Carta da 15ª Jornada de Agroecologia

Por Iris Pacheco e Michele Torinelli, da Jornada de Agroecologia

Durante quatro dias de atividades, cerca de 3000 mil agricultores e agricultoras, estudantes, pesquisadores, entre outros, mais uma vez, construíram uma nova página na história do Movimento de Agroecologia.

Para Diego Moreira, da coordenação do MST, são 15 anos de Jornada, construindo esse Movimento de Agroecologia para que homens e mulheres possam viver dignamente.

“Nestes 15 anos, lembramos das batalhas contra a Monsanto e a Syngenta. Lembramos dos nossos mártires, como o companheiro Keno, e neles nos fortalecemos para continuar na luta em defesa da terra e do território da biodiversidade”, afirma.

É com esse tom de reafirmar a necessidade de construir espaços de resistência e autonomia frente ao capital e de denunciar o contexto político de golpe que vivemos, que a Carta da 15° Jornada de Agroecologia foi construída.

“A agroecologia não é mera técnica, é uma relação de cuidado com a nossa Casa Comum que é a Terra. Lutamos pela agroecologia como forma de superação das crises econômica, política, social e ambiental, sobretudo pela transformação da sociedade”, afirma trecho da Carta.

O documento aponta que o golpe, e um Estado à serviço das classes dominantes, o desmonte das ainda incipientes conquistas na construção de políticas públicas para a agroecologia, constitui-se em grave retrocesso, uma vez que no país se mantém intocada a estrutura de concentração da terra, em que 1% dos proprietários rurais detém quase 50% das terras agricultáveis e acelera a atuação no Poder Legislativo para aprovar leis de agrotóxicos que permitem a liberação de mais agrotóxicos banidos em outros países, por seus efeitos nefastos que ameaçam a saúde humana e a natureza.

Um exemplo dessas leis é a PL 3200/2015 (PL do Veneno), que mascara o termo agrotóxico substituindo-o pelo termo “defensivo fitossanitário”, bem como através da criação da CTNFito, nos moldes da CTNBio, como instância facilitadora para a liberação de novos e mais danosos agrotóxicos.

O Teólogo e Escritor, Leonardo Boff, esteve presente na Jornada e falou sobre o processo de cuidado das sementes que herdamos dos povos africanos e o novo processo de colonização da América Latina e da África pelo capital.

“Querem reduzir todos nós a uma nova colônia, é um processo de recolonização da América Latina e da África. Eles já não têm mais alimentos e querem que nós produzamos para eles”, salienta Boff.

O escritor comenta ainda sobre o golpe no país e afirma que por trás desse golpe para tirar a Dilma do poder, existe uma questão geopolítica. “Aqui estávamos construindo um país mais soberano. Esse golpe vem pra impedir o crescimento dessa potência enorme – não potência militar, mas humana e ecológica”, conclui.

 Foto: Leandro Taques
Foto: Leandro Taques

Sementes: Patrimônio da humanidade

A 15ª Jornada de Agroecologia também se configura como espaço de socialização das necessidades dos povos dos campos e assim reafirma suas exigências históricas, a garantia do direito à terra e ao território aos povos indígenas, quilombolas, camponeses e povos de comunidades tradicionais, como condição primeira para avançar no projeto popular agroecológico e soberano para a agricultura.

Boff ressaltou a ameaça do capital às sementes e para a humanidade. “Hoje as sementes estão ameaçadas. O capital explorou tudo. E agora chegou ao ponto de explorar o segredo da vida, por meio de 2 pontos: o controle das fontes de água e das sementes. Eles sabem que quem controla a água controla a vida; e quem controla a vida tem poder. Por isso os capitalistas estão comprando as terras onde tem água. Outro ponto é a semente: controlando a alimentação, controlam a humanidade”, afirma.

