Muitas pessoas nos perguntam: “Que tipo de atuação faz a Comissão Pastoral da Terra (CPT) por meio dos seus agentes de pastoral junto aos camponeses? O que é camponês? E posseiro? Que tipo de trabalho dignifica o/a trabalhador/a?” Camponês se distingue também de trabalhador rural proletarizado, que “desapossado da terra e de seus instrumentos de trabalho, em suma, dos meios de produção, não mais dispõe da autonomia social mínima dos cultivadores, fundada no controle costumeiro ou jurídico da terra” (MOURA, 1988, p. 15).
Apoiando o camponês está o agente de pastoral da Comissão Pastoral da Terra (CPT), que é a pessoa integrante da CPT, seja trabalhador/a com carteira assinada pela CPT ou voluntário, que atua prestando um serviço pastoral junto aos camponeses nas suas mais diversas formas: acampados, assentados, sem-terra, Sem Terra, quilombolas, boias-frias[2], assalariados, ribeirinhos, vazanteiros, indígenas, ciganos etc. O serviço pastoral envolve conviver com os camponeses, participar de suas lutas, fomentar a organização deles a partir deles, denunciar as injustiças e defender suas bandeiras de luta. Isso baseando-se em uma inspiração de fé libertadora, vivenciada, como ato primeiro, nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e nas Pastorais Sociais, e, como ato segundo, sistematizada na Teologia da Libertação, que Michael Lowy chama de ‘Cristianismo Libertador’ “por ser esse um conceito mais amplo que ‘teologia’ ou que ‘Igreja’ e incluir tanto a cultura religiosa e a rede social, quanto a fé e a prática” (LOWY, 2000, p. 57). Assim, a CPT presta às camponesas e aos camponeses assessoria pastoral, teológica, metodológica, jurídica, política, sociológica e celebra a fé, as iniciativas, as vitórias e os fracassos do povo camponês com eles/no meio deles, interligando as lutas e dinamizando-as.
Entende-se por posseiro o usuário de terras ainda não tituladas. Ou seja, posseiro é o que reivindica para si as terras sobre as quais está trabalhando. O posseiro luta, não apenas pela terra, mas pela liberdade de trabalho familiar, o que lhe confere liberdade de trabalho autônomo e liberdade de decisão. “A expansão do capital se faz preferencialmente sobre terras ocupadas por posseiros, através (sic) da expropriação e da expulsão. […] Ele deve ser expulso porque deprime ou elimina, ou seja, destrói a renda fundiária. A posse é a negação da propriedade” (MARTINS, 1983, p. 116). Posseiros e Sem Terra disputando a mesma terra constitui um conflito fundiário diferente do conflito fundiário entre empresas do agronegócio e posseiros ou quilombolas, ou indígenas ou outra comunidade tradicional como os vazanteiros e os geraizeiros. “O posseiro é produto da própria expansão do capital; o índio não o é” (MARTINS, 1983, p. 117). As comunidades tradicionais não são indígenas, mas também não são simples posseiros. Os peões e o trabalho escravo com escravidão por dívida, combatido em campanha permanente da CPT, são também produtos do avanço do capital sobre o campo.
Durante o império romano, na língua latina, o termo tripálio (tripalium, em latim) faz referência a trabalho, mas literalmente significa três paus para empalar e torturar escravos. Na língua grega existem dois termos para se referir a trabalho:doulos e poiesas. O termo doulos se refere ao trabalho enquanto servidão, análogo à situação de escravidão, trabalho fruto de força de trabalho vendida no mercado para gerar mais-valia. O termo grego poiesas se refere ao trabalho criativo e prazeroso, no qual a trabalhadora e o trabalhador criam e gozam os frutos do seu trabalho. Trabalho no sentido de poiesas é o que o profeta Isaías na Bíblia anuncia como utopia em uma sociedade com “novos céus e nova terra”: “Os homens construirão casas e as habitarão, plantarão videiras e comerão os seus frutos. Já não construirão para que outro habite a sua casa, não plantarão para que outro coma o fruto” (Isaías 65,21-22a). No sentido criativo, na luta pela terra há muito trabalho, que vai desde a organização inicial, passa pelo trabalho de base, pelos enfrentamentos que são desencadeados a partir da ocupação de latifúndios que não cumprem sua função social e permeia o dia a dia da vida social nos acampamentos e assentamentos, transcorre a produção, a lida com a terra e a organização que deve ser constante. A luta se torna um trabalho educativo que busca emancipação.
Na realidade brasileira, atualmente o que predomina é o trabalho no sentido de tripalium ou doulos: trabalho escravo, sendo renda capitalizada, em uma espécie de Servidão Moderna[3], enquanto apenas uma minoria tem garantido seu direito de trabalhar no sentido de poiesas, trabalho que dignifica a pessoa humana, pois é criativo e dá asas à criatividade. Para Marx, trabalho é toda ação humana transformadora da natureza.
A CPT, durante várias décadas, preferiu se referir aos camponeses chamando-os de lavradores, como é mais conhecido no meio rural brasileiro, porque lavrador, além de referir-se a quem lavra a terra, exprime aquele que exerce um labor, um trabalho. Logo, lavrador é camponês trabalhador. “A categoria camponês, que etimologicamente vem de campo (campus, no latim), não é, no meio rural brasileiro, mais rica em conteúdo do que lavrador, que contém na raiz a palavra latina labor; esta não só quer dizer trabalho, mas possui também a conotação de esforço cansativo, dor e fadiga” (MOURA, 1988, p. 16).
Enfim, tecemos essas considerações cientes de que a clareza sobre tudo o que envolve a luta pela terra pode aumentar o êxito da luta dos camponeses por todos os direitos sociais, entre os quais o direito à terra é primordial e imprescindível.
Referências:
LOWY, Michael. A Guerra dos Deuses: religião e política na América Latina. Petrópolis: Vozes, 2000.
MARTINS, José de Souza. Os Camponeses e a Política no Brasil: as lutas sociais no campo e seu lugar no processo político. 2ª edição. Petrópolis: Vozes, 1983.
MOURA, Margarida Maria. Camponeses. 2ª edição. São Paulo: Editora Ática, 1988.
Notas:
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.
E-mail: [email protected] – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.
www.twitter.com/gilvanderluis
[2] “Boias-frias são trabalhadores volantes, moradores dos bairros pobres das cidades do interior, convertidos em trabalhadores temporários na agricultura” (MARTINS, 1983: 67).
[3] Filme disponível na internet no seguinte link: https://www.youtube.com/watch?