Nova etapa do Programa Sementes do Semiárido reforça a luta pelo patrimônio genético das famílias agricultoras

Enquanto no Congresso Nacional, novas leis para liberar agrotóxicos e transgênicos avançam perigosamente.

Por Hugo de Lima – Asacom

Em Picos, no Semiárido Piauiense, na comunidade de Fornos (dentro da região da Chapada do Mocambo), mora a família da agricultora Maria Francisca Gomes. Dona Francisca, como é conhecida, tem 49 anos e é gestora de uma Casa de Sementes conquistada por meio do Programa Sementes do Semiárido, uma das ações da ASA para formação e mobilização social para a convivência com o Semiárido. Ela, que tem orgulho de se dizer agricultora, fala com entusiasmo da casa que ajudou a construir na comunidade. “A casa de sementes, hoje, significa a minha vida. É um pequeno investimento que vai se tornar um grande investimento. Eu até me emociono demais quando eu lembro que a gente conseguiu aquela casinha e ninguém acreditava que ia ser algo. Hoje, tudo que estamos conseguindo é através das sementes, da casa de sementes. A emoção é muito grande. Através dela, por exemplo, hoje eu sou presidente da Associação dos Pequenos Agricultores Rurais de Fornos onde nós agregamos os mesmos agricultores da casa e mais algumas famílias, todas juntas no mesmo objetivo. Eu fico muito emocionada com isso. Isso significa tudo!”.

Francisca divide a administração do espaço e do estoque com os agricultores José Cícero Paulino e Maria do Socorro Soares, também moradores da comunidade. Para ela, as famílias se aproximaram mais depois que a casa foi conquistada. “A gente faz reunião, a gente se encontra, a gente recebe intercâmbio… em 2017 recebemos intercâmbio até com agricultores da Bahia pra conhecer o trabalho e o desenvolvimento dos agricultores da casa e já tem escola com programação agora em junho: – vão nos visitar! Quando falam em visita, já falam logo: vamos visitar a casa de sementes da Chapada do Mocambo!”

Mesmo com as estiagens em 2017, a casa seguiu um caminho de crescimento do seu estoque. “A gente recebeu um recurso de mil reais em 2016 e compramos 300 quilos de sementes que conseguimos multiplicar para mil quilos em 2017”, conta. Para este ano, não há uma estimativa sobre como ficará o estoque, mas há boas chances de que ele seja bem maior do que o do ano anterior, já que a quantidade de chuvas nos últimos meses têm sido melhores do que as de 2017 o que amenizou a situação de seca.

A cultura de estoque é parte da dinâmica histórica dos povos do Semiárido brasileiro. Seja água para beber, para produzir ou as sementes – um tesouro da biodiversidade guardado com muito carinho por guardiões e guardiãs como Dona Francisca. A grande estratégia sempre foi o conjunto de formas criativas de conviver com as estiagens naturais da região. Neste contexto, a ação da ASA através de um programa voltado às sementes tem como objetivo reforçar e potencializar essas estratégias, ampliando “o resgate e a valorização do patrimônio genético, através do fortalecimento das práticas já existentes de auto-organização comunitárias.” A casa na Chapada do Mocambo foi construída em 2015, na primeira etapa do programa, que já apoiou 708 projetos do tipo em nove dos estados da região.

Em 2018, o programa inicia uma nova etapa com aporte de 10 milhões de reais junto à Fundação Banco do Brasil. Será uma execução de cerca de um ano com mobilização de nove organizações nos estados de Minas Gerais, Bahia, Alagoas, Sergipe, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e o Piauí. Em cada estado, as organizações que vão executar as ações do Programa atuarão em sete municípios e apoiarão até três casas em cada um. Serão ao todo 180 casas em 63 municípios.

Segundo o coordenador do Programa Sementes do Semiárido, Antônio Barbosa, “cada organização vai apoiar com todo o processo formativo, de identificação das famílias, de composição de estoque, e também com a construção da casa de sementes num único projeto”. Nesta etapa, uma inovação do Programa é o apoio a 180 famílias com tecnologias de captação e armazenamento de água da chuva para produção de alimentos, vinte por estado e por organização. “Cada família atendida pela tecnologia de segunda água seguirá a mesma lógica de se fazer diagnósticos, projetos produtivos… Elas vão compor, no campo do método, a mesma lógica das famílias atendidas pelo Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2)”, afirma Barbosa, lembrando que além da tecnologia e da formação, a família poderá,, com a ajuda de um/a técnico/a, escolher que atividade produtiva irá fortalecer.

Para além disso, estão programados encontros estaduais para fortalecer as redes e os espaços que discutem as temáticas em torno das sementes crioulas. De acordo com Barbosa, “uma das estratégias desse programa é manter as redes de sementes funcionando, tanto as redes estaduais quanto a Rede de Sementes do Semiárido”. Ainda, outras atividades continuam sendo apoiadas, como os testes de transgenia, para monitorar o avanço das sementes modificadas nos municípios atendidos; o resgate e a multiplicação parcial de materiais (sementes) comunitários; e a valorização e realização de intercâmbios.

Embora a nova etapa seja importante para a continuidade das ações de convivência, segundo Barbosa, uma situação ideal em relação às casas na região semiárida é a de conseguir construir em média três projetos em cada município. Neste sentido, com a configuração atual da Delimitação Legal do Semiárido, há um déficit de cerca de 3 mil núcleos comunitários que poderiam conquistar suas casas e, assim, ter mais autonomia em seus estoques e processos produtivos, além de muito mais proteção aos materiais genéticos das sementes para preservação da biodiversidade.

