Na luta pelo direito à terra, gerações de quilombolas estão no alvo e na rota do agronegócio e de grandes empreendimentos
Por Luiz Felipe Stevanim, na Revista Radis
“Abenção, vô”. Uma criança de oito anos vem tomar a benção de Dileudo Guimarães, 54 anos, assim que ele entra na Escola Municipal São Pedro, no Quilombo Bom Jardim. O estudante é seu neto Diogo, filho de Dilena, servente da escola. A cena se repete por onde ele passa — seja na localidade onde nasceu, nas proximidades do Lago do Maicá, em Santarém, no oeste do Pará, ou nas comunidades vizinhas, entre os Rios Amazonas e Tapajós. Além de seus netos e afilhados, são conhecidos que guardam o costume, por respeito, de tomar a benção dos mais velhos. Na trilha pela mata, que corta o quilombo, Dileudo rememora histórias da terra onde nasceram seus antepassados e narra a luta, no presente, para impedir o avanço da soja e a construção de um complexo portuário nas terras quilombolas.
“Não fomos consultados. Não respeitam nossos direitos”, sentencia em relação ao projeto da Empresa Brasileira de Portos de Santarém (Embraps) para o Lago do Maicá, área até então considerada de preservação ambiental, onde vivem populações quilombolas, indígenas e pescadoras. Dileudo preside há dez anos a Federação das Organizações Quilombolas de Santarém (FOQS), instituição que reúne as 12 comunidades existentes no município: seis delas na várzea, em áreas que margeiam os rios; cinco no Planalto Santareno; e uma urbana. A obra faz parte de um conjunto de empreendimentos na região de Santarém voltados para o escoamento de grãos e minério. O estudo ambiental apresentado pela empresa, em 2013, à Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará (Semas) afirma que não foram encontradas “populações tradicionais legalmente reconhecidas” na área.
Nenhuma das 12 comunidades quilombolas de Santarém foi consultada — parte delas tem suas terras às margens do lago e utilizam a pesca como uma de suas principais fontes de sustento. “A comunidade tem que saber o que se pretende fazer dentro dela. Quem vive aqui no quilombo é quem sabe o que é bom para nós e o que não é”, afirma o líder quilombola. Radis visitou quatro dessas comunidades no fim de março. “Até hoje nós não temos nenhuma comunidade titulada. É um direito que está na Constituição, mas que ainda não saiu do papel”, constata Dileudo.
A construção do Porto do Maicá tornou-se um símbolo da resistência das comunidades remanescentes de quilombos em Santarém. Depois que a FOQS questionou o estudo ambiental da Embraps, que não respeitou o direito à consulta das comunidades tradicionais, o Ministério Público Federal (MPF) e Estadual (MPE-PA) ingressaram com uma ação civil pública na Justiça pedindo a suspensão do licenciamento do complexo portuário. Em abril de 2016, a Justiça Federal concedeu liminar que suspendeu a obra até que fosse promovida consulta prévia, livre e informada às comunidades quilombolas e povos tradicionais da região. “Quem eles consultaram? Quem deu essa autorização para eles?”, questiona Claudiana Lírio, representante dos quilombolas no Conselho Municipal de Saúde de Santarém.
Assim nasceu a luta dos quilombos de Santarém para serem ouvidos e respeitados em qualquer decisão que envolva seus direitos ou que afete suas vidas e suas terras. “As populações não são inseridas no debate, desde o início até o fim das obras. A ideia é que, antes de pensar os grandes empreendimentos ou qualquer medida que possa afetá-los, eles sejam escutados”, aponta Ciro Brito, advogado popular da Terra de Direitos, organização de direitos humanos que presta assessoria jurídica aos quilombolas. “Fomos de comunidade em comunidade, ouvindo o nosso povo, falando do porto e sobre os prejuízos que ele vai trazer para nós”, afirma Dileudo.
Na contramão da decisão da Justiça de ouvir as comunidades, a Câmara Municipal de Santarém aprovou e o prefeito Nélio Aguiar (DEM) assinou, em dezembro de 2018, o novo Plano Diretor do município, que ignora a participação das comunidades tradicionais e converte a região do Maicá em área de exploração portuária. Esse é mais um episódio que mostra o avanço do agronegócio, da mineração e de grandes empreendimentos sobre os quilombos — o que coloca em xeque não apenas os direitos e a identidade dessas populações, mas ameaça também a preservação ambiental. Uma frase de Dileudo sintetiza a luta dos quilombolas pela liberdade de viver em suas terras: “Nós precisamos ter nossos direitos respeitados.”
Quilombos têm voz
“Repare se você vê alguma árvore em pé onde se planta soja”. A frase de Dileudo é uma constatação que descreve a paisagem no percurso de Santarém até o Quilombo Bom Jardim — a cerca de 22 quilômetros da cidade. Da estrada, o que se avista são campos e mais campos de soja, que se expandem pelo Planalto Santareno. O entorno começa a mudar nas proximidades dos quilombos: áreas de floresta, igarapés, casas simples na beira da estrada, plantio de hortaliças, crianças, campos de futebol. “Quem acaba com a mata é o sojeiro [plantador de soja]”, aponta o líder quilombola, ao ressaltar que o modo de vida dos povos tradicionais respeita e coexiste com a floresta.
