Campanha Guardiões dos Sabores convida a população a posicionar-se positivamente em relação à alimentação adequada e saudável, à agricultura familiar e de povos e comunidades tradicionais
No Dia Mundial da Alimentação, 16 de outubro, a FASE lançou a campanha Guardiões dos Sabores. O objetivo é engajar o público e convidá-lo a posicionar-se positivamente em relação à alimentação adequada e saudável, à agricultura familiar e de povos e comunidades tradicionais, à produção de alimentos agroecológicos, ao meio ambiente e à biodiversidade.
A campanha estimula as pessoas a escolherem um dos biomas brasileiros, criar uma receita e enviar para a FASE. As melhores e mais criativas serão publicadas no livro “Um prato cheio de ideias”, que deve ser lançado no primeiro semestre de 2017.
Em entrevista à Rede Mobilizadores¹, Maria Emília Pacheco, integrante do Grupo Nacional de Assessoria (GNA) da FASE, explica os objetivos da campanha e fala sobre diversos aspectos que impactam diretamente nossa soberania alimentar e nutricional.
Maria Emília atua também na presidência do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), integra o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN) e a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).
Quais os objetivos da campanha Guardiões dos Sabores lançada pela FASE?
A FASE pretende contribuir para a mobilização da sociedade no sentido da promoção de uma alimentação adequada e saudável. O sabor nos remete a falar de hábitos alimentares, sobre quem produz o alimento. Para nós, é indissociável a qualidade do alimento daquele que o produz. Falar de sabores é falar da defesa dos agricultores familiares, das comunidades tradicionais, dos povos indígenas, que nos trazem um legado histórico, uma vez que são eles que conservam as plantas, as sementes e aí está a riqueza da nossa diversidade, biológica e social.
E quando falamos em sabores estamos também nos remetendo a lembranças e chamando a atenção para o fato de que, hoje, no país, cresce a alimentação cada vez mais homogênea, baseada nos produtos alimentícios ultraprocessados, em alimentos contaminados por agrotóxicos. Esperamos que falar de sabores nos leve a uma análise crítica do que estamos ou não estamos comendo.
No que consiste a campanha?
As ações são desenvolvidas por meio das redes sociais. Lançamos convites para que as pessoas assistam a vídeos, as convidamos a rememorar receitas e falar de algum alimento que reencontraram na vida; isso porque há um processo de redução de espécies e de variedades de alimentos, além de mudanças nos nossos hábitos alimentares.
A campanha deve durar até fevereiro e, ao final, a ideia é editar o livro “Um prato cheio de histórias”, reunindo as melhores receitas, a ser lançado, provavelmente, no primeiro semestre de 2017.
O que motivou a FASE a lançar essa campanha?
A FASE atua nas cidades e em comunidades rurais, apoiando os agricultores familiares na criação de pequenas cooperativas e associações. Ao mesmo tempo, participamos de conselhos de segurança alimentar e nutricional, no plano municipal, estadual e nacional. E como a FASE é uma instituição de caráter educativo, entendemos que era importante divulgar essas mensagens e trazer essas reflexões, tendo dar um seguimento aquilo que já é nossa prática nos territórios e que reflete nossa inserção nos debates estaduais e nacionais.
Nossa inspiração veio também da movimentação que nos levou até à 5ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, em 2015, cujo lema foi “comida de verdade”. Achamos que era uma oportunidade de fazermos ecoar essa visão, especialmente nesse momento da nossa história. Estamos muito críticos aos retrocessos, ao desmonte de políticas públicas. Não podemos perder de vista que o Brasil recentemente saiu do Mapa da Fome, mas dependendo dos caminhos que o país continuar seguindo, o risco de voltarmos a ele é grande.
Ao mesmo tempo, se a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 241 for aprovada, programas importantes podem sofrer uma descontinuidade. Entre eles estão o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), que é de extrema importância, porque ajuda a reavivar os saberes, sabores, uma vez que determina que pelo menos 30% dos recursos destinados à compra de merenda escolar sejam destinados à aquisição dos produtos da agricultura familiar. Outro é o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que contribuiu para fortalecer o tecido associativo em vários locais e trouxe uma possibilidade grande de as mulheres se reunirem para produzirem e venderem o alimento no mercado institucional.
Chamar atenção para os sabores dos alimentos é ao mesmo tempo chamar a atenção para a necessidade de que o Estado cumpra sua obrigação de garantir o direito humano a uma alimentação adequada e saudável. E uma forma de garantir isso é dar apoio à agricultura familiar que vem produzindo o alimento que comemos.
Por que muitos alimentos e preparos tradicionais estão se perdendo no Brasil?
