Por Hugo de Lima, na Asa
Pessoas, festas, ritos, modos de fala, espaço territorial, relações ecológicas, organização comunitária compõem os nossos Brasis de vários povos, comunidades e nações. Segundo relatório da Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 2012, “o Brasil abriga, notoriamente, uma imensa diversidade sociocultural, a qual se expressa em uma multiplicidade de comportamentos, saberes, línguas, crenças, modos de vida. Em meio a essa diversidade, encontram-se povos e comunidades que desenvolveram estilos de vida relacionados a ambientes naturais específicos e estabeleceram vínculos distintos com esses ambientes”.
Vernira Ferreira, conhecida como Deka, moradora da comunidade quilombola da Lapinha, localizada no município de Matias Cardoso, no Semiárido de Minas Gerais, conta que o trabalho e a subsistência da comunidade têm a ver com os ciclos de cheias. “A gente trabalha na época das cheias que lavam o território e trabalha no lameiro que se forma, plantando enquanto a água escorre de volta”. Dona Deka se identifica como quilombola vazanteira, que são pessoas que trabalham nessas vazantes e interagem com os ciclos de fertilidade do ambiente com o qual se relaciona. Nas cinco regiões brasileiras existem diversos agrupamentos, desde indígenas, quilombolas, comunidades de terreiro, de fundo de pasto, geraizeiros, quebradeiras de coco, extrativistas, ribeirinhos, pescadores artesanais, entre outros. Segundo o Ministério da Cultura, há cerca de 4,5 milhões de famílias que se identificam em populações tradicionais.
Para esses povos, o território é uma extensão da identidade. “Na nossa comunidade, o nosso território é o nosso local. É onde a gente pratica nossa cultura, nossos costumes, nossos ritos; vive e sobrevive”, conta Egídio Xokó, membro da aldeia indígena Xokó, localizada na comunidade Ilha de São Pedro, no município de Porto da Folha, no Semiárido sergipano. Segundo Egídio, para a sua etnia, a relação que se estabelece pelo território com a natureza é o que identifica parte da tradição do seu povo. “A gente sempre se preocupou com a mata, com a caatinga; com a retirada através da caça, mas também com a devolução, preservando a mata contra o desmatamento”.
Na época da colonização portuguesa, durante as missões catequizadoras, os Xokó passaram por um período de repressão cultural por parte dos capuchinhos e jesuítas. Mais recentemente, foram obrigados a arrendar suas terras para fazendeiros e parte da comunidade saiu do território original. A resistência dos remanescentes, concentrados numa região chamada de Caiçara, localizada fora da ilha, fez com que reconquistassem seu território no final da década de 1970. Hoje, o espaço é reconhecido e demarcado como território indígena pela União.
Conjuntura política atual ameaça direitos dos povos tradicionais
Sobre a conjuntura que se estabelece nacionalmente, com o governo interino, há um novo desafio. “Ele não nos representa”, afirma Egídio. Segundo ele, “é importante que nós das comunidades tradicionais possamos nos juntar a outros movimentos sociais para garantir nossos territórios.” O novo governo age contra os povos e comunidades tradicionais, os seus modos de vida, suas relações ecológicas e sua força política. Para o assessor jurídico da ONG Terra de Direitos, André Dallagnol, “a estratégia está direcionada para que o agronegócio tente consolidar a base legal para que suas fronteiras avancem pelo país”. Essa estratégia passa pelas entranhas da gestão de Michel Temer em parceria com a bancada ruralista no Congresso Nacional.
Em 2015, enquanto ocupava o cargo de senador, o atual Ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Blairo Maggi (PP/MT), expoente do agronegócio e conhecido como “rei da soja”, se tornou relator do Projeto de Lei 654, de autoria do senador Romero Jucá (PMDB/RR), ex-Ministro do Planejamento do governo interino de Michel Temer. A proposta da PL é criar o licenciamento ambiental especial, procedimento administrativo específico destinado a licenciar empreendimentos de infraestrutura considerados “estratégicos” para os governos. Se aprovado, bastaria um decreto presidencial para tornar um projeto de infraestrutura de grande porte como “estratégico”. Todos os outros momentos que hoje precisam ser cumpridos, inclusive a consulta às populações diretamente afetadas, seriam apenas protocolares, já que na prática, o decreto liberaria a construção.