A fonte de sustento dos quilombos vem da natureza: o pescado no Lago do Maicá, o extrativismo, como o cupuaçu e o cumaru, e a agricultura familiar, com o cultivo de milho, mandioca, jerimum (abóbora), melancia, banana. “Nós temos a terra como mãe. Tudo que a gente precisa para sobreviver se tira dela. A terra é vida”, ressalta. Como habitam em áreas ainda preservadas, com abundância de água, os quilombolas precisam resistir aos interesses cada vez mais presentes do agronegócio. O líder conta que denunciaram à Justiça a queima da castanheira pelos sojeiros. “Por que a Justiça até hoje não fez nada? Não valorizam nossos territórios e a nossa luta”, critica.
Cansados de esperar pela atenção do poder público, os quilombos de Santarém decidiram se organizar e, por meio da federação que reúne as 12 comunidades, construíram o chamado Protocolo de Consulta Quilombola, um documento que mostra como eles devem ser consultados, para qualquer projeto ou atividade que ocorra em seus territórios. “Quem tem que lutar por nós somos nós mesmos, porque nós é que conhecemos a nossa luta”, resume Dileudo. O Protocolo de Consulta, construído por representantes de todas as comunidades, pretende “mostrar que nós existimos e que não aceitamos qualquer empreendimento sem que sejamos previamente consultados”, diz o texto. O documento se baseia no direito à consulta prévia, livre e informada, garantido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que o Brasil assina.
Com base nessa mesma convenção foi que a Justiça Federal concedeu liminar, em 2016, a pedido do MPF e do MPE-PA, suspendendo o licenciamento das obras do Porto do Maicá, até que as comunidades fossem consultadas e tivessem sua decisão respeitada. “O Protocolo de Consulta não serve só para essa questão do porto, mas para qualquer coisa que se pense em fazer em nossas comunidades. A consulta é importante porque é a própria comunidade quem toma suas decisões”, explica o presidente da FOQS. Ameaçados pelo avanço do agronegócio e dos grandes empreendimentos, o Protocolo de Consulta foi um instrumento que os quilombos encontraram para ter sua voz respeitada, ressalta Dileudo.
Essa forma de resistência no presente relembra a luta dos negros escravizados para resistir à escravidão, que deu origem aos quilombos. “Ser quilombola é entender que nós é que trabalhamos pelo crescimento desse país. Em momento algum fomos remunerados. Esse país tem uma dívida histórica conosco”, afirma o líder. A definição legal de “quilombola” encontra respaldo no artigo 68 da Constituição Federal, que reconhece o direito à propriedade definitiva de suas terras aos remanescentes das comunidades de quilombos. Já o Decreto 4.887 de 2003 define que quilombolas são grupos étnico-raciais, segundo critério de auto atribuição, com trajetória histórica ligada à ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão.
O Quilombo Bom Jardim possui mais de 200 anos de história — localiza-se no Planalto Santareno, próximo a outros quilombos, como Tiningu e Murumuru. Surgiu da doação de uma área de terras pelo antigo senhor de escravos, por vontade de sua esposa falecida, como rememora Dileudo. Além das comunidades formadas como forma de resistência à escravidão, outras se constituíram por meio da doação de terras em razão de serviços prestados — seja de trabalho braçal, religioso ou de guerra — e foram chamadas de “terras de preto”, “mocambos” ou “terras de santo”, como explica o Guia de Políticas Públicas para Populações Quilombolas, de 2013.
Pai de sete filhos e avô de 6 netos, Dileudo faz o percurso de uma comunidade a outra de bicicleta, aos domingos, quando joga bola com conhecidos de outros quilombos. “Nosso time, o Santo Antonio, tem uma história de bons jogadores”. Ele também é catequista há 45 anos na pequena igreja da comunidade, cujo padroeiro é São Pedro. Mesmo com sua história reconhecida, o Quilombo Bom Jardim ainda aguarda a titulação definitiva de suas terras: teve a Portaria de Reconhecimento publicada em 2011, mas até hoje o título não veio.
LUTA PELA TITULAÇÃO
Sem o título das terras, os quilombolas vivem um cenário de insegurança jurídica e passam a disputar o chão com posseiros, grileiros, fazendeiros, mineradoras e construtoras. “Como ainda não recebemos os títulos, todo tipo de conflito vem para dentro dessas comunidades, como venda de terra, plantio de soja, aluguel e arrendamento”, explica o presidente da FOQS. Embora não tenham o título outorgado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), todos os 12 quilombos de Santarém são reconhecidos pelo Estado brasileiro, por meio da certificação da Fundação Cultural Palmares (FCP), atualmente ligada ao Ministério da Cidadania: essa certidão reconhece o direito internacional à auto identificação dos povos, como determina a Convenção 169 da OIT.
Os quilombolas de Santarém não são um caso à parte entre as 3.271 comunidades remanescentes de quilombos do Brasil, segundo levantamento da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir). Aproximadamente 83% delas (2.729) já foram certificadas pela Palmares, mas apenas 241 dispõem do título definitivo concedido pelo Incra. Nas margens do Lago do Maicá, em Santarém, o Quilombo Tiningu — com cerca de 85 famílias — recebeu, em outubro de 2018, a Portaria de Reconhecimento que delimita as terras da comunidade. A próxima etapa é a assinatura do Decreto de Desapropriação, pelo presidente da República, que determina o pagamento de indenização para outras pessoas que vivam na área dos quilombolas, mas que não se reconheçam como tal.
