Um cientista social viaja à fronteira com a Venezuela, em Roraima, e observa uma realidade bem mais complexa do que a xenofobia dos brasileiros retratada na mídia
Fábio Zuker, da Agência Pública
“É claro que eu sempre pensei em vir ao Brasil, conhecer o carnaval, as praias, ver um jogo de futebol… como turista. Não assim, como indigente.” “Seja quem for a pessoa, não se pode tratá-la assim!” “Somos seres humanos. Somos venezuelanos. Estamos vindo aqui e as pessoas tem que entender que a situação está muito ruim por lá.” “Você sabe que existe um bloqueio à Venezuela? Claro que a situação está ruim, que o governo foi inepto e que existe corrupção, mas isso tudo só chegou a esse ponto com o bloqueio econômico.” “O objetivo disso tudo é tocar o terror no país, humilhar as pessoas, e fazer ver ao mundo o tamanho do problema na Venezuela.” “Eu só tenho a agradecer. Aqui nunca me faltou comida.” “Eu só fui bem tratado, uma pessoa me deu até um par de botas que estava usando.” “Só não me mataram com pedras e paus porque eu corri muito.”
Já passava das 22h quando me aproximei de um grande grupo de venezuelanos que vivem atrás do Terminal Rodoviário de Manaus. Pedi licença para conversarmos sobre a situação deles enquanto imigrantes, dormindo na rua, sob um calor que, tarde da noite, insistia na casa dos 30 ºC. Depois de terem deliberado por alguns momentos, concordaram em falar, desde que eu não tirasse fotos – pedido que viria a se repetir a cada entrevista. Das cerca de 30 pessoas que ali se encontravam, 15 engajaram-se de maneira efusiva na conversa, que pouco a pouco se converteu em um grande debate, em tom de assembleia, com direito a mediador, o senhor Reynaldo Pérez, que assumiu a função. As demais 15 pessoas seguiram descansando diretamente no chão, sob pedaços de papelão, ou em redes. Algumas se aproximavam e se afastavam da conversa, enquanto varriam o piso ou dobravam as poucas roupas que tinham. Sentei-me no chão para participar da discussão. Ficou claro que aquele era também um momento de desabafo coletivo, assim como de reflexão sobre a mudança repentina em suas vidas, sem que entendessem ao certo como isso aconteceu.
Um vigilante do terminal rodoviário e um vendedor de balas e salgadinhos me falaram da existência do grupo de venezuelanos atrás da rodoviária. Enquanto comprava uma garrafa de água, me preparando para as 11 horas de viagem entre Manaus e Boa Vista, peguei de rabo de ouvido comentários nada elogiosos sobre os imigrantes recém-chegados. Vigilante e vendedor reclamavam que os venezuelanos tinham trazido doenças como sarampo e meningite ao Brasil e que os indígenas venezuelanos que chegaram ao país, principalmente os Warao, eram “uns vagabundos, que só pedem…”. “Nem mais índios são!”, afirmava o comerciante, “pois, se fossem índios mesmo, estariam vendendo seus artesanatos”. O segurança, com boina e jaqueta militar, por sua vez, declarava: “Aqui só fica passageiro. Se aparece um vagabundo, eu boto pra correr!”.
Longe de serem predominantes, falas e atitudes racistas e de ódio mostraram-se muito menos frequentes do que as imagens que rodaram o mundo, de brasileiros expulsando venezuelanos em Pacaraima (RR), podem levar a crer. Há falas de compaixão, de tristeza e de frustração pela incapacidade de ajudar mais pessoas em situação tão delicada, que se misturam a comentários de “nojo”, “sujeira” e “periculosidade” em relação aos recém-chegados.
Conheci uma família com poucos recursos que adotou uma família inteira de venezuelanos em sua casa e ouvi muitos relatos semelhantes. Se as falas de ódio e violência são as que mais chamam atenção, é no sentimento de isolamento e abandono dos roraimenses que, acredito, está a principal chave para a compreensão desse conflito: uma pequena população que teve de encarar sozinha a recepção de um fluxo jamais antes imaginado de imigrantes.
