“Queremos vida para todos e um Araguaia livre de agrotóxicos”

Cimi

Após a realização do Primeiro Encontro sobre Agrotóxicos e seus impactos sobre as populações tradicionais do Médio Araguaia, entre os dias 18 e 20 dezembro na cidade de Porto Alegre do Norte (MT), povos e comunidades participantes do encontro divulgaram um comunicado denunciando os danos que a monocultura e o uso de agrotóxicos têm causado às populações tradicionais da região e exigindo ações dos poderes públicos.

O encontro, que ocorreu , contou com a participação de Quilombolas, Retireiros, Pescadores e dos povos indígenas Ãpaniekra (Kanela), Apyãwa (Tapirapé), A’uweUptabi (Xavante) e Iny (Karajá) e com o apoio Conselho Indigenista Missionário – regional Mato Grosso (Cimi-MT), da Comissão Pastoral da Terra (CPT), da Prelazia de São Félix e do Fundo de Solidariedade da Conferência Nacional dos Bispos (CNBB).

No documento divulgado após o encontro, com apoio do Cimi e da CPT, as populações tradicionais do Médio Araguaia afirmam que são movidos pelos “sentimentos mais profundos de amor ao próximo e à vida, até porque o ar e a água poluídos não só matam e adoecem nossos filhos e familiares, mas também os filhos e demais familiares daqueles que pensam e agem movidos pelo imediatismo e pensando sobretudo em suas contas bancárias”.

Os povos e comunidades presentes no encontro abordam as inúmeras situações em que o uso de agrotóxicos pelas monoculturas da região afeta suas vidas, culturas, produções e formas de ser e se relacionar com a vida e a natureza.

O comunicado enfatiza os problemas de saúde que tem sido causados pelo uso de agrotóxicos. Sete casos de aborto ocorridos em uma única semana de 2015 no município de Canabrava do Norte (MT) são citados como exemplo de possível influência dos agrotóxicos na região. “Sabemos disso porque sentimos na pele seus efeitos práticos”, afirma o comunicado, que convida as pessoas a visitarem os postos de saúde e hospitais da região em datas que ocorra a pulverização de veneno, para conferir os problemas causados pelos agrotóxicos.

Além de afetar a saúde e o modo de produção das comunidades tradicionais, a pulverização dos agrotóxicos afeta suas formas de vida. “Nossa região abriga, ainda, muitas comunidades ribeirinhas, camponesas e quilombolas com suas culturas que precisam ser apoiadas porque mostram a maior riqueza que o ser humano pode criar: suas diferentes maneiras de ser, pensar, agir e crer, seus diferentes modos de comer, curar-se e de habitar. Tudo isso vem sendo ameaçado por uma visão unilateral e que se quer única do que seja o progresso humano. São monocultores no sentido mais forte que essa palavra pode ter: só acreditam numa cultura única”.

Os povos e populações tradicionais do Médio Araguaia apresentam, ao fim do documento, uma série de reivindicações aos poderes públicos para reverter os graves danos causados pelo abuso dos agrotóxicos na região, aliados ainda ao preconceito e à violência contra estas populações.

Entre as reivindicações, está a de criação de um Gabinete de Crise pelos governos estadual e federal para investigar as ameaças a lideranças de camponeses, indígenas e defensores dos direitos humanos na região.

Os povos pedem também a investigação dos impactos dos agrotóxicos na saúde das pessoas e no ambiente da região, a revisão da legislação brasileira e a cessação imediata do uso de agrotóxicos proibidos em outros países, além da proteção do ambiente, do rio Araguaia e seus afluentes, dos territórios e das populações tradicionais da região.

“Queremos progresso, sim, mas com o Araguaia e não contra o Araguaia, com o cerrado e não contra o cerrado, com as matas e não contra as matas, com ar e água puros”.

