Quatro estados concentram 80% dos conflitos no país, segundo Maíra Diniz; saiba quais
Por Caio de Freitas Paes, Agência Pública
Para o Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra) do governo Lula, Amazônia e Cerrado concentram a maior parte dos conflitos fundiários no país em 2023. As disputas têm se concentrado em quatro estados – Bahia, Maranhão, Pará e Rondônia – e estão ligadas ao avanço do agronegócio e do garimpo ilegal. Essa é a impressão de quem, pelo Executivo, acompanha e tenta pacificar os conflitos no campo: Maíra Coraci Diniz, a conciliadora agrária nacional do governo.
“Creio que 80% da nossa demanda ficou concentrada nestes quatro estados”, disse Maíra Diniz em entrevista exclusiva à Agência Pública. De acordo com a conciliadora agrária, que assumiu o posto em abril de 2023, os conflitos nesses estados derivam de uma série de fatores: malhas fundiárias desorganizadas, áreas de conflito muito distantes de centros urbanos com estrutura para prevenção de ataques, além da falta de compreensão, pelo Judiciário, de que casos de grilagem trazem consigo a violência – “Se não há uma atuação rápida da Justiça, é difícil de impedir os conflitos”, afirma ela.
Vinda da periferia paulistana e mãe ainda na adolescência, Maíra fez carreira na Defensoria Pública do Estado de São Paulo, onde atuou em casos ligados à temática LGBTQ+ e à violência policial – como em processos ligados a chacinas cometidas durante maio de 2006, mês da guerra deflagrada entre o PCC e a Polícia Militar paulista.
“Desde o início da minha carreira, atuei na defesa de pessoas que não têm condição de pagar um advogado, em muitos casos de pequenos traficantes, de furtadores de comida… Visitei muitos presídios a cada semana, atendi muitos familiares de presos e presas – o estrato social mais reprimido e alijado em nossa sociedade”, diz.
Por sua inexperiência em casos fundiários, Maíra conta que se surpreendeu com o convite do ministro do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, Paulo Teixeira (PT), para que assumisse a Câmara de Conciliação Agrária do Incra. Segundo ela, sua trajetória na Defensoria, com experiência em múltiplas demandas e graves conflitos, saltou aos olhos do ministro. “Costumo dizer que sou uma defensora pública que defende os injustiçados – e o próprio Incra é um injustiçado”, afirma.
“Nas conversas e reuniões iniciais, vi que o Incra sempre é colocado como protagonista dos problemas, mas quase nunca como protagonista das soluções. Logo após assumir o cargo, conheci servidores com muita vontade de retomar um trabalho parado por completo… na verdade, um trabalho que estava sendo sabotado [pelo próprio governo] nos últimos seis anos”, diz ela à Pública.
Confira a seguir os principais trechos da entrevista, realizada no fim de novembro na sede do Incra em Brasília:
Em 2023, quais estados causam maior preocupação quanto aos conflitos agrários no país?
Há lugares que nos preocupam bastante, tanto na Amazônia quanto no Cerrado. Na Amazônia, a situação em Rondônia é delicada porque o próprio Incra tem uma enorme dificuldade com relação à malha fundiária, algo que atrapalha a busca por soluções em conflitos agrários. Tudo demanda uma análise da cadeia dominial, com muito serviço de pesquisa, trabalho de escritório, algo que toma tempo e se soma à pouca organização de movimentos [sociais] no estado.
Outro lugar que nos preocupa é o Pará, mas por outros motivos. Ele se situa numa fronteira entre o agronegócio e o garimpo, e existe muita dificuldade para realização de desintrusões no Pará – como vemos no caso da [Terra Indígena] Apyterewa, onde estive neste ano. Por vezes, as longas distâncias entre áreas de conflito e centros urbanos dificultam uma atuação coordenada e estratégica das polícias, atrapalham investigações sobre eventuais ataques. Tome como exemplo o que acontece no sul do estado, onde fica o complexo Divino Pai Eterno [em São Félix do Xingu, município do Pará], lugar onde ocorreram diversas mortes nos últimos anos. Recentemente, estávamos prestes a fazer a reintegração de uma área pública nesta região, mas houve uma suspensão judicial. Há uma dificuldade do Judiciário em compreender que a grilagem traz um elemento de violência – e que é preciso agir rápido para impedir a violência. No Pará, há um “caldo” de violência por estar na fronteira do agronegócio, há longas distâncias, falta estratégia investigativa e, ao fim, existe uma cadeia pesada de grilagens sem a devida compreensão do Judiciário.
No Cerrado, logo na fronteira [do bioma] há o Maranhão – que também nos preocupa por ter muita violência no campo. Mas ali é diferente: vemos que muitos casos envolvem territórios quilombolas não delimitados, com a existência de uma malha fundiária problemática, com muitas dificuldades ligadas ao trabalho de cartórios em boa parte do estado.
Já na fronteira do agro no Cerrado, há o caso da Bahia. Talvez pela extensão territorial, talvez pela maneira que essa terra foi “dividida” no passado, têm acontecido muitos conflitos no campo por lá. O que atenua a situação é que há movimentos sociais muito organizados na Bahia, então é possível ouvir as vítimas, entender quais são os problemas e tentar encontrar soluções conjuntas. Para mim, os quatro estados – Bahia, Maranhão, Pará e Rondônia – são os mais delicados, respondendo por uns 80% da nossa demanda até o momento.
Qual o papel da Câmara de Conciliação Agrária e suas principais responsabilidades, na ótica do governo Lula? Além disso, qual sua interlocução com a Comissão Nacional de Enfrentamento à Violência no Campo?