Há uma conjugação de fatores. Primeiro temos um processo de devastação, degradação célere do meio ambiente, com a expansão dos monocultivos, com a contaminação da água e do solo com os agrotóxicos. Já há quem diga que o Cerrado como bioma não exista mais, tal é o grau de degradação ambiental. E é um bioma que tem uma riqueza de frutos muito grande. Nosso modelo de desenvolvimento agrícola impacta negativamente a biodiversidade.
Nós temos também muito pouco apoio para o trabalho histórico que os agricultores familiares realizam de conservação e troca de sementes, que ajuda a manter nossa diversidade agrícola. Tememos que as mudanças na legislação no Brasil produzam um cerco cada vez maior aos agricultores familiares. Eles têm o direito de guardar, trocar e vender sementes, mas há propostas em debate hoje no Congresso Nacional que podem cercear esses direitos, e isso acaba incidindo também sobre nossa variedade alimentar.
Estamos reduzindo o consumo de alimentos que são tradicionais na nossa dieta como o feijão, e já está havendo uma diminuição de área plantada , o que é grave. Atualmente, estamos importando essa leguminosa. Por outro lado, a produção de arroz, hoje, está mais concentrada no Rio Grande do Sul, o que é um risco para nossa soberania alimentar, pois um evento climático extremo que ocorra na região poderá nos deixar sem acesso a esse alimento. Em paralelo, há um processo de avanço da industrialização de alimentos, da disseminação de produtos alimentícios ultraprocessados, que alteram nossos hábitos alimentares. Tudo isso associado à publicidade, boa parte dela dirigida a crianças.
Portanto, quando falamos dos sabores, estamos abrindo a porta para falar de qualidade, de alimentação adequada e saudável, do direito humano à alimentação, das políticas necessárias para assegurar essa alimentação. É assustador o crescimento no Brasil e em outros países de doenças como diabetes e pressão alta, que estão muito ligadas a alterações nos padrões alimentares.
Quais os maiores desafios para se garantir segurança alimentar e nutricional atualmente?
Precisamos de vários tipos de políticas. É necessário que a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo) se afirme; que tenhamos assistência técnica que valorize os saberes dos agricultores familiares; um crédito adequado aos nossos sistemas alimentares, e não um crédito por produto.
Precisamos também de uma política de abastecimento. O país precisar ter um estoque estratégico de alimentos, equipamentos públicos que assegurem o acesso em condições adequadas para a população, redes de restaurantes comunitários, bancos de alimentos, expansão das redes de feiras agroecológicas, que vão ajudar a reduzir os chamados desertos alimentares, especialmente em bairros populares, onde não há condições de acesso e disponibilidade de alimentos de qualidade. Há um processo de concentração não só na produção, como no consumo. Precisamos garantir um abastecimento mais descentralizado e com alimentos de qualidade, in natura.
Precisamos, ainda, de um programa nacional de redução do uso de agrotóxicos, de um programa de prevenção da obesidade, de valorização do salário mínimo, de empregos, assim como a garantia do direito à terra. A reforma agrária continua mais atual do que nunca. Precisamos de uma mudança de prioridades. O Brasil hoje produz fundamentalmente commodities para exportação, quando precisamos de um mercado interno forte.
As cidades deveriam ser vistas como um lugar onde também se produz. Há propostas muito interessantes de agricultura urbana que ajudam a humanizar e proporcionam uma ocupação mais democrática do espaço urbano. O plano diretor da cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, não reconhece que existe área rural. Mas nós sabemos que na zona oeste e outros locais da cidade há feiras que são abastecidas com alimentos produzidos por agricultores familiares que vivem na região metropolitana. Negar a existência da área rural significa privar os trabalhadores, que vivem da produção agrícola, do acesso a políticas públicas.
Como aproximar os pequenos produtores agroecológicos do público consumidor? Quais os maiores entraves e o que pode ser feito para removê-los?
As feiras são uma possibilidade de aproximação. Mas em muitos locais do Brasil há também outras iniciativas como, por exemplo, organizações de agricultores que promovem almoços agroecológicos e convidam grupos urbanos para conhecerem seus produtos, a forma como trabalham. Outra iniciativa é o turismo rural que também ajuda aproximar os produtores dos consumidores. Há, ainda, locais que mantêm armazéns da roça, que funcionam diariamente e facilitam o acesso à produção agrícola local. Se o poder público apoiar, essas iniciativas ganham outra dimensão.
[1] Conteúdo da Rede Mobilizadores. Entrevista e edição de Eliane Araújo. Revisão de Sílvia Sousa.