“Nós dependemos agora do Bolsonaro assinar [o Decreto]”, declara o presidente da Associação Comunitária do Quilombo Tiningu, Benedito Mota, também coordenador na região do Baixo Amazonas das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombo do Pará (Malungu). Ele relata que o passo importante que deram na obtenção do título aumentou a pressão externa sobre os quilombolas. “As ameaças vem de todos os lados. Da própria soja, do agronegócio, do porto, dos fazendeiros que estão dentro [das áreas quilombolas]. Já recebemos até ameaça de morte”, conta. Em setembro de 2018, um quilombola do Tiningu foi assassinado, com golpe de chaves de fenda, pelo caseiro de um fazendeiro da região.
À Radis, o Incra informou que o direito à propriedade das terras que ocupam, assegurado pela Constituição, é motivado pelos próprios remanescentes de quilombos, que solicitam a formalização do processo de regularização junto à autarquia — órgãos estaduais e municipais também têm essa atribuição e a atuação do Incra se restringe às comunidades certificadas pela Palmares. Atualmente, segundo o órgão, existem 1.755 processos abertos em todas as Superintendências Regionais, exceto Roraima, Marabá (PA) e Acre. De acordo com o Incra, diversos fatores — como localização e complexidade das relações sociais, entre outros — influenciam o andamento de cada processo, dificultando estimar prazos.
Pressões do agronegócio
No Planalto Santareno, o Lago do Maicá é considerado um santuário ecológico para populações quilombolas, indígenas e pescadoras que vivem às suas margens. Suas águas se comunicam com o Rio Ituqui, afluente do Amazonas. Para os quilombos, é fonte de água e peixes, além de via de transporte. Por isso, Benedito Mota, 59 anos, líder do Quilombo Tiningu, alerta que a presença de um porto graneleiro com capacidade para atracar grandes embarcações mudaria completamente a rotina dos moradores — e traria poluição e degradação ambiental. “Nós dependemos desse lago. Quando eles fizeram uma pesquisa e disseram que só existiam três espécies de peixes, nós contestamos, porque sabemos que estamos numa área rica em biodiversidade”, aponta o líder também conhecido como Bena.
Um estudo técnico da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), em Santarém, de 2018, coordenado pela professora Izaura Pereira Costa, constatou “fragilidades metodológicas” no Estudo de Impacto Ambiental (EIA) apresentado pela Embraps — empresa que pretende construir o porto — ao órgão responsável pelo licenciamento ambiental. Segundo a pesquisa, os dados fornecidos pela empresa não permitem mensurar o impacto na economia, nem estimar as consequências para os ecossistemas locais. O estudo também ressalta que as comunidades tradicionais não foram consultadas. Bena destaca que a preocupação maior é com a poluição e os impactos para a saúde. “Queremos ser consultados. O rio é um bem de todos”, pontua.
Para ele, os quilombolas enxergam a terra como fonte de subsistência e não visam a degradação da natureza. “Enquanto o agronegócio está acabando com a floresta, nós queremos reflorestar mais, porque precisamos e vivemos do extrativismo”, aponta. Uma das fontes de renda da comunidade é a extração da semente aromática do cumaru, usada desde a culinária até a fabricação de cosméticos. Ele ressalta que a titulação é um passo necessário para garantir a sobrevivência dos quilombos. “Queremos que o povo possa tirar os produtos da própria terra. Não queremos terra para mim, ou para qualquer liderança, mas para uma população que vive dela. São as nossas raízes, aqui viveram nossos antepassados”, afirma.
O agronegócio está cada vez mais próximo dos quilombos — o que representa uma ameaça tanto para a floresta quanto para os próprios quilombolas. “Com essa publicação no Diário Oficial [Portaria de Reconhecimento], vieram situações complicadas pra cima da gente. Mulher, filhos, ninguém quer ver um pai ameaçado”, relata. Bena denuncia que os moradores do Tiningu também sofrem questionamentos se são “de fato quilombolas”, por terem a pele mais clara, resultado da miscigenação. “Aqui no Tiningu você vê uma pele mais clara. Mas se procurar nossas raízes, mãe, pai, avó, todos eram negros”, afirma. Bena pontua que as pressões dos ruralistas e dos grandes empreendimentos sobre os quilombos de Santarém é a mesma que ocorre em outros municípios do Oeste do Pará. “Além do agronegócio, tem barragem, garimpo, rodovias, tanta coisa que afeta as populações quilombolas, mas estamos na luta”, conclui.
Sangue de quilombola
Claudiana Lírio tem orgulho de falar como aprendeu com o pai a lutar pelos direitos quilombolas. Seu pai, João Vieira Martins, era uma liderança do movimento no Pará e, desde menina, ela se metia com ele nas reuniões — a princípio para “vigiá-lo”, a pedido da mãe. “Meu pai sempre colocou na cabeça da gente: vocês são pretos, precisam assumir a identidade de vocês. Ele dizia que a gente precisava lutar para ser livre”, relembra. Livre — do medo, do racismo, da pobreza e da morte. “Mesmo que a gente não estivesse mais no período da escravidão, na visão dele a gente continuava prisioneiro”, se emociona ao narrar.
