“Violência e desnutrição”: os impactos do garimpo na saúde de indígenas e trabalhadores

Debate promovido pela Fiocruz busca saídas para a tragédia do garimpo ilegal exemplificada na situação do povo Yanomami

Marcelo Ferreira, Brasil de Fato

A tragédia humanitária vivida pelo povo Yanomami por conta dos impactos do garimpo ilegal em suas terras foi um dos destaques nos debates do primeiro dia do Fórum Social Mundial, que iniciou ontem (23), em Porto Alegre. Organizada pela Fiocruz, a atividade reuniu trabalhadores e pesquisadores sobre a temática, situação que não aflige apenas os Yanomamis e não é recente, mas sim um problema histórico brasileiro, agravado nos últimos anos de governo Bolsonaro.

“Este final de semana ficamos estarrecidos com a talvez maior tragédia humana que a gente possa ter tido notícia. Só lembro de ter visto isso em fotografias do holocausto, populações inteiras em situação de completa violência e desnutrição”, comentou Hermano Albuquerque de Castro, da vice-presidência de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde da Fiocruz, na abertura da mesa “Impactos na Saúde Ambiental, Saúde do Trabalhador e Saúde Indígena decorrentes do Garimpo na região Amazônica”.

Ao lado de Castro, coordenou também a mesa Maria Juliana Moura Corrêa, do Departamento de Vigilância em Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador da Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente do Ministério da Saúde. Ela destacou a gravidade da “omissão do Estado em relação às populações indígenas e outras populações, nos últimos quatro anos no Brasil, uma grave situação de emergência sanitária e desumanidade com os indígenas do nosso país”.

A atividade já estava planejada mesmo antes do caso do povo Yanomami ganhar as manchetes, visto que a contaminação por metais pesados em territórios indígenas é uma realidade de longa data. Segundo os coordenadores da atividade, o objetivo do debate é pensar em conjunto e democraticamente a respeito da estruturação de uma política para os povos que mantenha sua soberania.

Garimpo acaba com modo de vida tradicional

A partir de dados da Fiocruz, o primeiro convidado a falar, Diogo Rocha, integrante do Grupo Temático de Saúde e Ambiente da Abrasco e do Núcleo Ecologias, Epistemologias e Promoção Emancipatória da Saúde, alertou que o problema do uso do mercúrio no garimpo traz impactos ambientais significativos, porém é pouco debatido pela sociedade.

“Ficou claro o grau de vulnerabilização dessas populações, com as notícias neste final de semana, que afeta não só o sistema neurológico mas também traz uma rede de impactos relacionados ao ambiente onde as pessoas vivem. Contamina rio, terra e peixes – que é principal via de contaminação hoje na Amazônia por ser fonte de proteína indígena e ribeirinha”, afirmou.

Ele chamou a atenção para o fato do garimpo ser muito maior do que o garimpeiro. “Arrecada bilhões de reais, tem uma rede de pessoas poderosas por trás, não é mais um pequeno grupo de garimpeiros, mas uma rede complexas de empresários e políticos, pessoas articuladas com o setor financeiro internacional para que ouro extraído da Amazônia chegue nos circuitos internacionais e se transforme em dinheiro e recursos”, explicou.

Segundo Rocha, o avanço do garimpo vai tornando inviável a subsistência dos povos tradicionais, levando a grande insegurança alimentar. Isso faz com que essas populações acabem tendo que se engajar com o garimpo para conseguir sobreviver. “Essa é grande tragédia que estamos vivendo na Amazônia hoje, muitas vezes o próprio garimpo destrói o território e se torna alternativa para as populações que lá vivem porque não conseguem mais viver daquilo que garantia no passado.”

Defendeu que o Estado aja para além das consequências imediatas, com a construção de um rol políticas públicas, econômicas, de fiscalização ambiental, educacional e de promoção de saúde, para enfrentar as várias dimensões do problema. Por exemplo promovendo a agricultura agroecológica dentro dos territórios indígenas.

“Nunca descuidar dos sonhos”

Lembrou, contudo, que as ações devem levar em conta os anseios das comunidades envolvidas, trazendo o caso de um trabalho realizado junto ao povo Munduruku, em que constatou-se que os anseios centravam-se na produção de alimentos e criação de animais, bem como geração de renda e acesso de jovens à universidade.

“Nunca descuidar dos sonhos, eles apresentam sempre a área da floresta, do rio. É importante conhecer a realidade e aprender com eles a sonhar um outro mundo possível, aprender a sonhar junto com essas populações e como podemos, enquanto governo, ajudar a realizar esses sonhos”, finalizou.

Violência chega nos territórios através do garimpo

A engenheira ambiental da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai/MS), Camila Rabello Amui, trouxe dados do Ministério da Saúde sobre o trabalho de cuidado em saúde junto aos povos indígenas. Segundo ela, a Sesai organiza o trabalho em 34 distritos indígenas no Brasil, cuidando da saúde de mais de 700 mil indígenas. Com o avanço do garimpo ilegal, os problemas se multiplicam.

