No OTSS
“Só sabe pra onde vai quem sabe de onde vem.” Este verso, vindo do semiárido brasileiro, encontrou aqui em Paraty as vozes indígenas que já nos revelavam que “o futuro é ancestral”. Esse talvez seja o fundo das muitas mensagens que o território nos ensinou. No fundo, as soluções para adiar o fim do mundo já existem nos territórios. Para conhecê-las, é preciso sair dos gabinetes, pisar nas terras onde os saberes tradicionais resistem, preservados.
O território, quando vivenciado com o corpo, com o olho no olho, com o calor na pele, ouvindo atentamente a sabedoria milenar guardada na oralidade, alimentando-se do que as águas e as terras dão, nos educa para o único futuro ainda possível à vida humana no planeta. O Território fala. Pois, escutemos! Aprender com o que os territórios tradicionais falam é urgente. E foi esta a tônica do nosso I Encontro Internacional de Territórios e Saberes.
Entre os dias 09 e 13 de setembro de 2024, Paraty recebeu uma imensa maré de Povos, de lutas, conhecimentos, experiências. Nós, mais de mil e quinhentos participantes, representantes de povos e comunidades tradicionais e de instituições parceiras, vindos de 22 países dos cinco continentes, reunidos no 1o Encontro Internacional de Territórios e Saberes (EITS), alimentamos nossas esperanças críticas e estratégicas ao realizarmos 76 atividades, todas garantindo o protagonismo de mulheres, como mesas de diálogo, oficinas, seminários, trocas de experiências e vivências culturais, organizadas em cinco eixos temáticos: 1) ecologia de saberes para o bem-viver, 2) oceanos e rios – redes de vida e saberes, 3) saúde, resiliência e organização social, 4) educação, cultura e modos de vida, e 5) articulação em redes.
Reenergizados por toda esta pujança dos territórios que somos e de onde viemos, reafirmamos nosso compromisso com a promoção da saúde e do desenvolvimento sustentável por meio do diálogo entre saberes tradicionais e científicos.
O EITS é uma maré alta… Terminado o encontro, a maré retorna ao oceano. Retorna, mas deixa um solo fértil. Fértil do projeto político para o enfrentamento das emergências climáticas em escala planetária, sabendo que as soluções são descentralizadas e que precisamos ocupar todos os espaços políticos decisivos. A COP é um espaço em que precisamos ser escutados. Nós, povos e comunidades tradicionais, sentimos na pele a urgência ambiental, mas não percebemos essa mesma urgência nas deliberações e resultados de cada COP. Ano que vem, será realizada a trigésima COP… Trigésima! E nestas 30 edições, quais resultados a COP entregou que podem fazer frente, de fato, ao tamanho do desafio planetário das emergências climáticas?
Em 2025, a COP30 será no Brasil, em território amazônico! Precisamos nos fazer ouvidos. Não para pedir soluções, pois nossa esperança não reside em pedidos para governos ou outras instituições que não se comprometam em enfrentar o modelo civilizatório que causou e continua causando este estado de calamidade ecológica planetária e que naturaliza a continuidade de genocídios seculares ao redor do mundo: este modelo hegemônico fundamentado no colonialismo e no capital.
Nossas esperanças para adiar o fim do mundo residem no enfrentamento a este modelo causador das catástrofes. Onde nossas esperanças estão mesmo é no crescimento disto tudo que já fazemos. Portanto, o que levaremos para a COP30, além de mais denúncia dos imensos danos que o modelo colonialista capitalista gerou e continua gerando, será o anúncio destas soluções… Destas soluções que já estamos implantando nos territórios, pelas mãos e mentes dos povos e comunidades tradicionais; e será também o convite, para os governos e instituições que quiserem: caminhem juntos conosco nesta rede contracolonial de formulação, apoio e implantação de soluções efetivas para os desafios planetários.