Oriunda da região de Nova Jacundá, no Sudeste Paraense, a família de Claudiana foi abalada pelo assassinato do irmão, em 2001. Então o pai decidiu mudar com a família para Santarém, no Oeste do estado, a cerca de 900 quilômetros. Do exemplo paterno, ela tirou o que chama de “lições de vida”. Hoje ela representa a população quilombola no Conselho Municipal de Saúde e cursa Bacharelado Interdisciplinar em Ciências e Tecnologias na Ufopa. “Nós somos 16 filhos e fui a única que consegui concluir o ensino médio e entrar numa universidade”, destaca. Como mulher quilombola, ela ressalta ainda que aprendeu a “nunca ser submissa”. “Tenho espírito de gente livre e de luta, não consigo me conformar com as injustiças que a gente vê com nosso povo”, afirma.
“Já fui ameaçada por sojeiros, mas não abandonei a causa”, pontua. Claudiana conta que recebeu a ameaça de um representante da empresa que quer instalar o porto no Maicá. “Ele não me ameaçou escondido, foi no meio de todo mundo, por isso entrei com uma ação no Ministério Público”, relata. Ela aponta que a empresa promete emprego aos quilombolas em troca de apoio. “Eles vendem uma ilusão para a população. Chegam com um documento técnico, dão para as lideranças e começam a convencer as comunidades: ‘Vamos trazer benefícios pra vocês’”, afirma. Junto com integrantes da Pastoral Social, ela ajudou a “traduzir” os impactos do empreendimento para que os moradores pudessem entender como a obra iria afetar o seu cotidiano. “Um estacionamento para 950 carretas requer uma área muito grande a ser desmatada. Prometem emprego para 750 pessoas, mas moramos num lugar onde a maior parte das pessoas não tem qualificação, não terminaram nem o ensino médio”, assinala, acrescentando que, na prática, não haveria benefícios para os quilombolas.
Claudiana também alerta que é preciso ter muito cuidado para não cair em “armadilhas” criadas pelos ruralistas. “Fazem reunião somente para legitimar as obras. Usam só linguagem técnica. Eu não assino documento nenhum em branco. Quem me garante que eles não vão anexar um texto em cima e depois dizer que concordei?”, questiona. Sobre as ameaças, ela diz que isso ocorre com quem atrapalha “os negócios deles” e lembra que os irmãos sempre a alertam para abandonar o movimento. Para não desistir, Claudiana afirma que se inspira no exemplo de Marielle Franco, vereadora assassinada no Rio de Janeiro em 2018 e que se tornou um símbolo da luta pelos direitos humanos.
No alvo e na rota
O capítulo mais recente no embate sobre a construção do Porto do Maicá ocorreu com a aprovação do novo Plano Diretor de Santarém, em dezembro de 2018. Com a medida, a região do Maicá passou a ser considerada área portuária — o que contraria a decisão da Justiça de interromper o licenciamento do porto até que as comunidades tradicionais fossem consultadas, como explica Ciro Brito, advogado popular da Terra de Direitos. “A região do Maicá é rica em biodiversidade, em diversas espécies de plantas e animais, das quais as populações se beneficiam. São pescadores artesanais e extrativistas. Eles não foram consultados”, aponta.
Sem consulta prévia e informada, a decisão do poder público vai contra a vontade de quilombolas, indígenas e ribeirinhos que vivem na região. “Em todas as discussões em que os povos tradicionais foram ouvidos, eles foram muito claros na posição de que essa área deveria continuar sendo de proteção ambiental”, constata Ciro. Para a indígena Vandria Borari, que também atua na Terra de Direitos, o avanço do agronegócio e da mineração sobre os territórios de comunidades tradicionais ocorre porque não há segurança jurídica para esses povos. “Na Amazônia, as áreas que ainda estão preservadas são aquelas ocupadas pelas populações tradicionais. Eles são os maiores guardiões da floresta. São áreas que interessam ao grande capital, pois têm minério, floresta e água. Os povos são vistos como impasse ao desenvolvimento”, explica Vandria, que concluiu em 2019 o curso de Direito na Ufopa.
Como seu modo de vida ajuda na conservação do meio ambiente, os quilombos ocupam terras que despertam o interesse de madeireiros, mineradoras e latifundiários. “Os quilombolas não estão somente no alvo, mas na rota dos grandes empreendimentos, que na região [do Oeste do Pará] se focam na mineração e nas usinas hidrelétricas”, explica Ciro. Para o advogado, nesse modelo de desenvolvimento “não cabem” as comunidades tradicionais, como quilombolas e indígenas, vistas como entraves ao crescimento econômico: “O objetivo é explorar bastante o que tem na terra e as populações permanecem aquém e super empobrecidas”, analisa, ele que estudou os conflitos pelo reconhecimento territorial de povos tradicionais em seu mestrado na Universidade Federal do Pará (UFPA).