Reynaldo, o mediador da conversa atrás da rodoviária de Manaus, é também o mais ponderado do grupo. Ataca Maduro, critica a oposição e o embargo à Venezuela, lamenta os ataques xenofóbicos e agradece a recepção dos brasileiros. “No Brasil vocês não discutem política como nós na Venezuela”, fala em tom de brincadeira e tristeza. “Essa foi a nossa ruína…”, conclui.
Com cerca de 576 mil habitantes, de acordo com o Censo de 2010, Roraima é o menor estado brasileiro do ponto de vista populacional. É também o único isolado da rede de energia nacional, dependendo da vizinha Venezuela para o abastecimento elétrico. Os apagões são frequentes em Boa Vista, capital do estado, com cerca de 300 mil habitantes, por causa das interrupções decorrentes das quedas de transmissão da Venezuela. Quando tais apagões acontecem – eu mesmo presenciei dois –, são as termelétricas do estado, muito mais custosas, que começam a operar para suprir a energia.
Para que o estado possa ser integrado à rede elétrica nacional, os projetos elaborados pelo governo federal incluem uma ligação via estado do Amazonas, cruzando o território dos indígenas Waimiri-Atroari, localizado na divisa entre os dois estados, com um linhão elétrico para conectar Roraima com Tucuruí. Os indígenas se opõem veementemente, uma vez que trazem na memória os duros anos do desenvolvimentismo promovido pela ditadura (1964-1985), que quase levou ao extermínio do seu povo. O impasse é tamanho que derrubou o penúltimo presidente da Funai, o general Franklimberg Ribeiro Freitas, em função das dificuldades de negociação com os indígenas para a construção do linhão.
O isolamento elétrico é uma imagem perfeita para retratar a sensação de afastamento de Roraima do resto do país. Os indígenas têm sido frequentemente considerados, tanto pelo senso comum quanto por políticos locais, como os responsáveis pela falta de desenvolvimento do estado, pela falta de energia e pela questão fundiária. Quase metade da área de Roraima (46%) é território indígena.
Segundo Marcos Braga, professor de licenciatura intercultural indígena na Universidade Federal de Roraima, “aqui é um estado anti-indígena e se tornou um estado anti-PT por conta da Raposa Serra do Sol”, território indígena demarcado em 2005, com forte oposição da população não indígena. Para ele, a questão se deve principalmente à desintrusão dos arrozeiros liderados por Paulo César Quartiero, que, eleito deputado federal em 2010, traz no currículo a acusação de coordenar o ataque de pistoleiros a indígenas Makuxi. Denise Wapichana, liderança indígena e estudante de letras, lamenta: “É um ódio tão grande com relação aos povos indígenas. Eles perguntam por que o índio quer tanta terra. É muito triste ouvir isso”.
No tocante aos imigrantes venezuelanos, o mesmo raciocínio de bode expiatório utilizado em relação aos indígenas se reproduz, e é explorado por políticos, em corrida eleitoral, e pela mídia local – dominada basicamente por esses mesmos políticos. É o caso do senador Romero Jucá (MDB), em busca de reeleição, cuja família detém a posse do maior grupo de comunicação do estado, com afiliadas da Rede Bandeirantes, TV Record, rádios e jornais impressos. Segundo o professor Elói Senhoras, do Núcleo Amazônico de Pesquisa em Relações Internacionais da Universidade Federal de Roraima (UFRR), “havia um profundo problema de violência em Roraima. Diante da chegada dos imigrantes e do volume de crimes já existentes, observa-se um crescimento marginal da violência”, destacando-se que Roraima é o estado que mais assassina mulheres e população LGBT em termos per capita. De acordo com ele, “a agenda política recorre aos venezuelanos como bodes expiatórios, e a questão da imigração massiva de venezuelanos passa a ocupar o lugar que nas últimas campanhas destinava-se à questão indígena”.