Para André Dallagnol, “os projetos de lei [que estão sendo votados] são diferentes entre si, mas têm em comum a facilidade de desburocratização para que os empreendimentos com impactos muito grandes, especialmente socioambientais, possam ser viabilizados. Na visão das grandes empresas, o argumento é que essas etapas burocráticas encarecem os grandes projetos, quando na verdade são essenciais para garantir a participação da população que pode ser diretamente ou indiretamente impactada”. No entanto, Dallagnol indica que isso não é uma garantia de interrupção do interesse do grande negócio. “Se para as empresas essas são etapas burocráticas, para os povos impactados elas são meramente uma forma de ganhar tempo, pois os projetos acabam sendo viabilizados.”
No último dia 10, a pressão popular de comunidades tradicionais retirou mais uma vez da pauta a Proposta de Emenda Constitucional 215, que tiraria da Funai a atribuição de demarcar terras indígenas. Segundo a proposta, que tem mais de 15 anos de tramitação, a demarcação seria discutida pelo Congresso Nacional, junto a vários deputados e deputadas representantes do agronegócio, em especial da pecuária industrial extensiva. Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara dos Deputados, afirmou na ocasião que não pretende colocar em votação essas e outras propostas consideradas “polêmicas”.
Nesse contexto, qual exatamente o recado do governo e do Congresso para as populações que são diretamente atingidas pela intervenção em seus territórios? Segundo o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), que organiza várias comunidades que vivenciaram desapropriações para grandes obras, “desde os anos 1970, atingidos e atingidas por barragens fazem a luta para defender e garantir seus direitos, muito em decorrência da enorme contradição colocada no setor elétrico do nosso país. Há décadas, o Estado brasileiro desenvolveu um marco regulatório forte para garantir a construção das hidrelétricas em todas suas etapas, desde o planejamento, concessão e liberação da obra, até a liberação de recursos financeiros necessários. Entretanto, em puro contraste, não existe nenhuma política específica que garanta os direitos das populações atingidas que são obrigadas a sair de suas terras”.
Para o ativista político e militante do movimento social quilombola Antônio Bispo dos Santos, morador do Quilombo Saco-Curtume, localizado no município de São João do Piauí, no semiárido piauiense, isso não é uma situação que começa no afastamento da presidenta eleita Dilma Rousseff. Segundo Bispo, o governo anterior “fez alianças com os grupos que ele sempre criticou, que ele sempre condenou, que sua trajetória condenava. O [processo de] impeachment do governo Dilma é o rompimento dessa aliança”. Segundo ele, o governo anterior “não fez reformas estruturantes; não fez reforma agrária; não regularizou as terras indígenas, nem as quilombolas. Do ponto de vista conjuntural, era um governo progressista, mas do ponto de vista estrutural, foi um governo estagnado”. Embora, para Bispo, “a partir do momento em que essa aliança se rompe, os movimentos sociais vão poder identificar claramente quem são seus parceiros e quem são seus adversários. Sendo assim, a conjuntura não é favorável, mas há possibilidade concreta de se fazer uma verdadeira luta.”
Violência no campo
Os casos de violência contra comunidades tradicionais no campo, motivados por interesses em seus territórios, aumentaram drasticamente nos últimos anos. Essa situação vai desde sabotagem em infraestruturas comunitárias – recentemente num incêndio danificou toda encanação que abastece a comunidade do povo indígena Truká-Tupan, situada no Alto do Aratikum, em Paulo Afonso (BA) – a situações de perseguição e assassinato. Segundo a ONG britânica Internacional Global Witness, em relatório publicado em julho deste ano, em 2015, se registrou 50 mortes por conflitos no campo em todo o país. Quase o dobro de mortes registradas no ano de 2014, quando 29 pessoas morreram.
Na Bahia, o Conselho Estadual de Segurança Alimentar (Consea-BA) denunciou em carta recente ao governador Rui Costa (PT-BA) “a violência sofrida por esses povos e comunidades, causadas pelos empresários do agronegócio na tentativa de expulsá-los de suas terras e a violência causada pela polícia federal e pela polícia militar do Estado da Bahia nas reintegrações de posse e despejos arbitrários e desproporcionais.”
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Imagem: Povo Xokó – Foto: Ana Lira/Asa