A Jornada, que é uma experiência de massificação popular da pesquisa e da ciência, de troca de experiências práticas e de desenvolvimento do conhecimento e do método de camponês (a) a camponês (a), se fortalece no cuidado comum com a terra e os territórios, e na defesa das sementes como patrimônio da humanidade.

Nesta edição, os agricultores e agricultoras trouxeram uma tonelada e meia de sementes e mais de 100 variedades para a Troca de Sementes, que ocorre no encerramento do evento.

Confira abaixo a Carta da 15° Jornada de Agroecologia:

Nós, mais de 3 mil participantes da 15ª Jornada de Agroecologia, vindos de diferentes regiões do Brasil e de outros 7 países, reunidos na cidade da Lapa, Paraná, Brasil, entre os dias 27 e 30 de julho de 2016, reafirmamos nosso compromisso com a agroecologia e, assim, continuamos a nossa luta por uma terra livre de latifúndios, sem transgênicos e sem agrotóxicos, e pela construção de um projeto popular e soberano para a agricultura.

Nesta Jornada, vivemos um momento de grande mudança na conjuntura brasileira, que nos coloca novos e grandes desafios, pois estamos em meio a uma ruptura democrática. Assim, denunciamos o recente golpe de Estado e não reconhecemos a legitimidade do pretenso governo Temer.

Estemomento político e econômico do Brasil está relacionado com as disputas internacionais do capitalismo. Este cenário se constituidesde 2008, quando o sistema capitalista começou a entrar numa crise de superprodução que colocou em risco sua reprodução. Para tentar superar a crise os capitalistas atacam e privatizam os recursos naturais (petróleo, minérios, água, terra e biodiversidade) e aumentam a exploração do trabalho através da redução de direitos trabalhistas e previdenciários. Neste contexto, o golpe de Estado praticado pela burguesia no Brasil, com explícito apoio de setores do judiciário, dagrande mídia comercial, dos setores empresariais produtivos, especulativos e do capital financeiro internacional, se concretiza como uma forma de acelerar estas saídas da crise, ou seja, aumentar os processos de privatizações, de exploração do trabalho, apropriação dos bens comuns, a intensificação da violência e a criminalização dos movimentos sociais.

Antagonicamente, desde os anos 2000 constrói-se no Brasil um forte e diverso movimento agroecológico, agregando movimentos sociais populares, instituições públicas, cientistas, acadêmicos, estudantes, técnicos, agricultores ecologistas e redes de sementes e de consumidores, articulando-se com movimentos internacionais, sobretudo, latinoamericanos.

Estas forças sociais se levantam e se contrapõem à monocultura das ciências agrárias subordinadas ao agronegócio, ao latifúndio do conhecimento e da terra, aos falsos padrões impostos pela indústria cultural, à paralisação da reforma agrária e à dominação das corporações que concentram a exploração em poucas grandes empresas. Essas grandes empresas não enriquecem as regiões, controlam a oferta da produção agrícola, manipulam seus preços nas bolsas de valores, impõem os agrotóxicos, os transgênicos e o patenteamento das sementes, destroem a biodiversidade e a saúde humana, contaminam os alimentos, alteram negativamente a natureza, geram desequilíbrio ecológico e vendem falsas soluções, como a agricultura climaticamente inteligente e o capitalismo verde. Ou seja, as empresas capturam governos e, assim, atentam contra a democracia, constituindo uma verdadeira ditadura do capital.

O Movimento Social Agroecológico reconhece, ainda que com críticas, o início da estruturação de uma política pública nacional para a agroecologia, sintetizada na proposta do Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, anunciado em 2013. Neste momento, com o golpe, o desmonte dessa política pública constitui-se em grave retrocesso,pondo em risco todas as ainda incipientes conquistas na construção de políticas públicas para a agroecologia.