A convivência entre a população brasileira e venezuelana não é, porém, só feita de conflitos. Boa Vista e Pacaraima se tornaram cidades bilíngues, e é possível encontrar venezuelanos trabalhando nos mais diversos tipos de serviço, lado a lado com brasileiros, se comunicando em “portunhol”, e muitos brasileiros se orgulham de ajudar os imigrantes. Assim, se a população roraimense sente ter feito o possível e o impossível para acolher a população venezuelana, o mesmo não se pode falar do governo federal brasileiro, cujas medidas parecem ser puramente cosméticas.
Na visão de Marcos Braga, “o Estado brasileiro foi muito tímido”: enquanto se estima que 100 mil venezuelanos já cruzaram a fronteira de Pacaraima desde 2016, o governo fez a interiorização de apenas algumas centenas, e a construção de 12 abrigos (dez na capital, dois em Pacaraima), que acolhem pouco mais de 5 mil pessoas.
“Estão tentando colocar um país todo em um só estado” é uma frase comumente ouvida em Roraima, e não é um exagero. Cem mil pessoas chegando representam 20% da população do estado, que é pobre e com pouca capacidade de gerar empregos, com o orçamento dependente quase exclusivamente de contracheques da administração pública e de pequenos serviços. Por fim, o incômodo com a imprensa nacional, que rapidamente tachou a população roraimense de xenófoba, apenas aumenta sua sensação de isolamento do resto do país.
Fugindo da miséria e da fome
É difícil precisar um perfil exato do imigrante venezuelano que cruza os cerca de 13 quilômetros que separam Santa Elena de Uairén, na Venezuela, de Pacaraima, no Brasil. Em comum, talvez apenas a fuga da miséria e da fome que assolam o país vizinho e a busca por uma vida melhor no estrangeiro, de preferência temporária, marcada pela expectativa de um pronto regresso ao seu país de origem, “quando a situação melhorar” ou “quando tirarem Maduro”, o que para muitos é sinônimo.
Grande parte dos imigrantes que entrevistei não pensa sequer em ficar no Brasil. Cruzaram a fronteira seca, de fácil acesso, e envolvendo relativamente poucos custos, com o plano de trabalhar no que quer que surja para conseguir chegar a um país de língua espanhola. Na rodoviária de Boa Vista, um jovem casal venezuelano perguntava, desnorteado, sobre a distância entre Boa Vista e Porto Alegre ou Foz do Iguaçu, ambas bem longe dali.
Essa sensação de estarem perdidos, tentando de todas as maneiras possíveis atribuir um sentido à vida em trânsito, parece ser definidora daqueles que estão em imigração. Ariadne, uma jovem de 18 anos de Maracay, que pede dinheiro com um bebê no colo, nos semáforos da praça das Águas, em Boa Vista, afirma que “ficou um mês sem comer nada na Venezuela, tudo o que obtinha dava aos avós”, responsáveis pela criação da jovem. No ônibus entre Boa Vista e Pacaraima, Jamehary e Adrián, mãe e filho, regressam à Venezuela depois de uma estada de dois meses no Brasil. Levam consigo mercadorias, dinheiro e comida, com uma aposta de que o pacote de medidas anti-inflação de Maduro surta efeito: “A situação na Venezuela é crítica. Não há nada para comer, nada de medicamentos, nada para vestir”, afirma Jamehary. Esse vai e vem entre os dois países é constante. José María, jovem de 29 anos que se sentou ao meu lado durante o trajeto de quatro horas entre Pacaraima e Boa Vista sob um calor inebriante, está voltando para a Venezuela para encontrar a sua namorada. Ambos eram designers em Caracas. Ele largou a profissão e veio para o Brasil tentar a sorte como malabarista, atividade que havia aprendido na adolescência. Viajou pelo Norte, chegou até Jericoacoara (CE) e convenceu a sua namorada a se juntar a ele.
Os exemplos se repetem ao infinito. Há venezuelanos trabalhando em bares, comércios, restaurantes e feiras. Pedindo dinheiro nas ruas, dormindo ao relento, na rua praticando prostituição ou dormindo em abrigos, compartilhando casas alugadas ou “adotados” provisoriamente por famílias brasileiras.