O advogado explica que o direito à consulta é reconhecido pela Convenção 169, que passou a vigorar no Brasil em 2004. “Desde então os povos vêm se apropriando desse direito e tentando fazê-lo valer”, pontua. O caso emblemático que mobilizou os quilombolas do Rio Tapajós em torno do Porto do Maicá, segundo Ciro, diz muito sobre a luta dessas comunidades para sobreviver em suas terras. “Não é um porto apenas, mas uma região integrada em diversos portos para escoar a produção de soja, que nos últimos anos vem crescendo exponencialmente nos territórios das populações tradicionais”, afirma. Os quilombos são cada vez mais “espremidos” pelo avanço do agronegócio e vivem algo que, para o advogado, assemelha-se a uma “contagem regressiva”: “Quanto mais tempo as titulações demoram, mais direitos os quilombolas perdem, porque a soja e os empreendimentos avançam sobre suas terras e o acesso à flora e a fauna é perdida”, expõe.
“As gerações futuras não terão mais território”, constata Vandria. Para ela, a terra é uma forma de garantir a existência dos povos. “A vida dos povos tradicionais está interligada com a terra: seus costumes, tradições, dinâmica de trabalho e organização social. O povo tira o sustento da terra, constrói suas casas, planta seus alimentos, toma banho no igarapé”, ressalta a indígena. Ciro acrescenta que o avanço do agronegócio é um processo “muito violento” — além de ameaças, envolve também cooptação. “Às vezes [os produtores de soja] conseguem pessoas da própria comunidade para trabalhar para eles, em troca de diária, e isso acaba enfraquecendo a comunidade”, avalia. Além disso, o agronegócio também se expande de forma precária do ponto de vista jurídico: “São títulos de terras que são comprados e vendidos sem que sejam regularizados do jeito que a lei diz que deveria ser”, completa o advogado.
Para Dileudo, o longo percurso que os quilombos têm pela frente é fazer com que seus direitos saiam do papel. “Aqueles que estão no poder pensam muito em melhorar a economia do país sem dar oportunidades para o povo. Muitos falam que a escravidão acabou, mas nós não temos nem nossas terras para trabalhar”, afirma. A luta dos quilombolas por terra é também um esforço para que sua cultura e tradições continuem a existir. “Como os filhos vão voltar para a comunidade se não existem oportunidades dentro dos quilombos?”, indaga.
Guardiões da ancestralidade
“Eu moro do lado de lá/ Na beira do Rio Amazonas / Ô neguinho, pega a canoa / Que eu já quero atravessar…” Os versos cantados por Ana Cleide Vasconcelos, do Quilombo Arapemã, parecem ecoar durante a travessia de barco até a ilha de Saracura, a cerca de uma hora e meia de Santarém. Durante o trajeto, a bajara — pequena embarcação movida a motor — passa sobre o encontro entre os Rios Tapajós e Amazonas, com sua diferença de cores. A água é um elemento que marca e conduz a vida do Quilombo Saracura, onde vivem cerca de 150 famílias, em região de várzea, como outras cinco comunidades de Santarém: nas cheias, quando o rio sobe, os quintais são tomados pela enchente, o cultivo é dificultado e o deslocamento se dá somente de barco.
“Quando chegar em abril, essas terras vão estar todas inundadas e só se anda de canoa”, contou Ivair dos Santos, 45 anos, em março, quando Radis esteve na comunidade — ele é filho do antigo líder do quilombo, Aldo Santos, já falecido. “De agosto a fevereiro, é o período do cultivo. De março a julho, as terras são tomadas pelas águas e a única atividade é a pesca”, explica Josivan Laurindo, 44, coordenador pedagógico da escola do quilombo, que abrange do ensino fundamental ao médio. Até mesmo o calendário dos estudantes segue a dinâmica das águas e o ano letivo termina em março.
Cercados por água de todos os lados, os moradores do Quilombo Saracura vivem uma contradição: não têm acesso à água potável. Sem rede coletora de esgoto, as famílias utilizam fossas rudimentares ou valas a céu aberto — que são invadidas pelo rio, durante as cheias. “Nós usamos para tudo a água do rio e ela não é tratada. Alguns puxam na bomba, outros no balde”, descreve Josivan. Os quilombolas alertam que o rio se encontra cada vez mais poluído, por uso de agrotóxicos na região, garimpo, falta de saneamento básico e presença crescente de grandes embarcações, desde a construção do porto graneleiro em Santarém. Contam também que problemas frequentes de saúde da comunidade estão relacionados à contaminação da água, como intoxicação, diarreia e vômitos.
A realidade de Saracura não é um caso isolado: 76% dos domicílios quilombolas, no Brasil, não possuem saneamento adequado (28% utilizam esgoto a céu aberto e 48%, fossa rudimentar) e 62% não possuem água canalizada, de acordo com o diagnóstico do Programa Brasil Quilombola de 2012, elaborado pela Seppir — um dos mais amplos levantamentos sobre essas populações já realizado no país. Saracura também não conta com fornecimento de energia elétrica. Josivan relata que algumas famílias até possuem gerador ou energia solar, mas ainda assim a utilizam somente para tarefas essenciais. De acordo com a Seppir, 18% das casas nos quilombos vivem a mesma situação: sem luz elétrica.
