Remédio e veneno na Mãe Terra

A rica biodiversidade sobrevive ao lado das grandes mineradoras no sistema vivo do Brasil

Por Daniel Lamir e Hugo Lima – Asa

A mãe natureza é uma das vítimas do autoritarismo político que, cada vez mais, ameaça a democracia no país. As vozes que representam a vida e a cultura para a biodiversidade resistem para não serem silenciadas pela opressão do capital. Por um lado, empresas mineradoras cometem crimes, se aproveitando das fragilidades fiscais e legislativas para o meio ambiente e para defesa de direitos. Por outro, as políticas e programas para a agroecologia, um dos possíveis caminhos para participação popular em defesa da Mãe Terra, sofrem resistências para cumprimento e implantação.

Do anúncio da Carta de Pero Vaz Caminha às denúncias de e-mails de brasileiros interceptados pelo sistema de segurança estadunidense se passaram 513 anos. Ao longo deste período, as tecnologias mudaram, mas o interesse pela exploração de minérios esteve presente nas duas situações de troca de mensagens. Em contrapartida, séculos antes de qualquer caravela portuguesa chegar às localidades que hoje formam o Brasil, a figura da Terra como uma grande Mãe provedora da vida já sugeria um equilíbrio na utilização dos recursos naturais. Há apenas sete anos foi instituído o Dia Internacional da Mãe Terra, celebrado nesta sexta-feira (22) com o tema “As árvores para a Terra”.

Paulinho é filho de indígenas e quilombolas e diz que o mundo precisa "dar um passo atrás" neste lógica de consumismo que ameaça a vida e o equilíbrio da Mãe Terra | Foto Vinícius Vieira
Paulinho é filho de indígenas e quilombolas e diz que o mundo precisa “dar um passo atrás” neste lógica de consumismo que ameaça a vida e o equilíbrio da Mãe Terra | Foto Vinícius Vieira

Há quase duas décadas, o casal de agricultores Paulinho e Fia conquistou uma terra devastada pelo agronegócio na comunidade São Joaquim, em Arapongas (MG). O local possui cerca de 10 hectares e, na época, existiam apenas cinco árvores. A partir da sabedoria ancestral – herdada por indígenas e quilombolas – e dos princípios agroecológicos – compartilhados com organizações sociais – hoje o local é um exemplo de sistema agroflorestal que respeita e se harmoniza com a natureza. Com mais de setenta espécies nativas, a propriedade oferece pleno sustento alimentar para a família e ainda recupera nascentes do Rio Xopotó.

Porém, o remédio implantado pelo casal se mistura com a lama envenenada derramada pela Vale (Samarco-BhP) na Bacia do Rio Doce, em dia 05 de 2015. O crime-tragédia que aconteceu em Mariana (MG) matou pessoas e está impactando diretamente em toda a biodiversidade da Bacia. A situação ampliou ainda mais as dimensões de debates sobre os históricos problemas causados na corrida pelas reservas de minérios. Seria sugestivo para a nossa democracia que os cidadãos e cidadãs conhecessem profundamente a dinâmica da maior financiadora das campanhas eleitorais de 2014.

“Temos algumas dúvidas. Por exemplo, como e onde é feito o processamento desse minério? Por que não é feito no Brasil? O que é feito no Brasil? É uma caixa-preta. Não sabemos bem sobre isso. Porque a Vale do Rio Doce foi privatizada por um valor vinte vezes menor do que ela valia? A gente precisa entender isso coletivamente e o que significa essa mineração e essa contaminação para o país”, reflete Irene Cardoso, presidente da Associação Brasileira de Agroecologia, ABA.

Porém, certezas ainda existem. O avanço tecnológico para extrair, tratar e exportar os minérios não está no mesmo nível dos processos de segurança com os rejeitos de minérios – a parte não comercial. “Esse modelo de mineração que consome as vidas e a natureza sem dialogar com os povos e as culturas”, como destaca a comunicadora popular Myrlene Pereira, prioriza os números das balanças comerciais em detrimento das toneladas de rejeitos capazes de serem represadas.

A destruição deveria ter sido evitada | Foto: Isis Medeiros
A destruição deveria ter sido evitada | Foto: Isis Medeiros

“A produção mineral brasileira teve um ‘boom’ a partir da década de 2000, resultando no aumento dos minerodutos, represas e barragens de rejeitos. O Ferro é o mineral mais produzido, com grande diferença do segundo lugar, o níquel. A barragem que se rompeu em Mariana era de rejeito de extração de ferro. Mas foi a partir de 2011, que o preço do ferro caiu. Para compensar o valor de exportação, de 2014 para frente houve um aumento na produção diante da baixa do preço”, define o professor Lucas Magno, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sudeste de Minas Gerais.

O “descontrole” da mineração ganha força por conta de “padrões que se repetem sobre as avaliações de impactos ambientais das empresas. Como muitos já chamam, o ‘licenciamento fast-food’”, como atesta o jornalista Marcelo Firpo, da Associação Brasileira de Saúde Coletiva, Abrasco. Irene, Lucas e Marcelo participaram da Caravana Territorial da Bacia do Rio Doce, na semana passada, entre os dias 11 e 16 de abril de 2016. Ela e eles acompanharam depoimentos que apresentaram diversas formas de opressões físicas, políticas e ideológicas das empresas de mineração nas comunidades.