Leia abaixo o comunicado na íntegra:

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À Sociedade Araguaiense, Matogrossense, Brasileira e à Comunidade Internacional

Às Autoridades Municipais, Estaduais, Federais e aos Organismos Internacionais

COMUNICADO DE INTERESSE PÚBLICO SOBRE A GRAVIDADE DA SITUAÇÃO NO MÉDIO ARAGUAIA PROVOCADA PELOS AGROTÓXICOS E SEU MODELO DE DESENVOLVIMENTO

1 ­ Nós, Ãpaniekra (Kanela), Apyãwa (Tapirapé), A’uweUptabi (Xavante), Iny (Karajá), Quilombolas, Retireiros, Pescadores, reunidas e reunidos no Primeiro Encontro sobre Agrotóxicos e seus impactos sobre as populações tradicionais do Médio Araguaia realizado entre os dias 18, 19 e 20 dezembro de 2015 na cidade de Porto Alegre do Norte – MT, depois de debatermos e analisarmos os efeitos que vêm sendo provocados pela expansão/invasão das monoculturas principalmente de soja em nossa região, nos vemos obrigados a denunciar à sociedade a gravíssima e dramática situação que vem nos atingindo diretamente e cujas consequências afetam e afetarão cada vez mais a todos e todas que vivem em nossa região.

2 ­ Nosso comunicado se baseia na experiência vivida e sofrida em nossas comunidades e em nossas famílias. Nossos corpos trazem as marcas desse modelo em sua saúde. Vimo­nos obrigadas e obrigados a fazer esse comunicado pelo silêncio do poder público e dos grandes meios de comunicação diante da gravidade dessa situação e o fazemos movidos pelos mais profundos sentimentos de irmandade e de interesse público. Por maiores que sejam as eventuais divergências que temos sobre o atual modelo de desenvolvimento que vem sendo imposto à região, que sabemos existem e são grandes, nos move os sentimentos mais profundos de amor ao próximo e à vida, até porque o ar e a água poluídos não só matam e adoecem nossos filhos e familiares, mas também os filhos e demais familiares daqueles que pensam e agem movidos pelo imediatismo e pensando sobretudo em suas contas bancárias.

3 ­ Nós, comunidades quilombolas, pescadoras, camponesas e indígenas temos sido as principais vítimas dessa expansão. Em 2015, no município de Canabrava do Norte, MT, em apenas uma semana, sete mulheres grávidas abortaram, levantando a suspeita de que os casos possam ter relação com a pulverização de agrotóxicos, o que exige a necessária investigação pelas autoridades de saúde naquele município. Convidamos cada homem e mulher de boa­ fé a visitar os Postos de Saúde e Hospitais de nossa região, particularmente nos dias em que são pulverizados no ar as substâncias químicas que concretamente nos trazem danos à saúde. Sabemos disso porque sentimos na pele seus efeitos práticos

4 ­ Os agrotóxicos que vêm sendo lançados nas monoculturas em todos os municípios de nossa região estão afugentando os pássaros, insetos e demais animais que, não mais encontrando o alimento que sempre encontraram com facilidade, hoje só o encontram em nossas roças ou em nossas matas, diminuindo nossa produção, nossas colheitas. Não temos mais abundância e diversidade das frutas. Lamentavelmente as monoculturas que invadem nossa região não só não favorecem os nossos mercados locais como vem impedindo que nós continuemos a fazer nossa agricultura saudável. O veneno está em nossa mesa!

5 ­ Em várias de nossas comunidades já não podemos beber a água de nossos rios e sequer de nossas fontes, pois até mesmo os lençóis d’água estão poluídos. Muitos dos que se beneficiam desse modelo monocultor, muitas vezes até pelo preconceito que têm contra nosso modo de vida e cultura, não sabem as consequências das práticas que vêm sendo implementadas contra nossa região e nossos povos e comunidades. É o caso, por exemplo, de nossos irmãos Karajá que tem seus seres sobrenaturais como o Aruanã oriundo das águas e que lhes proporcionam força espiritual. O que farão os Karajá quando não puderem mais pescar, mergulhar e beber a água que para eles é rigorosamente fonte espiritual de vida? Quando suas águas estarão contaminadas? Aqueles que veem e creem na monocultura como modelo de progresso e desenvolvimento, talvez não possam imaginar que estão poluindo não só as águas, mas a fonte espiritual da vida Karajá.

