O que são Sistemas Alimentares?

Entrevista com a coordenadora do OBHA, Observatório Brasileiro de Hábitos Alimentares da Fiocruz, Denise Oliveira e Silva

Por Mateus Quevedo, no MPA

Para a pesquisadora em Saúde Pública, Denise de Oliveira e Silva, que coordena o Observatório Brasileiro de Hábitos Alimentares da Fiocruz (Obha), para melhor compreender o que são Sistemas Alimentares, é necessário ter a ideia de que são processos, ciclos interligados. “Quando a gente fala de sistemas elementares, é preciso entender como uma cadeia de relações, que vão desde o processo de conceber em si o produto que você vai desenvolver, no caso, o produto alimentar até o consumo final”. Ela chama atenção para o ato de consumo, que pode ser entendido do ponto de vista da aquisição ou então do ato de comer.

Para a pesquisadora, grosso modo, o sistema alimentar é uma cadeia de processos que atualmente tem a ver com o que o país produz de alimentos que vão servir para consumo. “Aí vamos pegar a ideia de um consumo que gera renda e especificamente essa geração de renda, ela tem a ver com aspectos econômicos, então você tem sistemas que estão eminentemente voltados a commodities”. Segundo Denise, o sistema alimentar hegemônico no Brasil é o de produção de commodities, matérias-primas como grãos de soja, milho, café, boi gordo (carne).

Assim, o sistema alimentar que tem mais força no país é aquele em que a “perspectiva (é) que no final ele vai gerar commodities, que tem o seu impacto, obviamente, na economia”. Ou seja, o objetivo final deste sistema alimentar baseado em commodities não é o ato de comer, alimentar, mas sim de vender. Segundo Denise, existem outros sistemas, que podem estar ligados a este ou não, em que o objetivo é produzir alimentos para o consumo da população.

“No Brasil, o que a gente tem é uma distinção importante de sistemas alimentares que estão majoritariamente voltados para a produção de commodities influenciando a produção de outros alimentos, interferindo nos sistemas alimentares que são mais curtos de base familiar.” Denise chama atenção para este último conceito. “Se a gente for pensar a palavra familiar, quase todos os grandes grupos de produção de alimentos, eles são famílias rurais, a questão é que nem todo o sistema de base familiar produz commodities”.

Para explicar melhor, ela se utiliza de outros sistemas alimentares mundiais, como os sistemas alimentares europeus. “São basicamente sistemas que têm como a sua construção cadeias produtivas familiares, que vão atender a produção de alimentos e a disponibilidade àquele povo e vão fazer relações comerciais com outros, mas é muito diferente, por exemplo, das commodities, porque aí as commodities precisam ser entendidas como produção que visa eminentemente a balança comercial, sobretudo na produção de animais, de gado”.

Para a coordenadora do OBHA, precisamos desconstruir a ideia de que o Brasil é um celeiro, obviamente que Denise aponta para a importância da nossa dimensão territorial e o volume de terras agricultáveis, mas “estamos produzindo, efetivamente, alimentos para animais”. “Os sistemas alimentares hoje no Brasil fazem parte de uma lógica que nós chamamos de sistemas alimentares hegemônicos e predatórios, porque eles, para se desenvolverem, precisam frear ou fazer desaparecer os sistemas curtos que estão, por exemplo, baseados em famílias, em populações tradicionais.”

E para transformar os sistemas alimentares?

Quando perguntada como poderemos fazer uma transição de sistemas alimentares, Denise apresenta duas questões essenciais para avançar nesse debate. A primeira tem a ver com o reconhecimento dos sistemas alimentares. O que, para ela, não é algo simples. “Os hegemônicos hoje, estão na mão de grupos financeiros, então eles perderam o contorno de serem sistemas nacionais, eles não são sistemas nacionais, eles são sistemas que têm a lógica de grupos financeiros”, aponta.

“A segunda, do meu ponto de vista, é entender que qualquer alteração não pode ser vista só no contexto econômico brasileiro, tem que ser vista no contexto econômico global, porque o Brasil é peça importante para esses grupos que hoje tem o país como produtora de commodities, inclusive pelo uso abusivo desses agrotóxicos, que são feitos no nosso território e não no deles”.

Para ela, qualquer mudança que se faça não pode ser somente do ponto de vista do Brasil, mas de forma dialógica com o contexto internacional “e esse diálogo é realmente muito difícil, porque existem interesses econômicos mundiais sobre esse tipo de produção. Então, assim, esse lugar do Brasil produzir commodities, depauperando a natureza, fazendo com que algumas culturas desapareçam para ter espaço para a produção de gado, soja, milho, que tem eminentemente a perspectiva de comércio internacional, é um ponto que precisa ser visto nesta perspectiva nacional e internacional”.

Um primeiro passo, segundo a pesquisadora, é de fortalecer estratégias que já estão sendo feitas, como o Programa de Aquisição de Alimentos. “Ele é um programa que nos últimos 4 anos perdeu força. Hoje ele está de novo, retomando, e é um programa que é conhecido como um potencial enorme pela forma com que ele é desenhado, de incentivos, de pacotes financeiros, de investimentos para esses grupos que são produtores familiares, sendo utilizado para alimentação escolar, para hospitais, instituições”.

Mas somente isto não basta, para ela, é necessário mudar a forma como a sociedade brasileira pensa a alimentação também. “É a sociedade brasileira também precisa entender o quanto que a produção que é globalizada é lesiva. Então, trabalhar, consumindo alimentos que são sazonais, trazer incentivos à biomas locais, trazer incentivo a processos de produção de base familiar que sejam sistemas curtos”. Ou seja, políticas públicas devem andar juntas com o esclarecimento para um consumo consciente da alimentação dos produtos.

É possível soberania alimentar para o país?

Como os sistemas alimentares hegemônicos hoje no país, são os sistemas do agronegócio, e o objetivo final é o mercado internacional, para Denise soberania “tem a ver com a capacidade que o país tem de frear essa visão voraz que esses sistemas mais hegemônicos têm, que o agronegócio tem, de se apropriar até de um discurso de produção de alimentos, que utilizaram como base de criação desse sistema há um século, mantendo estilos de produção que são muito lesivos à natureza”.

Ela dá o exemplo da produção de feijão no estado de Goiás. “O Goiás era um estado em que produzia e era conhecido como um estado de produção de feijão, a cada ano foi-se perdendo determinada variedade de feijão e quando você vai ver as razões, elas estão relacionadas, sobretudo à perda de terras, sejam terras quilombolas, sejam terras de pequenos agricultores, para que essas extensões sejam usadas para soja e gado”. Segundo ela, isso interfere na soberania, “a soberania dos povos tradicionais e a soberania de uma maneira geral, da população brasileira”. Então o acesso à terra é central para a garantia da soberania alimentar do povo brasileiro.

Imagem: Denise de Oliveira e Silva. Foto: Canal Supren

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