Em seu discurso, os roraimenses parecem ter uma leitura da situação a partir de duas categorias fundamentais: religião e trabalho. Se é verdade que elas não se sobrepõem, seguramente se tocam em diversos aspectos. Doação de bens e acolhimento sempre vêm acompanhados por discursos cristãos do bem ao próximo, autossacrifício e provação. E são as igrejas, ao menos na visão de muitos roraimenses e venezuelanos, senão de fato, que mais atuam junto aos imigrantes. Por sua vez, a categoria trabalho sustenta o crivo moral que permite aos roraimenses e aos venezuelanos distinguir venezuelanos “de bem”, “trabalhadores” e “sofredores” dos “vagabundos”, “bandidos”, “gente que não presta”. Mas o mundo do trabalho impõe as suas próprias contradições, e é crescente a sensação de que os imigrantes estão dispostos a receber menos pelos mesmos serviços. A categoria de “trabalhadores sofridos” é, de certa forma, reivindicada por todos os venezuelanos com os quais conversei, tratando imediatamente de distinguirem-se daqueles que estão cometendo os delitos: “Por culpa de alguns, pagamos todos”, resume Jamehary, sobre os eventos em Pacaraima, conforme nos aproximávamos da cidade.
Ódio e preconceito
Decidi me encontrar com diversas lideranças indígenas de Roraima para falar acerca da situação de ódio e preconceito que vivem cotidianamente, tentando entender melhor essa espécie de transferência de responsabilidade pelas mazelas do Estado antes atribuída aos indígenas, agora atribuída aos venezuelanos.
Dário Yanomami é considerado uma das mais importantes jovens lideranças indígenas do país. Filho de Davi Kopenawa, poderoso xamã e liderança Yanomami, Dário é vice-presidente da Associação Yanomami Hutukara (a presidência sendo ocupada pelo seu pai), que faz o contato entre as populações Yanomami e trabalha na divulgação de sua cultura, com publicação de livros sobre cura pelas plantas e artesanato. “Quando os portugueses invadiram nosso país, já havia esse preconceito. Ele veio junto. Os não indígenas não lidam bem com a gente, acham que não somos pessoas”, afirma Dário, que continua: “Por ser Yanomami, eu sei o que eles [venezuelanos] estão sofrendo, o preconceito”.
A história do contato com a população Yanomami chamou atenção de todo o mundo, pela violência do Estado brasileiro e pela força da luta política indígena. Embora tenham ocorrido contatos pontuais desde o século 19, e a entrada de missionários nos anos 1940 tenha estabelecido relações mais estáveis com a população Yanomami, é com o desenvolvimentismo promovido pela ditadura brasileira nos anos 1970 e 1980, com projetos de estradas, colonizações, fazendas e a chegada do garimpo, que o contato se torna constante, implicando epidemias de doenças que dizimaram a população Yanomami. A construção da Rodovia Perimetral Norte (1973-1976) foi crucial para a chegada dos colonizadores e garimpeiros, que contaminaram os afluentes do rio Branco, em uma verdadeira corrida pelo ouro. No início da década de 1990, estima-se que cerca de 30 mil a 40 mil garimpeiros trabalhassem dentro do território que estava em vias de ser reconhecido como Terra Indígena Yanomami. Com a forte luta política indígena e campanha internacional de proteção da vida e direitos Yanomami, a Terra Indígena (TI) é finalmente homologada em 1992 pela Funai, diminuindo drasticamente o número de garimpeiros, embora não extinguindo o problema.
“Nós, Yanomami, estamos tomando água suja, cheia de mercúrio”, afirma Dário, destacando que, com a alta do preço do ouro nos anos 2000, os garimpeiros voltaram com força a invadir o território Yanomami. Para ele, está clara a relação direta entre garimpeiros e políticos, referindo-se diretamente a Romero Jucá, apoiador de projetos que pretendem legalizar a mineração em terras indígenas. “É o Romero Jucá quem banca os garimpeiros na terra Yanomami, mas não sabemos quem compra o ouro, os compradores internacionais”, acusa o líder Yanomami. Informada sobre as críticas da liderança indígena, a assessoria de imprensa do senador Jucá não enviou resposta até o fechamento dessa matéria.