Neste cenário de golpe denunciamos que o Estado,a serviço das classes dominantes, atende ainda mais seus interesses quando:

  • Extingue o Ministério do Desenvolvimento Agrário, criado depois do Massacre de Eldorado dos Carajás para atender os camponeses e camponesas, que desenvolvia políticas públicas de formação, educação e assistência técnica nos assentamentos; crédito e seguro para a agricultura familiar; fortalecimento do cooperativismo; assentamentos extrativistas; desenvolvimento territorial; políticas públicas para Povos e Comunidades Tradicionais;
  • Quando vincula o INCRA à Casa Civil, para impedir a realização da reforma agrária no contexto do golpe;
  • Quando propõe a privatização da CONAB, precarizando o processo de comercialização, abastecimento e controle de preços dos alimentos produzidos pela Agricultura Familiar e Camponesa.
  • Propõe a reforma da previdência, visando estabelecer uma idade mínima para a aposentadoria, aumentando, em média, dez anos o tempo de serviço dos trabalhadores;

Se não bastasse isso, quando o Estado:

  • Destina cerca 2,7 bilhões de reais por dia ao pagamento da dívida pública aos bancos, cerca de 40 vezes mais do que destina para a agricultura;
  • Mantém intocada a estrutura de concentração da terra, quando 1% dos proprietários rurais detém quase de 50% das terras agricultáveis;
  • Não realiza a reforma agrária e paralisa a demarcação das Terras Indígenas e a titulação dosTerritórios Quilombolas;
  • Propõe através do PL 4059/2012 e PL 2269/2007, com apoio explícito do governo golpista do Temer, liberar a compra de terras no Brasil por estrangeiros, projeto que fere a soberania nacional e dificulta ainda mais a Reforma Agrária. Soma-se a estes Projetos de Lei, as tentativas de privatizar os assentamentos de Reforma Agrária (titulação definitiva).
  • Desmonta as atuais leis de agrotóxicos para permitir a liberação de mais agrotóxicos banidos em outros países, por seus efeitos nefastos que ameaçam a saúde humana e a natureza, o que contribuirá para aumentar a atual média de consumo de 7,3 litros de agrotóxicos per capita por ano. Reduz atuação do Ministério do Meio Ambiente e da Anvisa para liberar agrotóxicos propondo, através do PL 3200/2015 (PL do Veneno), mascarar o termo agrotóxico substituindo-o pelo termo “defensivo fitossanitário”, bem como através da criação da CTNFito, nos moldes da CTNBio, como instância facilitadora para a liberação de novos e mais danosos agrotóxicos. Além disso, autorizou a pulverização aérea em áreas urbanas através da Lei 13.301/2016;
  • Não fiscaliza e não aplica sanções à contaminação genética das sementes agroecológicas, bem como a necessária rotulagem de produtos que contém transgênicos; não monitora o cumprimento das normas de biossegurança no cultivo dos transgênicos, nem a contaminação da água e dos alimentos por agrotóxicos; e ignora também a intoxicação dos trabalhadores do campo e de toda a população que consome alimentos contaminados e/ou está submetida à pulverização aérea;
  • Este mesmo Estado, além de criar leis e normas restritivas à agricultura camponesa e agroecológica, fiscaliza com rigor exemplar e desproporcional as iniciativas de comercialização, agroindustrialização e circulação da produção camponesa;
  • Através do PL 4148/2008 (PLC 34/2015 no Senado), propõe isentar as empresas de rotularem os produtos transgênicos; do PL 827/2015, limitar os direitos dos agricultores e agricultoras a produzir suas próprias sementes; do PL 4961/2005, permitir o patenteamento de seres vivos; do PL 1117/2015 “TERMINATOR”, liberar as sementes estéreis;e da PEC 215 retirar direitos constitucionalmente asseguradosaos Povos Indígenas e Quilombolas;
  • Propõe a privatização da educação, apoia a escola sem partido e a desvinculação dos investimentos em saúde e educação das receitas da União;
  • Fecha as escolas públicas no campo e do campo (entre 2003 e 2012 foram fechadas 29.459 escolas do campo no Brasil, 759 no Paraná), e incentiva o desenvolvimento de projetos de empresas privadas e corporações transnacionais, a exemplo da Syngenta e Souza Cruz, que estimulam o uso de agrotóxicos nas escolas públicas como ocorre no “Projeto Agrinho” e “Projeto Agora” da Monsanto e Syngenta.