Ameaças às sementes crioulas em pauta no Congresso – As bancadas de apoio ao agronegócio, tradicionalmente, já tentavam alavancar projetos de leis de apoio e liberação do uso e comercialização de sementes transgênicas e agrotóxicos, visando o mercado externo (para alimentar as demandas asiáticas por commodities, por exemplo). Neste sentido, o que poderia ser alimento é encarado como produto de base para diversas indústrias. Devido a nova configuração do cenário político com fortalecimento desses segmentos e às megafusões entre grandes empresas do setor conduzindo pressão e lobby por esse tipo de legislação que apoia a produção e comercialização de transgênicos e de agrotóxicos, projetos que visam esses interesses têm sido cada vez mais frequentes nas pautas do Congresso. Se aprovadas, essas regras são um duro golpe à biodiversidade, à qualidade da alimentação brasileira, à saúde das pessoas e aos direitos das famílias agricultoras sobre seus patrimônios genéticos guardados, muitas vezes, por gerações.

Na semana passada, por exemplo, um projeto de lei em tramitação no Senado Federal (PLC 34/2015), que alteraria “a Lei de Biossegurança para liberar os produtores de alimentos de informar ao consumidor sobre a presença de componentes transgênicos quando esta se der em porcentagem inferior a 1% da composição total do produto alimentício”, através da famosa letra T em embalagens, teve seu texto aprovado na Comissão de Meio Ambiente. O relator do projeto, o senador Cidinho Santos (PR-MT) chegou a sugerir um requerimento de regime de urgência na tramitação, o que na prática levaria o projeto à votação no Plenário mais cedo. No entanto, um outro requerimento, do senador Humberto Costa (PT-PE), foi apresentado para garantir que o projeto siga a trajetória de avaliações em outras comissões.

Sobre isso, mais de 100 assinaturas respaldam uma carta aos senadores, enviada na última terça-feira, 24, denunciando “o atropelo para votar o fim da rotulagem de transgênicos. (…) mais um verdadeiro golpe no prato dos brasileiros”. Ainda segundo o documento, assinado dentre outros pela Associação Brasileira de Agroecologia (ABA), pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), pelo Greenpeace e pela Fiocruz (do próprio Ministério da Saúde), “esse tipo de ação antidemocrática fere a tramitação processual e viola a participação social, pois impede o efetivo processo de debate e incidência de movimentos e organizações, que se mobilizam historicamente pelo direito ao acesso à informação, especialmente da defesa da conquista do T identificando produtos transgênicos em alimentos processados.” A carta termina listando 10 motivos pelos quais os senadores e senadoras não devem aprovar o projeto, indicando “representar um imenso retrocesso do ponto de vista ambiental, de saúde pública e dos direitos dos consumidores”.

Já na Câmara dos Deputados, a tramitação do PL 6299/2002 geraria reunião para ontem, dia 25, que acabou sendo adiada. A reunião tinha objetivo de discutir e votar o parecer do relator, o Deputado Luiz Nishimori (PR/PR), da bancada ruralista. Este outro projeto tenta rasgar a atual legislação de agrotóxicos no país – inclusive a própria nomenclatura desse produto, que mudaria para “defensivo fitossanitário”, termo com aparência mais amigável com objetivo de omitir os perigos dos tóxicos. Segundo a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos, dentre as mudanças propostas, a avaliação não consideraria os impactos à saúde e ao meio ambiente, liberaria mais agrotóxicos cancerígenos, facilitaria a comercialização (e, dessa forma, fomentaria o uso) de diversos desses produtos, e deixaria atrelada a autorização de liberação ao Ministério da Agricultura, latifúndio dos ruralistas.

E você, qual semente planta? – “As sementes crioulas não tem veneno nenhum! A gente sabe que é uma semente que você planta este ano e ela dá aquele tanto; no outro ano planta, aí ela dá é mais… e a outra não, você planta num ano e no outro já não pode plantar mais.” É o que nos conta a guardiã de Sementes da Vida, Maria do Socorro Saraiva, agricultora do Semiárido cearense. Dona Socorro percebe a importância e a capacidade dos materiais que guarda. E completa: “eu acredito que se a pessoa não guardar ela [a semente], quando for daqui a uns anos, não vai existir mais. Só vai existir a que os fabricantes quer. Lá no laboratório eles modificam do jeito que eles quer e a nossa, se a gente não for guardando, quando for daqui a uns anos, a humanidade não vai saber que existiam essas sementes, que existiam sementes que produziam sem precisar de veneno.”

Para fortalecer a Rede de Sementes do Semiárido, a ASA lança nesta quinta-feira, 26, uma campanha para redes sociais que apresenta vídeos-depoimentos realizados com agricultoras e agricultores familiares de nove dos estados do Semiárido. Nos vídeos, que serão publicados semanalmente, guardiões e guardiãs de sementes crioulas, da vida, da terra, da gente, da liberdade, da fartura, da paixão, da partilha, da resistência e da tradição, como são chamadas em cada estado do Semiárido, nos contarão quais sementes são especiais para eles/elas e quais guardam, a começar justamente pelo Semiárido cearense.

“Essas coisas que a gente come é tudo transgênica, cheia de veneno e por isso que a gente anda hoje doente porque no tempo que eu era menina nós plantava colhia… Nós não comia essas coisas assim… Nós plantava o feijão, nós plantava o arroz e plantava o milho também; da rama de mandioca fazia a farinha, não comprava essas farinhas que vem de fora.”, lembra Dona Maria Martins Neto, da comunidade do Buriti, no município de virgem da Lapa, no Semiárido mineiro.

A campanha é parte das ações do Programa Sementes do Semiárido em uma etapa que teve financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES e também do Ministério do Desenvolvimento Social – MDS, para fortalecer a Rede de Sementes do Semiárido.

Veja o primeiro vídeo da campanha:

Foto: Mauricio Pokemon.

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