Dário conta que sofre muitas ameaças; ele, sua família e a associação Hutukara, mas que foi escolhido pelo seu povo para ocupar essa posição, embora não goste da vida na cidade, voltando constantemente à aldeia para ganhar forças.
Acusa também os garimpeiros pelo assassinato de dois indígenas Yanomami isolados (ou seja, sem contato permanente com a sociedade “do branco”) e afirma que, com a crise na Venezuela, muitos garimpeiros do país vizinho têm invadido seu território ancestral. De acordo com o sétimo ofício da Procuradoria da República de Roraima, foi instaurada uma investigação específica para o caso do assassinato dos dois indígenas, e uma geral sobre o garimpo na região, tanto no âmbito civil como criminal. Para a assessoria da Procuradoria, trata-se de uma situação crítica. Um dado que parece animar Dário é o crescimento da população Yanomami, recuperando a grave perda demográfica sofrida durante a ditadura. Por isso, questiona os brancos que afirmam que seu território é grande demais: 9 milhões de hectares para cerca de 26.200 Yanomami é pouco, segundo a liderança, diante do crescimento populacional Yanomami.
Não é difícil escutar falas contra os povos indígenas em Roraima. O dono da pousada em que me hospedei em Boa Vista, e que adotou dois jovens venezuelanos de 20 anos para cuidar, não hesita em me falar que a questão dos índios em Roraima é “ridícula”: “Eles foram todos importados dos Andes pela Holanda”. Um motorista que conduz imigrantes em carros compartilhados entre Pacaraima e Boa Vista considera que os índios são indolentes, não gostam de trabalhar e têm muitas terras e privilégios. Um garimpeiro casado com uma indígena Taurepang diz, ao lado de sua esposa, que os índios “não existem mais”.
O professor Marcos Braga, do Insikiran, unidade de ensino da UFRR voltada para os povos indígenas, com formação em saúde, pedagogia e gestão territorial, lembra que quando chegou à Boa Vista, em 2005, a cidade estava tomada pelas discussões sobre a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. “No dia seguinte à decisão do STF, as pessoas saíram de casa de preto, com fitas pretas, em luto por Roraima”, afirma Braga, que me recebeu em seu escritório na UFRR. Para Maria Bárbara Bethônico, também professora do Insikiran, na área de gestão de território, a população não indígena pressiona, defendendo que as terras devem se tornar produtivas no modo capitalista: “Esse discurso de que a terra está sendo subutilizada é muito forte. Mas temos que entender que é uma forma diferente de pensar a terra”. De acordo com a professora, a imagem folclorizada do índio, pelado e com flechas, reforça esses preconceitos. Denise Wapichana, do povo Wapichana e estudante de letras, reflete acerca dos desafios que envolvem a entrada da mulher indígena na política: “Quando eu cheguei na cidade, um funcionário da Funai falou que eu tinha perdido todos os meus direitos como indígena. Mas eu sou indígena Wapichana, mesmo usando sapato e roupa de branco”. Denise pretende ser professora bilíngue em sua aldeia, escrever um livro infantil em Wapichana, e participa ativamente da vida política indígena na cidade. Considera o campus da UFRR uma “maloca grande”, onde diferentes povos indígenas se encontram.
“Quando o homem branco acabar com todos os Yanomami com garimpo e doenças, a vingança vai cair na cabeça dos brancos. Os rios vão desaparecer para debaixo da terra, chuva forte vai destruir cidade e selva. Esse é o nosso segredo, e vamos contar para eles”, termina a entrevista Dário, em tom profético.
Cidade indígena
A cidade de Pacaraima está localizada dentro da Terra Indígena São Marcos. No passado uma fazenda real, converteu-se depois da proclamação da República em propriedade privada e apenas em 1992 foi homologada como território indígena dos povos Macuxi, Taurepang e Wapichana. À diferença da imagem que comumente se tem da vegetação amazônica, uma espécie de cerrado e pântanos, conhecidos como savana tanto do lado brasileiro como venezuelano, marca na paisagem local.
