relatório Circunstanciado, mas parou nisso. As mulheres estão preocupadas com o futuro de seus filhos”, destaca. Na região estão as terras Sawre Apompu, Juybu e Muybu (a única com Relatório Circunstanciado publicado).
Para a indígena, medidas como o Parecer 001 pretendem legalizar a invasão “dos territórios de vida para mudar para territórios de morte, com a derrubada de árvores, plantação de soja e milho transgênico”, afirma. Parecer este que se associa a falta de consulta prévia conforme determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Os Munduruku seguem em luta na defesa da autodemarcação que fizeram em protesto pela morosidade da demarcação inacabada: “O governo sabe qual é o mapa da vida Munduruku”.
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Fotos: Mobilização Nacional Indígena