“O garimpo traz impactos que vão desde mudanças culturais, como acesso a coisas que antes não tinham e influenciam negativamente, doenças que antes não existentes no território, violências diversas como conflitos armados, violência sexual, casos extremamente graves que somente agora estão sendo tratados com a devida importância que sempre deveriam ser tratados”, afirmou.

Trabalhador da saúde indígena “enxuga gelo”

Há também a dificuldade do trabalhador da saúde indígena em atuar nos territórios, o que casa muita rotatividade devido à falta de segurança. “Nos últimos anos temos casos de postos de saúde queimados, profissionais que atuam em zonas de conflito sendo ameaçados e tendo que sair correndo muitas vezes, deficiência a água potável a energia elétrica”, exemplificou.

Conforme Camila, o problema vem sendo denunciado por indígenas há muitos anos e “a saúde indígena acaba enxugando gelo” porque o real problema só pode ser resolvido através da remoção desses garimpeiros ilegais. Além disso, lembrou que os indígenas também sofrem por conta de outros empreendimentos, como a questão hidrelétrica e o desmatamento ilegal.

Para a engenheira ambiental, a perspectiva é de que a situação melhore com o governo Lula, pois ações estão sendo construídas em conjunto com diferentes órgãos. “A proteção dos povos indígenas dentro de um contexto de emergência climática é fundamental, não existe futuro sem sua proteção. A demarcação de terras, a remoção dos garimpos e questões que envolvem a preservação da vida dessa população tem que ser prioridade”, finalizou.

Mercúrio causa graves problemas de saúde

O médico especialista em Saúde do Trabalhador do Centro de Referência em Saúde do Trabalhador de Campinas (Cerest/Campinas) e integrante do Grupo Temático de Saúde do Trabalhador da Abrasco, Marco Peres, apresentou os efeitos do mercúrio na saúde do ser humano. O produto é usado para extrair o ouro das rochas e acaba contaminando o meio ambiente.

Ao evaporar, fica na atmosfera e quando respirado traz grandes prejuízos. Ou se acumula no solo e nos rios, contaminando os peixes, que são consumidos por populações humanas. “Peixes pequenos comem o plâncton que metabolizou o mercúrio concentrado no leito dos rios. Peixes maiores comem o peixe pequeno e, na medida que sobe a cadeia alimentar, o mercúrio vai se acumulando. Peixes maiores tem acumulo maior desse mercúrio orgânico do plâncton. Quando o ser humano come o peixe, é alta a concentração”, explicou.

Entre os diversos impactos estão: dor de cabeça, tontura, fraqueza, reações psicóticas, problemas de pulmão, arritmia cardíaca, diarreia, problemas de pele, nos rins e nos olhos. O mercúrio também passa da mãe para o feto, no útero, e pode levar a parto prematuro e outros problemas. “Podemos estar gerando uma geração de pessoas com déficit cognitivo”, alertou.

“Ações criminosas e omissões do governo anterior”

A representante do Movimento pela Soberania Popular na Mineração e Fórum Sindical e Popular de Saúde e Segurança, Martha de Freitas, representou os movimentos sociais e sindicais no debate. Ela destacou que a mineração é protagonista em crimes, seja por quem trabalha na floresta ou por quem se beneficia com a extração, com a compra do ouro e mesmo com a venda do mercúrio, que é ilegal.

“A mineração brasileira tem ficado mais nas páginas policiais do que nas páginas econômicas, aparece como atividade criminosa, trabalho escravo, destruição ambiental, invasão de terras e lavagem de dinheiro”, afirmou. “O garimpo ilegal destrói a natureza e é ligado ao crime organizado, não paga imposto e mata”, complementou, pontuando que a mineração mata 10 vezes mais que qualquer outra atividade econômica no país.

Lembrou que a situação dos yanomamis já vinham sendo denunciadas e que “as ações criminosas e omissões do governo anterior” obriga a pensar em que modelo de mineração o país quer. “Nesse desgoverno que passou, a Associação Nacional de Mineração autorizou 59 requerimentos minerários em terras indígenas, algo que é proibido pela constituição, então há também crimes cometidos por entes públicos que precisam ser investigados, que destruíram órgãos de fiscalização ou impediram de cumprir seu papel legal.”

Martha defendeu que as políticas públicas devem passar por ampla discussão com comunidades, respeitando seus saberes e modos de vida. “Somente terá sucesso se o dialogo for junto com a população para a qual estamos criando uma política pública, tem que ser construídas com a participação social”, finalizou.

Na sequência, o debate foi aberto para a contribuição dos presentes. Assista à mesa, na íntegra:

Imagem: Mesa “Impactos na Saúde Ambiental, Saúde do Trabalhador e Saúde Indígena decorrentes do Garimpo na região Amazônica” foi transmitida pela TV Assembleia – Reprodução/TV ALRS

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