Nesta carta destacamos os seguintes processos, dialogados no 1o EITS, os quais nos comprometemos a continuar fortalecendo continuadamente:
– Territorializar os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. Os ODS só terão efetividade se forem implantados com respeito a cada território. Por exemplo, precisamos de fontes renováveis de energia, mas não ao custo de expulsar os povos e comunidades tradicionais (PCT’s) de seus territórios visando a implantação de monoculturas de cana de açúcar. Energias renováveis sim, mas não assim… O monitoramento da implantação dos ODS também precisa ser territorializado.
– Construção dos planos de adaptação e mitigação de emergências climáticas também a partir dos territórios. Para isso, instituir imediatamente o fórum de gestão e o fórum executivo previstos no Programa Nacional de Saneamento Rural, com participação das comunidades tradicionais.
– Continuar a integração entre CNPCT, CNODS, Fiocruz e outros parceiros institucionais e sociais para efetivar a territorialização dos ODS.
– Ampliar e aprofundar redes de atuação conjunta entre movimentos sociais, instituições acadêmicas e órgãos governamentais para promover a visibilidade e defender os direitos dos PCTs, protegendo sua permanência em seus territórios.
– Avançar na Aliança dos Povos e Comunidades Tradicionais da Mata Atlântica para alcançar resultados concretos visando a proteção de territórios e a união entre os povos no enfrentamento dos impactos ambientais e sociais.
– Avançar em uma Aliança Nacional de Todos os Biomas, a partir da Aliança de Povos da Mata Atlântica; e que tenha uma incidência internacional a partir do Fórum Internacional de Territórios Tradicionais para o Bem-Viver.
– Realizar o censo e regularização fundiária dos outros 26 segmentos de PCT’s, além dos indígenas e quilombolas. A metodologia desse censo dos PCTs deverá ser construída de forma compartilhada com o território e com a participação de pesquisadores populares.
– Avançar em uma regularização fundiária ampla e promover a verdadeira Reforma Agrária, que não apenas garanta o acesso dos PCT’s à terra, mas também o direito de manter seus modos de reprodução da cultura e da vida.
– Construir propostas orçamentárias que fomentem as políticas públicas específicas construídas com os povos tradicionais.
– Defender a não criminalização das práticas tradicionais em territórios em sobreposição de unidades de conservação ambiental, como por exemplo a pesca artesanal e as tradicionais roças e práticas extrativistas.
– Revisão das multas aplicadas e reversão dos valores arrecadados pelas multas para ações de fortalecimento dos modos de vida tradicionais.
– Avançar no reconhecimento e regularização dos territórios pesqueiros tradicionais. As práticas de pesca tradicional têm sido ameaçadas pelo turismo de massa, pelos grandes empreendimentos, pela degradação dos corpos d’água e pela criminalização da pesca em decorrência da sobreposição de unidades de conservação e territórios pesqueiros.
– Ampliar as ações de gestão integrada da pesca artesanal, de automonitoramento da sociobiodiversidade, respeitando os protocolos de consulta aos PCTs.
– Fortalecer, com urgência, o Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos. Este programa se encontra fragilizado, tornando o Brasil um dos países que mais mata, no mundo, lideranças em conflitos territoriais.
– Valorizar iniciativas de formação técnico-jurídica estratégicas para lideranças comunitárias se fortalecerem como defensores de territórios tradicionais, como por exemplo a iniciativa da Defensoria Pública na articulação da Rede de Defensores dos Territórios Tradicionais.
– Efetivar o direito à consulta, livre, prévia e informada dos PCT em processos licitatórios, como previsto na Convenção 169 da OIT. Como referência positiva, indicamos o exemplo da Lei de Consultas Populares do pátio petroleiro do Chile, que vai além da consulta prévia informada.
– Lutar por reparação justa e integral das perdas e danos para os PCT, inclusive no contexto das condicionantes dos grandes empreendimentos.
– Fortalecer a auto-organização das mulheres nos movimentos sociais.- Lutar pelo aumento da participação das mulheres nos espaços de discussão e decisão.
– Em parceria com entidades governamentais e científicas, fortalecer iniciativas protagonizadas por PCT’s para enfrentamento e gestão de riscos de desastres.