No Brasil, de acordo com o Observatório de Conflitos Mineiros na América Latina (OCMAL), existem 20 situações de conflitos causados pela mineração. Os casos estão mais concentrados nas regiões Norte, Centro-Oeste e Nordeste. Apesar da situação delicada que envolve a vida de milhares de pessoas, estes conflitos não ocupam as letras garrafais das manchetes da grande mídia. Nos espaços comunitários, ao mesmo tempo, há uma influência de imagem para que sempre seja defendida uma ideia dos “benefícios” econômicos da geração de emprego e renda, por exemplo, a partir dos empreendimentos no setor.

Pó causado pelas atividades do polo gesseiro causa danos para as pessoas e para o meio ambiente | Foto: Ylka Oliveira
Pó causado pelas atividades do polo gesseiro causa danos para as pessoas e para o meio ambiente | Foto: Ylka Oliveira

No semiárido pernambucano, a extração de gipsita movimenta milhões de toneladas de produção ao ano. É o principal minério explorado pelo Polo Gesseiro do Araripe, o maior do país. No entanto, a retirada da gipsita está atrelada a técnicas que expõem o meio ambiente e as pessoas a um pó branco que já causou a contaminação dos solos e lençóis freáticos, já que o pó em contato com a umidade e outros agentes naturais se torna tóxico.

Além disso, uma “epidemia” de doenças respiratórias já é evidente por causa desse pó. No município de Trindade (PE), por exemplo, é recorrente a cena de trabalhadores de fábricas gesseiras cobertos pelo pó branco. O trabalho na etapa de calcinação, que é um tratamento térmico para sólidos minerados, é outro problema, pois pode até causar alguns tipos de câncer.

Para Dona Ivete Barbosa (nome fictício), moradora da região do Araripe há alguns anos, o gesso tem seus malefícios. “Algumas pessoas que trabalham nessas fábricas voltam gripados para casa por causa do pó branco. Às vezes, vomitando sangue. Alguns trabalhadores passam a vida inteira de trabalho nessas fábricas e os donos de várias delas não disponibilizam os equipamentos de proteção (EPIs) necessários para o trabalho”.

Na região do Araripe, as explosões para exploração em minas espalham uma nuvem de pó que contamina sistemas agroflorestais e causam rachaduras nas casas de moradores e moradoras. O mesmo fenômeno acontece na região de Caetité, na Bahia, na exploração de urânio, contaminando a água, o ar e o solo.

No estado do Ceará, desde 2010, a Articulação Anti Nuclear luta para evitar que problemas semelhantes ao de Caetité aconteçam na região de Santa Quitéria, Itatira e Madalena. O local possui uma reserva de urânio. No momento, há um processo de licenciamento para que o Consórcio Santa Quitéria possa explorar o minério na região.

Outra mobilização política no estado que luta para garantir direitos e preservar a Mãe Natureza é o Movimento Ceará Agroecológico. Há um ano, o Movimento dialoga com a assembleia legislativa e o governo estadual do Ceará para a construção de políticas públicas de base agroecológica nas ações da agricultura familiar. Porém, a situação não está “dada”, e o cenário político com ameaça de golpismo exige ainda mais articulação popular para lutar contra o modelo de vida que defende o agronegócio e a exploração desenfreada dos recursos da Terra.

“Eu não consigo imaginar que num estado que não seja democrático – mesmo que possamos fazer nossas críticas ao governo atual -, que não conte com pessoas com perspectivas democráticas e populares traga uma pauta com a agroecologia como conseguimos construir, mesmo que tardiamente”, opina Cristina Nascimento, coordenadora do Cetra e do Fórum Cearense pela Vida no Semiárido, integrante do Movimento Ceará Agroecológico.

Neste turbilhão de disputas entre a exploração da natureza e os retrocessos de direitos sociais, que impactam diretamente na vida da Mãe Terra, a atuação humana pode ser interpretada como uma praga, que obriga algum sistema imunológico do planeta a funcionar.

Caravana teve ato público em Governador Valadares no dia 16 | Foto: Arquivo Caravana
Caravana teve ato público em Governador Valadares no dia 16 | Foto: Arquivo Caravana

“A mãe natureza é muito generosa. Mas na hora de cobrar ela não faz distinção de rico, pobre, negro, índio. Ela não quer saber quem é o culpado. Então temos que cobrar deles [donos de mineradoras] porque eles causaram tudo e têm que pagar por isso. Porque quando ela cobrar o que é dela por direito, ou causar o equilíbrio, somos nós que vamos sofrer primeiro. Eles vão correr, mas ela vai atrás deles também”, avalia Douglas Krenak, da etnia Krenak, que também participou da Caravana Territorial da Bacia do Rio Doce, movimento político cultural que propõe o desenvolvimento e visibilização de anúncios e denúncias, a partir dos paradigmas da Agroecologia.

Imagem destacada: Dia Internacional da Mãe Terra – Foto: Ana Lira

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