Os moradores mais antigos, como Adaílson de Souza, 74 anos, narram que o Quilombo Saracura nasceu quando uma curandeira negra, chamada Dona Sara, moradora do Alto Tapajós, fugiu da perseguição policial, ainda no século 19, e foi encontrar abrigo na ilha, onde era difícil o acesso. Outros negros fugitivos e também participantes da revolta da Cabanagem, que ocorreu no Pará entre 1835 e 1840, buscavam refúgios em áreas isoladas, dando origem aos quilombos da região. De acordo com pesquisa histórica de Eurípedes Funes, professor da Universidade Federal do Ceará (UFC), os quilombos de Santarém se constituíram ainda no século 19 por negros, mestiços, livres e libertos que fugiam do cativeiro — eram vistos como um “mal a ser combatido”, mas sem sucesso. Daí nasceram as comunidades “afro-amazônidas”, como define o professor.
“Se, num primeiro momento, o enfrentamento visava construir a liberdade, rompendo com a escravidão, hoje, a luta se coloca no sentido de libertar a terra para continuarem a ser livres e assegurarem o direito à cidadania”, escreve Eurípedes. “Sou quilombola com muito orgulho. Isso é dar valor ao que nossos antepassados passaram”, afirma Jucimara Oliveira de Jesus, presidente da Associação dos Remanescentes de Quilombo da Saracura (ARQSARA). Os quilombolas contam que, protegida pelo isolamento na ilha, “Dona Sara” continuou curando o povo da região com ervas e benzeduras— e daí veio o nome da comunidade, a “Sara que cura”, relatam.
Sementes que se multiplicam
“O quilombola não é um negro fujão. É um trabalhador e uma trabalhadora, que lutam firmemente todos os dias por seus direitos negados”. A afirmativa é de Rejane Oliveira, líder do Quilombo Maria Joaquina, em Cabo Frio, na Região dos Lagos do Rio de Janeiro, e representante da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), órgão que congrega associações quilombolas de todo o país. O relato de Jane, como é conhecida a líder quilombola de 43 anos, mostra que a realidade do Oeste do Pará encontra semelhanças em outras regiões do país. Os quilombos de Rasa e Maria Joaquina — dentre outras comunidades de Cabo Frio e Armação de Búzios — localizam-se em áreas visadas por grandes empreendimentos turísticos, por serem de região litorânea. “Você vê a terra onde nasceu e cresceu se transformar com a invasão e pela especulação imobiliária”, conta.
No quintal de casa, o avô de Jane plantou pés de frutas, e ali ela também criou suas duas filhas, hoje com 19 e 20 anos. “Estão tirando nosso direito de pertencimento. A terra é poder. Podemos viver os benefícios que a terra pode trazer”, defende. Com as obras na região, o território antes ocupado pela comunidade vai ganhando outra face e os quilombolas passam a conviver com a degradação ambiental e a poluição. Um dos efeitos prejudiciais, segundo Jane, é a contaminação da água e do ar com agrotóxicos. “As famílias estão no meio do veneno, da fumaça e do canavial. Isso afeta o solo e a água”, afirma. “Você se sente como um guardião da história, não dá para ficar calado”.
Maria Joaquina é um quilombo fundado e liderado por mulheres. Da família de Jane, as referências vêm de sua avó de 109 anos, Dona Eva, moradora do Quilombo da Rasa, comunidade vizinha à sua, e de sua tia Uia. “Em todos os quilombos estão ali as mulheres: trabalham na roça, cuidam da família, educam os filhos. Porém, saímos somente da função de casa e fomos fazer política”, ressalta. Além da agricultura familiar, a comunidade também vive do extrativismo — os quilombolas extraem a semente da aroeira, utilizada na culinária como pimenta rosa. Folhas e cascas da árvore são empregadas para fins medicinais. Jane ressalta que a educação ambiental pertence aos conhecimentos ancestrais do quilombo. “Quem queima, quem corta, quem destrói não somos nós. A gente sabe lidar com o meio ambiente”, pontua.
Cercados por grandes plantações de cana de açúcar e pelos novos empreendimentos turísticos, os quilombos da Região dos Lagos também lutam para sobreviver. Jane conta que já sofreu ameaças em três situações, todas elas ligadas ao conflito de terras. “A gente não quer entrar para o conflito. Não somos invasores. Quem tem arma de fogo não são os quilombolas”, ressalta. Porém, ela teme que a especulação imobiliária e o agronegócio dificultem cada vez mais a vida nos quilombos. “Se a gente não lutar pelo nosso direito de povo negro e dizer ‘estamos aqui’, nós vamos ser atropelados. Somos responsáveis por multiplicar o conhecimento e as lideranças”, reflete. Ela ainda destaca que a comunidade remanescente de quilombo é como uma família, “em que todos são parentes”, devido aos laços ancestrais.
Como a maior parte dos quilombos no Brasil são comunidades rurais — 77,7% das famílias vivem na zona rural, segundo a Seppir —, uma das principais dificuldades é o acesso aos serviços públicos. Jane faz parte de um grupo da Conaq que reivindica políticas de saúde para essa população. Na Região dos Lagos, ela conta que existem dificuldades para acessar o posto de saúde mais próximo; alguns territórios ficam a mais de 20 quilômetros da unidade. Por falta de assistência, doenças crônicas como diabetes e hipertensão geram complicações graves. “Nossa gente está ficando doente, está morrendo cedo. Estamos perdendo o nosso povo para as doenças crônicas”, relata. Outro problema é o acesso à água potável e ao saneamento básico. “As casas utilizam as fossas e os sumidouros [a céu aberto]. As pessoas passam sufoco. Saneamento também é saúde”, acrescenta.