– Mapear, proteger e fortalecer PCT’s em territórios vulnerabilizados rurais e urbanos. Denunciar e fortalecer mobilizações populares e iniciativas estratégicas que combatam o genocídio prolongado e sistêmico executado pelas instituições policiais brasileiras contra jovens de pele preta, principalmente nos bairros periféricos das grandes cidades.
– Propor e executar políticas públicas de educação emancipatória e ambiental crítica baseadas no reconhecimento dos saberes tradicionais como fonte de soluções para emergências climáticas e ambientais. O território educa, a educação é política. É através de uma educação diferenciada, centrada nos saberes tradicionais, que crianças e jovens de PCT’s preservam os conhecimentos e saberes tradicionais para a defesa de seus territórios.
– Enfrentar o adultocentrismo na educação, reconhecendo as crianças e jovens como seres autônomosecompletos. Criançanãoéumsujeitoqueestáporviraser,acriançajáé;elapode e precisa ser ouvida nos processos de tomada de decisão.
– Promover a construção de políticas públicas de enfrentamento às emergências climáticas olhando a partir do campo da saúde pública, que é uma visão mais ampla e profunda dessas emergências; e não centralizando os diálogos no campo da economia.
– Avançar na construção de sistemas públicos de saúde capazes de oferecer acesso integral, universal e gratuito aos serviços de saúde para todas as pessoas, reconhecendo as singularidades dos PCT’s; incluindo o reconhecimento de métodos e conhecimentos da medicina tradicionais. Como referência, indicamos o exemplo das PICS – Práticas Integrativas e Complementares em Saúde como parte do SUS – Sistema Único de Saúde do Brasil.
– Identificar impactos menos visíveis à saúde pública. Além dos efeitos mais evidentes das emergências climáticas contra a saúde, por exemplo as mortes por soterramentos em deslizamentos após chuvas intensas, existem também outros danos imensos contra a saúde que são camuflados. Por exemplo, as ondas de calor, as crises respiratórias e os danos à saúde mental que causam incontáveis mortes em populações mais vulneráveis e são subnotificadas como fossem mortes por causas naturais.
– Articular as redes de atuação conjunta para construção de políticas públicas que contemplem o direito à alimentação saudável, livre de agrotóxicos, e iniciativas de promoção da agroecologia e pesca artesanal.
– Desenvolver um sistema de informação sobre agroecologia que subsidie as políticas públicas.
– Garantir as bases alimentares identitárias de cada cultura, protegendo-as dos processos hegemônicos de exploração capitalista que destroem os modos de vida tradicionais. Por exemplo, os casos do açaí, da juçara, da castanha do Pará e outros alimentos que também são importantes para os modos de vida dos PCT’s e são explorados por processos comerciais globalizados.
– Enfrentar o modelo baseado no agronegócio, latifúndios, monocultura e agrotóxicos; superando a lógica neoliberal de financiamento que privilegia o agronegócio em detrimento da agroecologia. Neste sentido, é urgente o lançamento do PRONARA – Programa Nacional de Redução dos Agrotóxicos.
– Desenvolver e adaptar tecnologias socioterritoriais para promoção do bem-viver, respeitando a reprodução e continuidade dos modos de viver tradicionais, e para geração de autonomia e renda de mulheres e jovens. Como referência positiva, indicamos o exemplo da Incubadora de Tecnologias Sociais do Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina e a Rede Nhandereko de Turismo de Base Comunitária.
– Continuar denunciando o não cumprimento dos direitos fundamentais previstos na Convenção 169 da OIT e na Constituição Federal quanto à diversidade cultural, garantia dos territórios e justiça socioambiental.
– Formular e fortalecer iniciativas de gestão compartilhada com participação efetiva dos PCT’s em sítios reconhecidos como patrimônio natural e/ou cultural da humanidade. Em destaque, avançar nessa experiência de gestão compartilhada com os PCTs de Paraty e Ilha Grande, primeiro território reconhecido na América Latina pela Unesco como sítio misto do patrimônio da humanidade, por sua cultura e biodiversidade excepcionais.
– Realizar monitoramento de territórios tradicionais incluindo o uso de tecnologias e aplicativos para monitorar queimadas e garimpos ilegais. Além das queimadas e garimpos ilegais, é importante mapearmos os outros processos que ameaçam os modos de vida dos PCT’s.