Nesta 15ª Jornada de Agroecologia reafirmamos as seguintes exigências:

  • Da garantia do direito à terra e ao território aos povos indígenas, quilombolas, camponeses e povos de comunidades tradicionais como condição primeira para avançar no projeto popular agroecológico e soberano para a agricultura;
  • De assentar todas as 129 mil famílias acampadas no Brasil;
  • De garantir o acesso à terra aos jovens e às mulheres como condição fundamental de permanência digna no campo;
  • De garantir aos jovens e mulheres acesso às políticas públicas de educação, cultura, moradia, saúde, esporte, lazer, previdência, crédito e combate à violência;
  • De não retroceder naconstrução da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica(PNAPO), e de efetivar o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PLANAPO) como um programa estruturante para a Agroecologia; bem como no Programa de Aquisição de Alimentos – PAA e o PAA Sementes;
  • De garantir a permanência e a ampliação do Programa Nacional de Alimentação Escolar(PNAE) assegurando o mínimo de 30% de alimentos oriundos da agricultura familiar camponesa.
  • De garantira manutenção, fortalecimento e ampliação da rede de Escolas Públicas de Educação no campo;
  • De garantiros recursos necessários, através do INCRA/PRONERA, para viabilizar a rede de escolas do campo, inclusive as itinerantes, cursos técnicos e superiores de agroecologia e outras áreas do conhecimento.

Diante desse contexto nós, mulheres e homens, idosos, jovens e crianças participantes desta 15ª Jornada de Agroecologia, reafirmamos que a Jornada é uma experiência de massificação popular da pesquisa e da ciência, espaço de troca de experiências práticas e de desenvolvimento do conhecimento e do método camponês (a) a camponês (a).Também reafirmamos a necessidade de nos somarmos às forças progressistas da sociedade brasileira, com destaque à Frente Brasil Popular e Frente Povo Sem Medo. Posicionamos-nos na defesa da democracia e dos direitos, resistindoao golpe e lutando:

  • Pelo restabelecimento da democracia em nosso país;
  • Por uma ampla reforma democrática do sistema político brasileiro, sem o financiamento empresarial de campanhas;
  • Pelo restabelecimento do Ministério do Desenvolvimento Agrário e do INCRA, bem como a manutenção da CONAB como empresa pública;
  • Por apoio a agroecologia e à produção de alimentos saudáveis;
  • Pela não privatização do petróleo, riqueza do povo brasileiro;
  • Contra a redução da maioridade penal;
  • Pela taxação de grandes fortunas;
  • Pela democratização da mídia e dos meios de comunicação;
  • Pelo fim dos privilégios e pela democratização do sistema de justiça;
  • Contra a terceirização e pela manutenção dos direitos trabalhistas, previdenciários e todos os direitos constitucionalmente assegurados. Nenhum direito a menos!

Diante do golpe, reafirmamos mais do que nunca a necessidade de construirmos nossos espaços de resistência e autonomia frente ao projeto do capital. A agroecologia não é mera técnica, é uma relação de cuidado com a nossa Casa Comum que é a Terra. Lutamos pela agroecologia comoforma de superação das crises econômica, política, social e ambiental, sobretudo pela transformação da sociedade.

“Terra Livre de Transgênicos e Sem Agrotóxicos”

“Construindo um Projeto Popular e Soberano para a Agricultura”

“Cuidando da Terra, Cultivando Biodiversidade e Colhendo Soberania Alimentar”

Lapa, Paraná, Brasil, 30 de Julho de 2016.

Plenária da 15ª Jornada de Agroecologia!

Imagem destacada: Plenária de encerramento da 15° Jornada de Agroecologia / Foto: Leandro Taques

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