Para atender as comunidades remanescentes de quilombo, o governo federal lançou, em 2004, o Programa Brasil Quilombola, que possui quatro eixos: acesso à terra; infraestrutura e qualidade de vida; desenvolvimento local e inclusão produtiva; e direitos e cidadania. Com ações transversais em 12 ministérios, o programa era gerido pela Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) — que, a partir do governo de Jair Bolsonaro, passou a fazer parte do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (da ministra Damares Alves). Interpelado pela Radis, o ministério informou que o Brasil Quilombola continua sob coordenação da Seppir — a página do programa, porém, encontra-se fora do ar.
QUILOMBOS NO BRASIL
3.271 comunidades
2.729 certificadas pela Fundação Cultural Palmares (Ministério da Cidadania)
241 tituladas pelo Incra
177.089 famílias
ESTADOS COM MAIS QUILOMBOS
Bahia: 797
Maranhão: 766
Minas Gerais: 381
Pará: 259
Fonte: Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) / Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (19/03/2019)
Saúde quilombola
Para gripe, Gerson Ferreira Betsel, 59 anos, tem a receita de um xarope que considera melhor do que qualquer remédio: folha-grossa, corama, limão, laranja, hortelã, cebola roxa, alho, abacaxi e mel de abelha. Para dores de estômago, nada melhor do que um cipó da Amazônia conhecido como urubucaá. Essas são algumas das tradições guardadas pelo agente comunitário de saúde (ACS) do Quilombo Tiningu, que utiliza plantas medicinais quando faltam outros recursos, como os medicamentos convencionais. “Para nossos antepassados, tudo era mais difícil em relação à medicação e eles usavam as ervas como alternativa. Esse conhecimento é muito antigo, veio dos avós e vai passando de geração a geração”, conta.
Há 21 anos, o quilombola nascido no Tiningu aceitou o desafio proposto por seu amigo de infância, Benedito Mota, líder da comunidade, para fazer o curso de agente de saúde. Ele não poderia imaginar como iria se apaixonar pela profissão. “Nosso trabalho é de ação e prevenção”, afirma Gerson, que acompanha o cotidiano de pessoas com diabetes, hipertensão, pacientes acamados, grávidas e puérperas na comunidade em que vive. O quintal de sua casa, onde cultiva as plantas medicinais, faz divisa com o Centro de Saúde Quilombo Tiningu — única unidade de saúde dentro de uma comunidade quilombola na região.
O Centro de Saúde — considerado uma conquista do movimento quilombola de Santarém — conta com uma equipe de Estratégia Saúde da Família (ESF), que atende não apenas à população do Tiningu, mas de outros quilombos do município. Um dos usuários é João Lira Rocha, 66, morador do Quilombo Murumuru — ele se considera um “parceiro da equipe” e narra que, quando tem consulta, vem a pé ou de moto com algum filho ou neto. Um dos principais problemas relatados pelos quilombolas é a dificuldade de acesso, seja pelas estradas de terra ou por barco. Daiana Maia é a enfermeira responsável pela unidade — por causa da distância, ela fica de segunda a sexta em Tiningu e somente nos fins de semana retorna para sua casa em Santarém.
A quase 30 quilômetros do município — uma parte do trecho em estrada sem asfalto —, moradores e profissionais de saúde relatam problemas quando ocorre uma emergência em saúde. “A ambulância é uma dificuldade. Para chamar tem que ter acesso à internet, só que a gente não tem. Quando precisa, eu me comunico com alguém da cidade, no caso meu marido, e ele entra em contato com o setor responsável”, relata Daiana. A unidade está sem médico desde janeiro: a prefeitura se comprometeu em mandar um profissional uma vez por semana para as consultas de maior urgência. Atendido anteriormente pelo Programa Mais Médicos, Tiningu já contou com uma médica cubana, que ficou por três anos, e com um brasileiro, que permaneceu por dois, mas precisou deixar o posto porque se mudou.
Ainda assim, Daiana e sua equipe fazem o que podem — ela narra, com brilho nos olhos, que não deixa faltar nenhuma vacina do Calendário Básico. “Eu sempre vou até a rede de frios para garantir”, conta. Ela explica que os principais problemas de saúde dos quilombos da região são infecções sexualmente transmissíveis (IST), doenças crônicas e casos de infecção e diarreia por conta da contaminação da água e ausência de saneamento. A enfermeira também acompanha as grávidas quilombolas durante o pré-natal. “No início, a maioria das gestantes não se importava. Hoje elas veem bem precocemente”, pontua. Pela dificuldade de deslocamento na estrada, principalmente durante o período de chuvas, ela recomenda que as gestantes fiquem em Santarém, na casa de algum conhecido, quando o parto está próximo.
