No Cimi
Aos povos indígenas no Brasil, o Estado e suas esferas de poder parecem um monstrengo abominável.
Menos de um mês após a entrega do relatório que tenta criminalizar o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) no estado, a Assembleia Legislativa do Mato Grosso do Sul apresentou o relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Genocídio, isentando o estado de qualquer responsabilidade sobre as violências sofridas por indígenas no contexto do conflito fundiário na região.
A tese central da CPI do Cimi foi acusar a entidade de manipular indígenas para ocuparem terras – ao mesmo tempo em que atribuía uma absoluta ausência da autonomia dos povos indígenas em suas movimentações na luta pela terra. O argumento não é uma novidade: na carta de 1500 ao rei português, Pero Vaz de Caminha descrevia os indígenas no Brasil como gente a ser domesticada, “argila moldável, uma tábula rasa, uma página em branco”.
A afirmativa da CPI do Genocídio é ainda mais trágica: os indígenas não só são mentecaptos, segundo os deputados, mas também são os próprios responsáveis pela aniquilação de suas gerações, presentes e futuras.
Para eliminar qualquer dúvida, de antemão, proibiu-se o uso da expressão “genocídio” durante as oitivas. O próprio título da CPI foi alterado, num acordo bizarro exigido pelos parlamentares ruralistas – em essência, os mesmos da CPI do Cimi, representando os interesses do agronegócio da região – ao presidente da Comissão, João Grandão (PT), sob ameaça de inviabilizar a investigação, prenunciando as manobras que viriam, para tornar o mais asséptico possível a sistematização dos dados coletados nos depoimentos.
Os deputados sequer se envergonharam de proibir os indígenas de falarem em seus idiomas maternos. O trato com os indígenas remontava interrogatórios toscos de policiais de cinema. Oitivas importantes, como a dos procuradores do Ministério Público Federal (MPF) foram implodidas: os deputados desinteressados em ouvi-los (posto os procuradores desconstruiriam as principais teses anti-indígenas da CPI) simplesmente não se fizeram presentes, e a sessão foi cancelada. Estes depoimentos materializariam as ações e omissões do Estado de Mato Grosso do Sul, tipificando assim a situação dos povos indígenas como genocídio.
Ignorar o MPF é um movimento importante, quando se trata de invisibilizar o que os indígenas têm a dizer. Quando era vice-procuradora geral da Republica, Déborah Duprat visitou a região de Dourados afirmou que a questão Guarani e Kaiowa, ali, apresentava-se como “talvez a maior tragédia conhecida na questão indígena em todo o mundo”.
Ainda, as últimas empreitadas das lideranças do Conselho Aty Guasu em fóruns da Organização das Nações Unidas (ONU) tem aproximado cada vez mais o entendimento de que a crise humanitária vivida pelos Guarani e Kaiowa se associa ao conceito de genocídio estabelecido pela Convenção de Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio da ONU, de 1951 (sancionada no Brasil pela Lei 2889/56). Não é à toa que o Brasil tem recebido visitas sistemáticas de relatores deste organismo internacional sobre a questão indígena no Mato Grosso do Sul.
Mas, afinal, o que dizer de tantos relatos apresentados pelos indígenas na CPI? Dorvalino Rocha, Marcos Veron, Oziel Gabriel, Rolindo Vera, Genivaldo Vera, Dorival Benites, Denilson Barbosa, Simeão, Nízio Gomes, Xurite e Oritz Lopes, entre tantos outros -, estes morreram de quê? As dezenas de famílias que denunciaram os ataques de jagunços contratados por fazendeiros estão simplesmente mentindo?
A falta de comida, para os deputados, parece uma abstração. A falta de terra para o plantio – afinal, faltam-lhes as mesmas terras originárias que foram tituladas pelo próprio estado em algum momento da história -, soa o oposto a eles. A água podre impregnada de agrotóxicos que eles bebem, ora, não instalam filtros porque não querem! As escolas onde só se fala português, o racismo institucional é cotidiano, estes, estão na cabeça complexada do indígena com baixa auto-estima. Um ônibus escolar incendiado criminosamente: talvez não tenha acontecido.
E, no entanto, tudo isso aconteceu e acontece. E acontece também que os poucos que denunciam estas atrocidades, que sugerem a existência de um genocídio permanente e prolongado contra as populações indígenas, estes estão brutalmente sofrendo a tentativa de serem silenciados pelo poder econômico cuja personalidade, no universo rural, é das mais brutas. Não tolera o outro.
Falamos da lei de genocídio, aprovada no Brasil na década de 50 – lei, diga-se, que a CPI sequer considerou utilizar para a apuração técnica de fatos.. Esta lei tipifica genocídio da seguinte forma: a) matar membros do grupo; b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo; c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial; d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo.
Não é muito afirmar que, através deste relatório, os gerentes do capitalismo na região tentam formalizar sua própria inocência, forjada na condução autoritária e racista das oitivas e na anti-sistematização dos dados exaustivamente apresentados ao longo da investigação por lideranças indígenas, pesquisadores, técnicos, indigenistas e servidores públicos.
CPI do Cimi, CPI do Genocídio e CPI da Funai/Incra – todas atulhadas de legisladores ruralistas – têm figurado como uma arena espetacular de aniquilação de direitos e de de uma investida pelo desmonte do movimento indígena em luta, projetando liberar territórios tradicionais para a eterna empreitada do capital na expansão de suas fronteiras. Tudo porque, nestes territórios, justamente, vive-se um anticapitalismo inato, uma vontade e prática outras de produzir e reproduzir a vida. Outra ousadia não tolerada por muitos dos brutos donos do campo.
A aprovação deste relatório, nestes termos, é um crime em cima de um crime. Mata-se os índios, e esconde-se o pau: estes, que os cachorros cacem, tentando descobrir onde está enterrado. Enquanto isso, a farsa, a nojenta farsa, essa continua.
—
Foto: ASCOM MPF MS