Nós acolhemos todas as demandas de conflitos no Incra. No dia a dia, temos de falar com movimentos sociais, fazer visitas in loco, diagnosticar conflitos e “fazer a ponte” com órgãos públicos que podem atuar diretamente na solução das disputas – mas dedicados, especialmente, pela ótica fundiária.
Mas nos últimos seis anos isso não existiu aqui, movimentos sociais nem eram recebidos. Há conflitos que acontecem há quatro, cinco anos, mas que, internamente aqui no Incra, não têm memória – ou seja, oficialmente começaram agora. Isso fora a demanda reprimida, né? Não houve nenhum novo assentamento criado no governo anterior… Imagine o que isso representa nos conflitos agrários.
Quanto à Comissão, temos um trabalho conjunto. Estamos mais dedicados à pauta fundiária interna do Incra, que não é pouca coisa, enquanto a Comissão, presidida pela doutora Cláudia Maria Dadico, se dedica à interlocução com outros ministérios, que é muito importante. Não resolvemos sozinhos os problemas, precisamos de outros atores. Por isso, temos dividido tarefas, atuamos sempre de forma integrada nos relatórios, nas soluções, fazemos muitas reuniões em conjunto, buscando soluções. Nosso objetivo é o mesmo, garantir uma solução pacífica e acesso às políticas públicas para quem precisa. De modo geral, quando o objetivo é o mesmo, a parceria flui muito bem.
Qual o cenário de conflitos agrários herdados dos governos Temer e Bolsonaro? Como lidar com isso?
Quem trabalha no campo sabe que, neste período, o preço da terra no Brasil estourou – muito por conta do dinheiro público investido no agronegócio, algo decisivo para acirrar conflitos. Além disso, a sociedade como um todo está literalmente mais armada, causando ainda mais tensão. Para além, tivemos a postura conservadora de governos anteriores, com uma total insuficiência da política de reforma agrária – que está na Constituição, é um dever do Estado.
Como sou muito “operacional”, logo criei uma rotina de juntar a nossa equipe, estipulando fluxos e conhecendo a fundo o Incra, interagindo com as superintendências estaduais [do órgão], mapeando os conflitos. Você tem de ouvir todos os atores envolvidos em qualquer conflito para propor uma solução. Aprendi desde o primeiro mês aqui que, se não for desse jeito, a gente vai “bater cabeça”, porque essa visão de chegar num território com algo pronto, feito de “cima para baixo”, não resolve. Ou senta todo mundo na mesa, entende as dificuldades e planeja, ou vamos gastar dinheiro público e não resolveremos problema nenhum.
A mentalidade interna, aqui no Incra, mudou com o atual governo. Por exemplo: temos um olhar diferenciado com relação às comunidades tradicionais, algo que não havia nos últimos anos. Recentemente, aprovamos uma nova instrução normativa criando Projetos de Assentamentos Agroextrativistas (PAE), voltados para comunidades tradicionais da Amazônia cuja demanda não é por novos assentamentos nos moldes convencionais, divididos por lotes. Com essa nova instrução, criaremos PAEs em toda a Amazônia, dando segurança para estes povos – que terão a possibilidade de acessar créditos para assentados da reforma agrária, além de outras políticas públicas.
Dado que a Câmara tem uma atuação dedicada à face fundiária dos conflitos, vocês têm problemas com cartórios?
Temos quase todos os dias. Para você ter uma ideia, recentemente estava em trânsito, num aeroporto, e recebi uma demanda do Maranhão, pois havia dificuldade de obter a documentação de uma área em disputa no estado. Eu mesma tive de ligar para o tabelião responsável, para que o problema fosse resolvido.
Por isso, levei esse ponto – do trato com os cartórios – para discussão numa audiência pública do CNJ [Conselho Nacional de Justiça, que também é responsável por fiscalizar os cartórios brasileiros], levei para a corregedoria [do CNJ], fiz até uma manifestação escrita e entreguei ao CNJ, pedindo por uma normativa cartorial específica que garanta o acesso rápido à documentação das áreas e o registro gratuito pelo Incra. Afinal, não tem sentido o Estado pagar por esses serviços. Seria necessário o registro gratuito e um fluxo diferenciado de acesso à documentação ao Incra, com prazo definido, porque isso é uma das questões que empacam os processos de titulação no Brasil.
Além de interesses privados, há muitos políticos envolvidos em disputas fundiárias e conflitos agrários no Brasil. Você tem sentido pressões nesse sentido?
Nossa equipe é muito “afiada” no objetivo do presidente Lula, que é garantir o retorno da reforma agrária, da agricultura familiar, da produção de comida para o povo. Nessa tarefa, muitas vezes vamos nos deparar com questões políticas internas, que envolvem outros interesses, mas o importante aqui, para nós, é fazer um trabalho sério, estratégico.
Sempre demonstramos que estamos tocando uma pauta legítima, cumprindo a lei, e aqueles que não tiverem interesses legítimos, nem legais, que possam ser pleiteados de forma legal, esses não terão seus interesses atendidos. Somos servidores públicos, somos obrigados a atuar dentro de um parâmetro legal. Fazemos um trabalho sério, com informações sérias, ouvindo todos os lados.
Nossas portas estão abertas para qualquer um: se vier um grileiro de terra que quiser conversar, eu vou conversar, vou explicar juridicamente qualquer situação com o maior prazer. Aqui, a porta está aberta para todo mundo. Se a pessoa tiver algum requisito que lhe permita pleitear uma regularização, ela vai ter a devida regularização. Aqui ninguém quer tirar os direitos de ninguém, não é o nosso mote.
—
Imagem: Maíra fez carreira na Defensoria Pública do Estado de São Paulo atuando em casos ligados à temática LGBTQ+ e à violência policial – Caio de Freitas Paes/Agência Pública