Além de todas as dificuldades pelas quais passa a cidade de cerca de 10 dez mil habitantes com a crise migratória, há grande incerteza jurídica na área urbana do município, pois ainda está em discussão a desintrusão dos não indígenas da TI. Uma cidade pequena, sem capacidade de gerar empregos para esse enorme influxo de imigrantes. Todos na cidade demonstram uma sensação de impotência e de cansaço, de não serem capazes de ajudar os venezuelanos. E esse fluxo é crescente.
Os imigrantes e os brasileiros têm mais em comum do que pode parecer, diante da inação de governos que ou negam o fluxo de imigrantes, como faz Maduro, ou afirmam que estão elaborando um programa de ação para lidar com a crise que nunca vê a luz do dia, como faz o governo Temer. Diante do caos instaurado nas ruas da cidade, faltava apenas uma faísca para que o barril de pólvora explodisse, que foi o já muito retratado episódio de roubo e agressão ao comerciante Raimundo Nonato de Oliveira, somado à recusa da ambulância em levar o ferido para um hospital em Boa Vista, pois essa seria de uso exclusivo de venezuelanos. As pessoas resolveram agir por conta própria, culminando nas imagens das mais tristes e repugnantes dos últimos tempos, quando no dia 18 de agosto a população local agrediu e expulsou os imigrantes, além de queimar os seus pertences.
Depois do ocorrido, muitos moradores brasileiros da fronteira afirmam que a situação na cidade está melhor, embora poucos se orgulhem do ocorrido e assumam a sua participação. Ezequiel Matos, que faz o percurso de carro entre Pacaraima e Boa Vista levando e trazendo imigrantes venezuelanos, pondera: “Se você perguntar pro cara que expulsou os venezuelanos se ele acha certo o que fez… claro que não… queimou a roupa de muita gente que não tinha mais nada”. Em meu último dia na cidade, em um boteco em uma viela próxima à rodoviária, um grupo de brasileiros, tanto indígenas como não indígenas, contava os casos de violência que viram na cidade, relembrando cenas da expulsão, em tom de lamento, como uma senhora venezuelana que se jogou no mato com suas roupas em sacos de lixo, para não ser expulsa nem ter os seus bens queimados. Lamentam também a violência contra o comerciante Raimundo Nonato, aparentemente muito querido por todos.
Na Venezuela, em Santa Elena de Uairén, existe uma grande migração interna de venezuelanos. Comenta-se que ali é atualmente o melhor lugar do país, onde ainda se pode encontrar alimentos. Com o novo preço da gasolina e controle de venda pelo governo, um complexo sistema de abastecimento, com filas quilométricas se formou. Adriana Stava, vendedora em uma quitanda de frutas e originária de Sucre, na costa, se lembra com clareza do dia em que os brasileiros expulsaram os venezuelanos. Ônibus foram deslocados para acudir a população, enquanto outros seguiram caminhando: “As pessoas passavam ainda correndo e chorando. Muitas vieram andando desde a fronteira, morrendo de medo”. Adriana pensa em breve em cruzar a fronteira rumo a Manaus, assustada com a miséria que vê em seu país.
Fake news
A percepção em Roraima sobre a chegada dos venezuelanos é marcada também por uma série de fake news. Alguns dizem que Maduro liberou centenas de presos na Venezuela, pois não tinha mais como alimentá-los na cadeia, e deixou-os na fronteira. Um pai e um filho que trabalham em Boa Vista consertando geladeiras, e em breve pensam em retornar a Caracas, afirmam que os venezuelanos que estão cometendo crimes no Brasil são a “tropa de choque” que Maduro usava para defender o seu governo diante dos protestos, e que já não consegue mais pagar. “Não são venezuelanos, e sim nicaraguenses e cubanos com passaporte venezuelano”, afirma outro, que pretende ir de carro com sua família ao Chile, e espera na frente da rodoviária de Pacaraima outro viajante para dividir custos. Na rádio local, escutei um radialista explicar que se trata de uma notícia falsa o boato de que o governo brasileiro concederia aos venezuelanos o direito de votar nas próximas eleições. Páginas na internet, como “Roraima Sem Censura”, misturam a promoção de falas de ódio, fake news inflamatórias e racismo contra venezuelanos com uma plataforma pró-Bolsonaro.