O Centro de Saúde conta com 12 ACS, que percorrem os quilombos, além de técnicos de enfermagem e equipe de saúde bucal. Uma das agentes é Iriclei Costa, do Quilombo Nova Vista do Ituqui, uma comunidade de várzea, que relata que a principal dificuldade é o transporte no período das cheias. “Nosso trabalho tem muitas alegrias, mas também experiências dolorosas. As casas são longe uma da outra e preciso da ajuda do meu irmão para me levar de casa em casa de rabeta [barco]”, explica. Outra questão que afeta a saúde dos quilombos é a proximidade das terras com um lixão — os moradores já denunciaram que o aterro sanitário não toma providências para evitar a contaminação dos igarapés e do Lago do Maicá com os resíduos que escorrem com a chuva. “O chorume do lixão desce pela serra e cai no igarapé. Gera contaminação da água, tanto do rio quanto dos lençóis freáticos”, alerta Bena, líder da comunidade.
Os quilombos de Santarém tem uma representante no Conselho Municipal de Saúde, Claudiana Lírio, que aponta que a saúde quilombola é uma área negligenciada. “Nós temos ações no SUS voltadas para indígenas, mas não temos políticas efetivadas para quilombolas”, avalia. Segundo ela, uma das principais barreiras é que essas populações não conhecem seus direitos e não sabem como funciona o SUS. Claudiana considera que a questão mais grave que afeta a saúde nos quilombos é a falta de água potável e saneamento. “As comunidades ainda usam o sistema de fossas. Quando o rio enche, principalmente em área de várzea, eles tomam a mesma água”, pontua.
Da África à Amazônia
As comunidades “afro-amazônidas” lutam para manter vivas as tradições culturais — nas escolas e nas festas tradicionais. O pedagogo Josivan Laurindo, de Saracura, ressalta que o aprendizado dos alunos no quilombo reúne o conhecimento que vem de fora com a preservação dos saberes locais. “O maior insumo pedagógico está nas comunidades, nas pessoas, no modo de vida, na pesca e na agricultura. Nós buscamos o conhecimento dos mais velhos, que chamamos de griots”, comenta, ao mesmo tempo que destaca a importância da lei 10.639 de 2003, que inclui no currículo a temática da história e cultura da África.
Segundo ele, é preciso romper com a visão dos livros de história que mostram “o negro acorrentado” para enfatizar “o negro que ajudou a construir o Brasil”. Ele conta que a comunidade recebeu, certa vez, um visitante de Cabo Verde que ressaltou: “Professor, é um prazer conhecer uma comunidade africana dentro do Brasil”. Morador da ilha, Josivan cursou Letras e Pedagogia tardiamente e hoje sonha em fazer mestrado na área de educação: “Eu nunca tinha pensado dessa forma. Somos o encontro da África com o Brasil”, reflete. Moradora da comunidade de Arapemã, também na área de várzea, Ana Cleide destaca que não é possível negar as raízes quilombolas. “Temos sangue na veia dos escravos que vieram da África, passaram pela Cabanagem e foram se perpetuando nessas ilhas todinhas aí. Somos filhos desse povo”, considera.
Cleide do Arapemã é também cantora e fez da música um instrumento para fortalecer a identidade quilombola. “Eu sou negra nagô/ No sangue, na raça/ E na cor”, diz uma de suas letras. Ela ajudou a organizar o movimento de mulheres quilombolas “Na raça e na cor”, que tiveram suas histórias registradas em vídeo pela organização Terra de Direitos. “A gente sentia que havia pouca participação das mulheres na organização quilombola, por isso criamos esse movimento para elas ocuparem seus espaços”, relata.
No Quilombo Saracura, presidido por uma mulher, Jucimara, a líder do grupo “Meninas do Quilombo” é Ivonilde de Jesus Santos, agente comunitária de saúde (ACS). São cerca de 20 mulheres que se reúnem para discutir violência de gênero e outros temas. “Às vezes a mulher é muito dominada pelo marido. Pensam que ela casou só para fazer comida e lavar roupa”, afirma. Ela conta com orgulho sobre a aprovação de seu filho, de 20 anos, no curso de Gestão Pública da Ufopa: “Nosso povo não desiste. Somos resistentes, mesmo sabendo que nossas lutas não serão fáceis.”
As comunidades que vivem da pesca e da colheita celebram os frutos da terra e das águas em festivais tradicionais — como a festa do tucunaré, do cupuaçu, do caju, do açaí e, a mais recente, do jerimum. “Surgiu a ideia de fazer o Festival do Jerimum para que se pudesse dar mais valor ao produto. Dele se faz bolo, pudim, salgado, doce, purê”, conta a líder de Saracura, Jucimara, a respeito da festa realizada pela primeira vez no ano passado. “Não tem uma comunidade por aqui que goste mais de festa que o nosso povo”, brinca Dileudo Guimarães, do Quilombo Bom Jardim. Ele ressalta que as tradições culturais são uma forma de resistência dos povos negros. “Ser negro é também uma história de fé. É a gente viver nesse mundo buscando ter direitos iguais”, declara. “Quem foi que disse que o negro não tem valor? / Que o negro não tem sentimentos? / Que o negro não sente dor?”, pergunta Cleide do Arapemã na letra de uma de suas canções, “Negra nagô”. Na África que resiste na Amazônia, o sentimento é de luta e pertencimento.
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Assista ao documentário “Protocolos de Consulta no Tapajós: experiências ribeirinhas e quilombolas”, produzido pela organização Terra de Direitos:
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Imagem destacada: Eduardo de Oliveira