– Retomar os processos de demarcação de terra, lutando contra o marco temporal e todos os projetos que se relacionam com perdas de direitos dos PCTs.
– Criar um sistema nacional federal de educação escolar indígena, trazendo a natureza para dentro da escola, com trocas intergeracionais, promovendo instituições educacionais que sigam os ciclos e ritmos da natureza.
– Promover a Universidade Intercultural dos Povos e o Fórum Internacional de Territórios Tradicionais para o Bem-Viver, fomentando assim uma aliança global para proteção da sociobiodiversidade e combate às emergências climáticas.
– A Universidade Intercultural dos Povos deverá fomentar e conectar diversas iniciativas estratégicas de educação emancipatória, ciência e inovação, radicalmente fundamentadas em uma Ecologia de Saberes. Será uma voz em defesa de uma universidade plural, diversa e múltipla, multilinguística e aberta às bases populares; resgatando saberes tradicionais, influenciando sistemas educacionais de toda a sociedade e impactando efetivamente na construção de territórios para o bem-viver.
– Promover uma educação universitária que reconheça as mestras e mestres de saberes tradicionais como professores, sem hierarquia entre os saberes científicos e os de saberes tradicionais.
– Realizar pactos estratégicos, baseados na Ecologia de Saberes, entre instituições acadêmicas e governamentais, a partir de um reconhecimento da necessidade de uma reparação histórica pela forma opressora e colonialista que as universidades e governos se relacionaram com os PCTs.
– Cooperação internacional territorializada. As iniciativas de cooperação internacional triangular Sul-Sul entre instituições de ciência, inovação, tecnologia, educação, movimentos sociais, povos originários e comunidades tradicionais são estratégias indispensáveis para o combate ao modelo colonialista de monocultura de saber, ao extrativismo acadêmico nas pesquisas e ao epistemicídio dos guardiões das florestas e das águas. Essa rede é importante para garantir a representatividade dos povos do sul global na formulação de políticas públicas a nível regional e internacional, além de possibilitar intercâmbios de soluções territorializadas para a promoção da vida.
– Os centros de educação, ciência, tecnologia e inovação devem buscar institucionalizar as iniciativas de construção de conhecimento científico territorializado. Como referência, indicamos o exemplo do PITSS – Programa Institucional de Territórios de Sustentáveis e Saudáveis da Fiocruz.
Estes e outros processos estratégicos estão sendo formulados e implementados pelos Povos e Comunidades Tradicionais em cooperação com instituições parceiras, a partir de uma Ecologia de Saberes. Estes saberes em diálogo evidenciam a necessidade de superarmos qualquer concepção que mantenha a artificial dicotomia sociedade-natureza, pois não existe sociedade sem natureza. Territorializar as soluções passa também por reconhecer a importância de combater as graves desigualdades socioeconômicas. Não é possível proteger o meio ambiente sem superar as opressões socioeconômicas.
Por isso, convocamos os governos e as universidades a saírem de seus gabinetes e nos encontrarem, em diálogo, nos territórios. Pés no chão, olhos nos olhos, corpos em conexão para acessar sabedorias contracoloniais. O território fala.
É escutando os territórios que reconheceremos as soluções efetivas para adiarmos o fim do mundo. No 1o EITS, os territórios falaram e levantaram as seguintes bandeiras de luta: educação crítica e diferenciada; juventudes; agroecologia; saneamento ecológico; turismo de base comunitária; pesca artesanal; patrimônio e cultura vivos; e defesa dos territórios. É com estas bandeiras que combatemos o racismo ambiental e os impactos mais crueis das emergências climáticas que nos assolam. Justiça socioambiental já!
Para alcançarmos alguma justiça climática é fundamental cuidarmos já deste pacto entre saberes tradicionais e científicos neste momento decisivo da disputa planetária.
Os territórios estão em disputa, as universidades estão em disputa e o planeta está em disputa. Nós estamos deste lado: do lado de quem sabe de onde vem e sabe para onde o planeta pode ir.
Paraty, RJ, Brasil – 13 de setembro de 2024