O uso eleitoreiro da crise migratória é uma das raízes das tensões. Segundo a pesquisa realizada pelo Ibope entre 13 e 16 de agosto, antes do atentado contra Jair Bolsonaro, o candidato à Presidência da República pelo PSL aparecia com 38% das intenções de voto no estado de Roraima – ou seja, tirando-se brancos e nulos, seria eleito no primeiro turno. É Bolsonaro quem tem o discurso mais ferrenho em Roraima: fechar a fronteira e acabar com as terras indígenas do estado. Um discurso que recebe atenção da população não indígena, mas cujas medidas dificilmente poderiam ser implementadas sem ferir a Constituição Federal e os tratados internacionais sobre fronteiras dos quais o Brasil é signatário. Para Dário Yanomami, “se ele [Bolsonaro] ganha a Presidência do Brasil, os índios vão entrar em guerra. Vai sujar o nome do Brasil e derrubar sangue indígena!”.
Em Roraima, um dos maiores aliados de Bolsonaro, com outdoors muito visíveis por todo o estado, é Antonio Denarium, conhecido agropecuarista local, candidato ao governo do estado e responsável pelo Frigo10, uma reunião de frigoríficos bovinos privados no estado. Uma das bases de sua proposta de governo é o desenvolvimento da agricultura em terras indígenas e o reforço da segurança.
Romero Jucá concentra na sua figura, marcada por grande impopularidade em Roraima segundo as entrevistas feitas pela reportagem, o descaso do roraimense em relação ao governo federal e o abandono do estado. Para o professor Elói Senhoras, foi a falta de posicionamento de Jucá sobre a crise migratória, e não os escândalos de corrupção nem as ligações com o garimpo ilegal, que arruinou a sua reputação. Em junho, o presidente Michel Temer visitou Roraima e propôs um plano de ação para melhor receber os imigrantes, embora muito pouco tenha sido feito. Diante dos cerca de 100 mil venezuelanos que cruzaram a fronteira, os 12 abrigos no estado e as medidas de interiorização, que distribuíram cerca de 200 pessoas para o resto do Brasil, são meramente simbólicos.
Talvez um dos melhores exemplos do descaso e incapacidade de ação do governo, no âmbito federal e estadual, seja a maneira como lidou com a população indígena venezuelana Warao. Essa população começou a ser desapropriada de seus territórios tradicionais em meados dos anos 1950, com a agropecuária, mas foi apenas em 1980, com a exploração de petróleo em seus territórios no delta do Orinoco, que se viram obrigados a realizar migrações internas na Venezuela. Diante da crise inflacionária e falta de alimentos do país, e com dificuldade para conseguir doações, passaram a vir para o Brasil. O governo de Roraima então teve a ideia de distribuir esses indígenas em aldeias da região, como se essa ação imediatista pudesse resolver o problema. Para Mayra Wapichana, assessora de comunicação do Conselho Indígena de Roraima (CIR), “há grandes diferenças culturais, tem muito que se discutir ainda”. O CIR, como é chamado o conselho, iniciou um diálogo junto aos Warao e entidades sociais para entender o que de fato aconteceu com a população Warao na Venezuela, o que anseiam e como podem os povos de indígenas de Roraima auxiliar nessa situação.
Enquanto termino de escrever esta reportagem, mais um episódio de ódio e violência em Boa Vista. No dia 8 de setembro, mais de cem imigrantes deixaram a cidade após o abrigo em que estavam ter sido atacado por brasileiros. Eles assassinaram um venezuelano que havia matado um brasileiro que tentou defender uma pequena venda que era assaltada. Nem o Exército nem a Polícia Militar de Roraima conseguiram conter o ataque contra o centro de acolhida. Ao que tudo indica, e a depender do uso político feito da crise migratória, da contínua chegada de imigrantes e do descaso do governo brasileiro, casos como esse talvez deixem de ser tão pontuais.
—
Imagem: Centro de acolhida aos imigrantes – Fábio Zuker/Agência Pública