6 ­ São inúmeras as consequências dos agrotóxicos em nossas vidas, sobretudo em nossa saúde e no meio ambiente no qual vivemos, do qual dependemos. Mas sabemos que os agrotóxicos são somente um meio através do qual um determinado modelo de desenvolvimento vem se impondo contra nossa região e seus povos e comunidades e culturas. Os que vêm protagonizando essa invasão, com seu preconceito, ignoram que nossa região é uma das mais ricas de nosso país não só em termos de vida com uma fauna e flora invejável por sua beleza e diversidade, mas também pela diversidade de línguas que aqui são faladas, um patrimônio não só da região, mas do Brasil e de toda a humanidade. Nossa região abriga, ainda, muitas comunidades ribeirinhas, camponesas e quilombolas com suas culturas que precisam ser apoiadas porque mostram a maior riqueza que o ser humano pode criar: suas diferentes maneiras de ser, pensar, agir e crer, seus diferentes modos de comer, curar-­se e de habitar. Tudo isso vem sendo ameaçado por uma visão unilateral e que se quer única do que seja o progresso humano. São monocultores no sentido mais forte que essa palavra pode ter: só acreditam numa cultura única. São dramáticas para nós as consequências desta visão, ou melhor, de suas práticas, pois vem acompanhada por um clima de guerra, de preconceito racial contra os indígenas, os quilombolas e os pobres em geral, pois esses são, quase sempre, descendentes dos indígenas e dos negros. São públicas as manifestações abertas de racismo, ainda mais exacerbadas na região com a justa devolução das terras de Marãiwatsédé ao povo Xavante. Desde então, qualquer reivindicação pela demarcação de territórios na região vem sendo brutal e selvagemente atacada por aqueles que se apresentam em nome do progresso. É o que vem ocorrendo contra a justa demanda de uma das culturas comunitárias de nossa região, como é o caso dos retireiros do Araguaia que não querem terra para negociar, mas sim território para viver.

7 ­ De nossa parte afirmamos também que queremos e lutamos por um progresso justo. Queremos progresso, sim, mas com o Araguaia e não contra o Araguaia, com o cerrado e não contra o cerrado, com as matas e não contra as matas, com ar e água puros. Acreditamos que um diálogo entre as culturas, as nossas e a daqueles que, só agora, descobriram nossa região, é possível. Mas que seja um diálogo entre iguais com respeito recíproco e que, portanto, não ignore nossas culturas, nossos saberes, nossas crenças, nossa dignidade! Estamos dispostos a um diálogo verdadeiro desde que fundado no respeito mútuo e sob relações igualitárias. Nossa história nessa região é uma história de muita luta e de muita resistência e, por isso, não aceitamos submissão e nem queremos submeter.

8 ­ Nesse momento nos alegramos com a aliança entre os povos originários (Tapirapé, Karajá, Xavante, Kanela), quilombolas, pescadores e retireiros reunidos no Encontro sobre Agrotóxicos e seus impactos sobre as populações tradicionais do Médio Araguaia na defesa de seu ambiente e culturas em defesa da vida e contra o modelo do agronegócio e as suas consequências danosas para estes povos e comunidades. Esta é uma luta necessária em defesa dos territórios tradicionais e que associa a luta indígena e camponesa no Araguaia.

Defenderemos juntos o Araguaia e seus afluentes e os princípios constitucionais que já consagram o caráter público de suas águas (Artigo 20 da Constituição Federal). Queremos VIDA para todos e um Araguaia livre dos agrotóxicos!

Requeremos, portanto, das instituições competentes:

∙​A​ criação, por parte dos governos federal e estadual, de um ​Gabinete de Crise ​para investigar os casos e ameaças a lideranças de camponeses, indígenas e defensores dos direitos humanos em função de conflitos na região, agravados pelo avanço do agronegócio;

∙​A​ imediata investigação, pelas autoridades de saúde pública, dos impactos dos agrotóxicos na saúde das pessoas e no ambiente da região do Médio Araguaia, com o necessário diagnóstico preciso de saúde, com destaque para a investigação e elucidação dos casos de abortos em Canabrava do Norte, MT;

∙​A​ revisão da legislação brasileira e a cessação imediata do uso de agrotóxicos proibidos em outros países;

∙​A​ proteção dos territórios dos povos indígenas e comunidades tradicionais, pescadores e comunidades camponesas da região;

∙​A​ proteção dos rios, córregos, varjões e do próprio Rio Araguaia e suas áreas inundáveis na região, com a proteção das florestas e cerrados adjacentes, considerando o legado de conhecimentos dos povos e comunidades que tradicionalmente habitam a região. Não há defesa do Araguaia sem os Povos Tradicionais do Araguaia!

ENTIDADES SOLIDÁRIAS COM ESTE COMUNICADO:

CPT. Comissão Pastoral da Terra

CIMI. Conselho Indigenista Missionário

Foto: Cimi

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